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O Inferno do Global e a Ilusão do Poder 
Por Francisco E. Menezes Martins 

FILOSOFIA POÉTICA EM ALTA VELOCIDADE. Metáforas corrosivas. A ilusão, a utopia, a certeza e o sujeito, centrifugados pela globalização, crescente cenário do virtual. Como um relâmpago que rasga o horizonte numa noite de tempestade, Jean Baudrillard dispara contra o holograma da simulação generalizada e tenta atingir, com sua metralhadora giratória, os centros da irradiação em rede. Power Inferno, recente publicação da Editora Sulina, reúne artigos jornalísticos publicados na imprensa francesa, após 11 de setembro de 2001, e sintetizam sua já tradicional visão dos fenômenos extremos, que o acompanham desde a Sociedade de Consumo.
Ao longo dos últimos anos, as guerras e os atos do terrorismo internacional não passam despercebidos da lente ironicamente niilista: Guerra do Golfo, Croácia, Bósnia, o caso do Teatro de Moscou, Romênia, entre outros, foram analisados em livros anteriores, sob suas equações subjetivas, como simulação, transpolítico, irradiação viral de valores, hiper-realidade, ilusão, sedução e cultura transestética. Desta feita, Baudrillard se alimenta do terrorismo globalizado, virtualizado e gerador do senso comum, de um dentro e um fora da cultura ocidental.
Como se ouviu repetidas vezes depois do atentado: “O mundo nunca mais será o mesmo...” O centro simbólico do poder em teia, que se globaliza para não morrer de subnutrição, caiu duas vezes. Cada torre nocauteada fez soar o sino de uma batalha perdida. Por que duas torres? Baudrillard argumenta: 'O desabamento das torres é o acontecimento simbólico maior. Imaginem se não tivessem desabado, ou que apenas uma delas desabasse, o efeito não seria de modo algum o mesmo. A prova gritante da fragilidade da potência mundial não  teria sido a mesma. As torres, que eram o emblema dessa potência, ainda a encarnam nesse fim dramático, que lembra um suicídio' (p. 14).

O inesperado ataque dava a impressão de ser um acidente, com sua posterior repetição eletrônica. A ilusão de ótica se deu pela embriaguez da simulação de imaginários. A maior possibilidade era da dobra da cobertura do acontecimento e não da duplicação do mesmo. A segunda torre atingida confirmou o ato de terrorismo.
Encerrou a ilusão do acidente e fez o mundo ocidental duvidar de sua irredutível potência. O Mal triunfaria? Baudrillard busca inspiração na primeira dissertação da Genealogia da Moral, de Nietzsche, para proferir que:
“O raciocínio da consciência moral é este: dado que somos o Bem, quem nos atacou só pode ser o Mal. Mas se, para esses que pretendem a encarnação do Bem, o Mal é inimaginável, então só pode ser Deus quem os ataca. Para puni-los, no fundo, pelo que, a não ser por um excesso de Virtude e de Poder, por essa falta de cabimento que é a indivisão do Bem e do Poder”(p. 32).
O Mal tem muitas faces. Talvez, mais do que um jogo de cartas inteiro. Osama Bin Laden era este rosto. As crianças o temiam. A América chegou ao ápice da paranóia. Seria atacada pelo correio. Todos envenenados pelo Mal. E o Iraque? O inimigo não era Saddam Hussein? De pai para filho, a herança de uma batalha ainda não venci da. Baudrillard já havia adiantado em seu América (Editora Rocco, 1986) a questão da “utopia realizada”, que levaria a novas fronteiras a missão messiânica de expansão global, sob o pretexto da proteção mundial. Somente o Mal seriacapaz de desafiar esta lógica. Nova York, capital da América Global.
Meses depois, os Estados Unidos desistem de caçar Bin Laden e Saddam volta a ser o inimigo público número um.
A raposa e as uvas? Agora, as armas químicas iraquianas poderiam colocar o  mundo em perigo. Era preciso uma nova resposta. Bush II, a vingança. Desta vez, como no cinema e ao contrário das últimas versões da realidade, a América reagiria.
As imagens de 11 de setembro tinham um rótulo: “America Under Attack”. “O espaço virtual do global é o da tela, da rede, da imanência, do digital, um espaço-tempo sem di men são.” (p. 55).
Assim, o campo de batalha já estava definido. Se o Mal chegou pela tela, O Bem atacará através dela. Questão de honra, de orgulho:
“Faltava aos americanos uma ferida como essa (em Pearl Harbor eles foram ata ca dos em termo de guerra e não de agressão simbólica). Revés ideal para uma nação atingida no coração e livre para, por tê-la expiado, exercer toda sua boa consciência (...) Os Estados Unidos tomam-se pelos Estados Unidos e, em mal de alteridade, atolam-se em si mesmos na mais louca com paixão. Sejamos claros: Os Estados Unidos são aqui apenas a alegoria ou a figura universal de toda potência incapaz de suportar o espectro da adversidade” (pp. 33-34).
Muitas hipóteses surgiram para explicar a origem do terrorismo. Baudrillard circula por pontos de vista e pensa o objeto pelo deslocamento em perspectiva do sujeito. O pensamento radical, do qual é intérprete, pretende levar a idéia ao extremo e se traduz também no conceito: “O 11 de setembro levantou com violência a questão da realidade, cuja hipótese fantasiosa do complô é subproduto do imaginário (...) Deve-se antes de tudo salvar o princípio de realidade.
O negacionismo é o inimigo público número um. Ora, na verdade, vivemos já amplamente numa sociedade megacionista.
Mais nenhum acontecimento é 'real'. Atentados, processos, guerra, corrupção, sondagens: nada mais escapa aos truques e tudo está fora da possibilidade de decisão. O poder, as autoridades, as instituições, são as primeiras vítimas dessa desgraça dos princípios de verdade e realidade” (pp. 46-47).
É impossível compartimentar o pensamento de Baudrillard em categorias. A sistematização é sua inimiga. As idéias atravessam o sentido colocado em cada texto. O tema se repete. A análise, idem. Os acontecimentos são trocados por seu signo de artificialidade: as telas do senso comum e a alfabetização de fragmentos a partir do intercâmbio de sentido compartilhado.
O fluxo e a permanência se alternam na percepção da perspectiva proposta.A potência mundial muda de nome e endereço. O Mal se transfigura no jogo da circulação da informação. Versões da fábula da vontade de poder humana reduzida ao ato de dominar em detrimento do ato de criar (Nietzsche). A natureza humana, disposta nas superfícies planas e nos relevos imagéticos da geografia transpolítica, tornada refém. Troca-se a vontade de ilusão do imaginário pela “servidão voluntária” da hiper-realidade. Troca-se o Mal, vestígio do que ainda não foi simulado no interior do território do Bem. Além do senso comum, a inteligência coletiva de um ebanho customizado, que acredita haver superado as limitações da consciência individual.  Baudrillard sorri maliciosamente. A autopublicidade dos Estados Unidos não conhece o Real. A referência é seu próprio simulacro. E as máscaras, trocadas, ja mais retiradas. Qual é a face da guerra virtual? Ou melhor, em qual interface a máscara técnica do poder circulará como senso comum da moral da positividade?

Power Inferno. Jean Baudrillard. Porto
Alegre: Editora Sulina, 2003. 75 páginas.
Tradução: Juremir Machado da Silva".
Revista FAMECOS - Porto Alegre - nº 21 - agosto 2003 - quadrimestral - páginas 148 - 150)

Francisco E. Menezes Martins é professor do PPGCom - FAMECOS/PUC-RS