sexta-feira, 12 de janeiro de 2018



Não entendo porque essa parada de assedio tem de ser unanimidade. Há situações em que eh engraçado ser assediada e situações que em que não. Lembro que uma vez, um cara passou de bicicleta na rua e me disse, se fosse laranja eu chupava todinha. Achei muito engraçado. Primeiro porque adoro chupar laranja e depois, porque gosto que me chupem. E juntar essas duas coisas foi inusitado e eu pude rir, pensando na avidez com que chupo uma laranja. Agora, qdo não gosto, não gosto. Já briguei com meu porteiro, de quem gosto muito, porque um dia ele tentou me segurar por mais tempo do que uma troca de aperto de mãos pede. Ele ficou tão assustado que quando dei um chocolate de presente de anos novo, não me abraçou. E eu o abraçaria, porque não acho que machismo seja identidade, questão de sujeito, mas de funcionamento. Todos nos somos constituídos por ele em alguma instância.

Agora, p mim, fato eh, o único modo de intervir em ações machistas eh lidando com elas. E falo aqui em assedio no sentido amplo, como essas cantadas que descrevo, mas também assedio num sentido restrito que implica numa coerção sobre alguém subordinado ou tutelado. Não há lei que nos garanta segurança. Nem p mulher e nem p homem. Não sei, qdo quero transar com alguém, chego na pessoa e falo. Não suporto corte, talvez isso seja assedio. Mas prefiro a pessoa que chega em mim e fala o que quer abertamente, situação em que posso resolver com um notório NÃO, do que aqueles caras que ficam se esgueirando ao meu redor, se fingindo de amigo, deixando uma mão escapar aqui ou ali, caras tão covardes q não dizem o que querem justo por medo que o não lhes fira o ego. Então, qdo ouço coisas grosseiras como, ontem sonhei q gozava na sua boca ou comia o seu cu, digo, isso ai, vai sonhando, porque nunca vai acontecer. Normalmente o caras param de falar comigo, primeiro porque cansam e segundo, porque vão percebendo o tamanho da própria idiotice, e isso eh insuportável. Mas prefiro lidar assim, do que por exemplo, qdo transo com alguém que no calor da intimidade e do afeto, me cobra por não engolir seu esperma, que eh sinal de carinho e blá blá blá, carinho eh igual a faça aquilo que quero. Então, gosto de lidar diretamente com as questões, muito mais fácil. O que me preocupa no machismo eh esse intenso discurso de um politicamente correto produzido p que o outro se dobre à sua vontade. Sejam seus protagonistas homens ou mulheres, ou trans, deus ou o diabo.


Texto e foto de SINDIA BUGIARDA

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas em pé, oceano, céu, nuvem, praia, crepúsculo, atividades ao ar livre, água e natureza

O AMOR NAVEGANTE

Permito que fiques
e barquejas-me devagar
preso aos meus remos

À medida que a quilha
treme
e acelera no devaneio sedento

Inicialmente o monte e logo após
a sarça ardente
no mistério do orvalho descido

Da ode que nasce e a folha respira
trova
em todo abandono

Tateias a vergonha e ajoelha-te
travesso
como olhos ávidos e abstraídos

Eles copulam mudos e sôfregos
que como estrelas
iluminam o grito

Cavalgas no mar o intenso destino
e logo após o percurso
batas asas sozinho

Na sombra movas-te e conduzas
a espuma
com vestes de lisura

Pressinto-te quando regressas no eriçar
da tez, na síncope oclusa
do batimento restrito

Enquanto componho
os arredores na aspiração
o desnudo devagar e o arrefeço em mim

SOLANGE DAMIÃO

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

domingo, 5 de novembro de 2017


LEILÃO DO AR

Nos últimos tempos, vem acontecendo leilões de navios e leilões de ilhas, não sei se de montanhas. O leiloeiro, diante de um público restrito, mas de alto poder econômico (não há por aí gente em condições de arrematar uma ilha ou um navio inteiro), faz se exatamente como se se tratasse de um aparelho de chá ou de um lote de miudezas. Só que é estranho ver uma ilha leiloada, com suas águas, plantas, bichos, minerais, caminhos, casas e outras benfeitorias.  Quem dá mais? Dou-lhe uma, dou-lhe duas... De repente, ao entardecer, a ilha aparece no salão escuro, cercada de dívida; emerge da papelada do espólio, ocupa a rua, caminhamos por ela através dos lances do leilão, de gritos martelados.

Com o navio sucede a mesma coisa. É um velho barco desmoralizado, mas como viajou! Se tardar um pouco o leilão, ele se reduzirá a sucata. Vai afundando... mas tudo que foi susto ou alegria de navegação vem a tona, e a sala se enche de gíria da marujada, cabeludas histórias de bordo, ventos, tempestades, tatuagens, o diabo solto no mar. Mesmo em ruínas, que nobre é o navio, inclusive os cargueiros!

Agora o leilão é outro: banal na aparência: pequenos objetos, bolsa de viagem, cristais, saboneteiras, latas, xícaras, taças de sorvete, poltronas. Muitas poltronas. Muitas poltronas, em que os presentes podem sentar-se, testando-lhes a comodidade. No entanto, este é também um leilão raro, o primeiro no gênero, de que tenho notícia no país: o de uma empresa de aviação. Na loja da Avenida Graça Aranha, expõem-se os tristes trastes da Panair do Brasil. Coisas que escaparam de acidentes aéreos, para vir sofrer o desastre em terra, com o esfacelamento da companhia, que serviu a tanta gente por tantos anos.

Eu não ia arrematar nada, mas incorporei-me à multidão de licitantes. Pareceu-me ver um grande avião caído. Com os destroços varejados pelos curiosos. Uns calculavam com frieza o valor dos lotes. Outros olhavam, desinteressados. Algum raro pegava de uma peça. Apalpava-a, mirava-a longamente. Todas as poltronas estavam ocupadas. Pelo que dizia um cartaz, elas se adaptavam perfeitamente a um Volks, e serviam para compor um living: estão em moda as poltronas geminadas. Eram todas de avião, e só elas davam a ilusão de viagem. Mas a viagem era imóvel, paralítica. Não havia aeromoça para trazer o lanche e gratificar os passageiros com aquele sorriso circular que infunde coragem aos apavorados. Nenhum sinal de tripulação. 

Não se apertavam cintos, ninguém sentia nada. As coisas amontoadas, etiquetadas, vencidas, falavam do ar, mas num pretérito mais-que-perfeito, e ninguém as ouvia. Objetos acostumados a voar estendiam-se pelo chão, dou-lhe uma; aguardavam um destino de hotel barato ou de casa pequena burguesa, dou-lhe duas. De tapetes voadores, as poltronas passavam a uma domesticidade sedentária e pobre: dou-lhe três.

Assim acabava aquilo que foi uma grande empresa nacional, cujo nome sonoro retinia por toda parte. Os aviões já tinham passado a outros donos; as instalações serviam a outros fins; chegara a vez das poltronas e dos açucareiros, das latas de comida, copos e cobertores, da bugiganga que antes, integrada na máquina voadora, participava de suas propriedades mágicas, pois o avião continua a ser mágico, à medida que a viagem aérea se torna cada vez mais rotineira. E ninguém ali sentia nada de especial diante do corpo derrotado na Panair, de seus intestinos à mostra. Quase todos teriam usado suas linhas, comido seus jantares,  lido seus jornais brasileiros em Paris, mas a hora era de liquidação, e não de saudades. E o leilão ficava mais lúgubre, quem dá mais? em meio à indiferença geral, que é marca registrada de leilões. Dou-lhe três.

Em dado momento, senti que uma das miniaturas de avião, que iam ser igualmente apregoadas, manifestava sinais de inquietação. Positivamente, queria evadir-se, fugindo à sorte comum. Num esforço de que não revelarei a fórmula, encolhi-me todo para caber dentro do aparelho e, em silêncio, como fazem os aviões decaídos de sua glória, ele rompeu as paredes do edifício, e alçou voo sobre o Rio de Janeiro levando-me consigo para onde os aviões se tornam estrelas inacabáveis, sem remorso dos homens. 

Carlos Drummond de Andrade, in Jornal do Brasil (2/10/69)

sexta-feira, 20 de outubro de 2017


O velho 

I

De tudo – o que sobra.
E é pouco.
O que sobra é o fato.
E o fato é oco
frio.

II

Nestes dias de guerra cerrada,
prosseguir é o de menos, o nada.
E o voltar é, em si, tão obtuso
que o parar é, por si, um consolo.
E não consola.
Hemos tido por certo o errado
(Já que o errado é a pausa, a metade
– sem tropeço – do que há de ser feito)
e o silêncio em tornado palavra
ordenou a parada: o que basta.

III

Pois o velho (idade incerta
beirando o sossego), seguiu.
No chão que beijou
no pó que comeu
no mijo bebido – houve em certo seguir
       semi-erguido
e encascar-se no meio da estrada
sem saber IR ou RIR.

IV

Daí :
donde em sendo o meio a parada à vista
e o regresso ilógico
e o processo absolutamente impossível,
o velho ficou.
Como o vento e o pó.
(Como o chão).


TORQUATO NETO


Foto: Universidade Estadual do Piauí

quarta-feira, 4 de outubro de 2017


AFINAÇÃO DA ARTE DE CHUTAR TAMPINHAS

Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando. Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute. 

JOÃO ANTÔNIO 


segunda-feira, 2 de outubro de 2017



PONTO DE BALA

os mortos tecem considerações
os tortos cozem quietos
as crianças brincam
e bordam desconsiderações


CHACAL


Pintura de Manzur Kargar