quinta-feira, 22 de março de 2012



Será que somente ela caminha na contramão do mundo?

ALÊU E A SEREIA (IV)

NaBahia+sóCéu= Do outro lado da rua já é 1959. O motivo condutor criativo é capaz de tudo. Até de olhar para a calçada oposta e ver rostos anônimos passando. Entre eles está a mãe de Aleuzenev, com 28 anos de idade, abraçada à um conchavo de indecisões. Naquele momento sua vida está mais enrolada do que mecha de alinhavados. Ademais, isto é fato consagrado, apertura financeira só surge em hora especialmente imprópria. No caso particular de Rigina. Os números saltitam em juros ascendentes e nunca se atrapalham: são 100 cruzeiros que passaram a ser 300 cruzeiros, que passaram a ser 700 cruzeiros, que passaram a ser 1.200 cruzeiros, que passaram a ser 1.500 cruzeiros. Depois a soma deu dois contos de réis. Rigina está devendo tudo isto de aluguel, e deve também no armazém, na loja de roupas e no atraso das contas de água e luz. Mais até do que uma constatação. A realidade da turmalina é a de ser pedra falsa, a do sapato novo é o de apertar em pé grã-fino e a do cão vira-lata é de apreciar comer restos nos monturos. Fatos pouco acerbos quando comparados com a grande impaciência que invade Rigina. Esta contramarcha vinda desde a noite anterior, quando elazinha ficou prostrada de tanto argumentar com seu homem, o Rodrigão. Confiara demais nas mentiras dele. Com isto, em lagrimas furtivas, Rigina tenta concentrar-se no batom que reaplica com visões borradas no espelho. Depois quer se entreter ao mirar os detalhes de sua casa quase feminina, com cortinados e bibelôs espalhados por todo lado. O seu casaco de deusa está dependurado e seu vestido ainda se equilibra na beirada do box do chuveiro. Por breve que seja, ela tem uma interpretação de raiva, sobe-lhe um calor que lhe dá afobação. “Engraçado isso”, ela pensa, “agora dei de ter pressa”. Uma mudança de estilo para ela. Desde que mudara para Salvador está de mãos atadas. Sua vida é como um ipsilône, bifurcada numa ponta para o filho Aleuzenev e na outra para seu namorado Rodrigão. Agora Rigina se sente ridícula. Seu filho adormeceu. Ela ama Aleuzenev que já tem quase onze anos de idade. Ele já sabe se cuidar sozinho e tem seus passatempos, mesmo nas vezes em que Rigina sai para seus encontros amorosos. E toda noite ela se ausenta. Principalmente agora que Rigina conheceu o caminho da zona. Abre para si todas as circunstâncias de se fazer idolatrada nos inferninhos da vida. Entretanto a realidade a esbofeteia, acachapante, sem melindres, cruamente. O mundo das taras é repleto de falsidades. Afinal o que mais a vida pode lhe oferecer? O sexo é uma delícia, isso Rigina demonstra que sim. Chega até a embaraçar-se, quando lhe falta o consolo de um mastro pulsante. Porém, apesar desse lenitivo, vive oprimida pelos corredores dos casarões de Salvador. Cidade onde o calor a sufoca e as pessoas lhe são estranhas. Ali a nação negra a intriga pelo exotismo e a conscupicencia. Principalmente agora, naquela eminência de despejo, os espaços lhe faltam, minuto a minuto, com suas chances restritas. Com isto ela já se vê morando no olho da rua. Não tendo coragem para nada, naquele dia, no aguardo do Rodrigão, sente-se humilhada desde o almoço. Onde a qualquer momento espera que surja para cumprir com o prometido. Entretanto. Sua roda da boa fortuna parece girar ao contrário. Os aluguéis estão em atraso. As contas vencidas e uma ameaça constante de ser posta no desamparo. Ela, contrariada, vira bicho, faz baixarias. Sente mesmo um curuquerê na alma. Se maldiz até. Inclusive agora. Apalpa as roupas dependuradas como se procurasse dentro delas um tesouro libertador. Anda para lá e para cá. O seu menino está dormindo, mas com o rosto suado pelo calor da tarde. E o Rodrigão nesse chega não chega. Rigina quando nervosa costuma até ouvir uma voz que martela dentro dela. Uma voz soturna vinda de suas preocupações. “É teu santo-de-cabeça”, dizia sempre sua mãe-de-santo, a Deolina, “você tem de desenvolver esse santo, senão tudo em sua vida anda para trás”. Rigina, naquela tarde quente ouvia aquela voz baixa, entrecortada, grave, dizendo-lhe que seu homem não viria. E, pior ainda, dizia que seu homem não lhe daria dinheiro nenhum. Dizia até que Rodrigão tinha outra mulher e que Rigina era a segunda opção dele. “Rigina, olhe para você... Se dê valor... Você deve parar de andar com esse safado”. Rigina, sozinha no quarto, nem sabia mais de si, desesperava-se, vestia seu casaquinho branco, olhava no espelho, ajeitava o vestido, molhava as têmporas, chegava até a porta da rua, entretanto não avistava ninguém vindo que lhe lembrasse a figura do Rodrigão. Então voltava, ia até a cozinha e colocava uma colher de açúcar num copo com água e sorvia aquilo que julgava ser o melhor dos calmantes. Ela disfarça e tenta até rir com sua situação. Entra no quarto onde Aleuzenev dorme, pega uma antiga foto que está na penteadeira. Lembra de Minas Gerais, das ruas de terra misturadas com pedrinhas brilhantes, lembra-se das árvores frondosas sempre cheias de gorjeios de pássaros e das imensas montanhas, as quais formavam seus azuis lá no horizonte. Salvador não tinha nada disso. Ela desesperava-se por não ter um lugar que pudesse chamar de seu. Está atarantada. Foi de Pará-de-Minas para o Rio, depois voltou para sua cidade natal e agora, Salvador. Mas dentro da penumbra do quarto ela não está exatamente em Salvador, pois traz nas mãos algumas fotos antigas. Ela sente-se velha. Até isso a oprime. Desconfiada, lesta, pasma. Verifica, ao atribuir, por tudo, que cantou, sorriu, chorou, zombou, amou, gozou e o tempo passou. Fotos de como e quando ela era menina. Junto com outras meninas. Fotos já esmaecidas. De um amarelo curtíssimo. Fotos com o melhor do que ela foi. E isto. Apenas sendo um presságio dela estar junto de pessoas queridas. Seres que ela nunca mais veria. Retratos em preto e branco. Com poses de caras e bocas restritas ao papel fotográfico. Alheadas desde que. Suas mãos trêmulas lembrando. E tão somente e apenas isso. Mas ela quer se iludir. Com o acumulado das dívidas a lhe cutucar. Ela e Alêu estão praticamente esmolambados. No frágil dessa suposição. Ela mira as fotos. Quer voltar a ter a pele viçosa de dez anos atrás. Os olhos sem aquele princípio de papadas. O cabelo faceiro. O rosto sem o apontar de precoces rugas. Será que somente ela caminha na contramão do mundo? Será que o universo é que está errado? E assim, neste conforme. Ela sente uma vontade de sumir e de praticar algum desatino. “Não quero nada de ninguém!”, ela pensa em voz alta. E acha que o espelho da penteadeira é a casa da bruxa: “Ele mente...”, “...Eu não sou assim...”, “...Não sou assim...” , “...Nunca fui assim.”... E depois ela tenta não pensar em nada e deita-se ao lado de Aleuzenev que dorme, mas nem consegue ficar muito tempo assim. A pressão lateja em suas têmporas. Foi até tentar dormir um pouco, mas não consegue. Mesmo para entreter-se. Depois se levanta, entra no banheiro e tranca a porta. Nada mais faz sentido para ela. Não consegue pensar noutra saída senão aquela. Olhando para uma lâmina de gilete que está ao lado de fragmentos de sabonete, na pia do banheiro. Mal sabia que aquela simples lâmina iria jogar suas chances no lodo e transformar Aleuzenev em menino andarilho e engraxate. Contudo, pouco importa o futuro quando se está naufragando num poço sem saída. Ela escuta aquela voz soturna dentro dela que repete não haver outra saída. “Acredite Rigina: a única solução é esta. Só esta mesmo...”.

Beto Palaio

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