Eis em prosa incontida. Uma brasilidade nascida no bafejo da cachaça. Soubessem já. Em estilo de cordél. As vomitações de Adamastor Pastinha...



ALÊU E A SEREIA (XX)

AdaMAStoreNadam+AIS= No princípio era uma pedra azul. Apenas. Como que uma falsa ágata ou zircônia. Ou mesmo um quartzo anilino. Dessas pedras mal nascidas. Que o tempo ao fado concretiza.  Em estátua. Em  camafeu.  Em mimo. Esculpido , por artes, para sancionar ilustrados destinos. No formato de humano herói. Num breve santificado que se leva ao pescoço. Ou santinho impresso em quadricômia. À sorte. Ao mando. Sem pressa determinada. Solto em seu roteiro. Até de maneira razoável. Desobrigado de ser verdade. Mesmo que acompanhado. Entre os deleites deste Recôncavo. Onde garças voam. Ao som de tiros esportivos. Muitos dos quais esta selva tropical abafa. E o sangue jorra. Desde caça avultada. Aos mais sibilantes colibris... “O seu rabo, Maranhão!”. O Tenente das Dores acordara irado. Quando assim. Apelidava qualquer um por “Maranhão”. Estamos mesmo na Bahia. Onde o Tenente, chamando os locais por Maranhão, imitava os paulistas, para quem todo nortista é baiano. Esse é um costume único do Das Dores, sua marca de dê-êne-á. Aos rompantes o Tenente se enerva: “aqui não tem ninguém acoitado não, Maranhão!”. Logrado estava o Tenente, ali não tinha mesmo como ele exercitar sua linha de tiro. Pois não havia nada de errado. Não tinha nenhum comunista escondido. E estavam na casa da Marinete. Ela puta. Porém distinta. Já que era prendada a ponto de tocar um instrumento bojudo e desproporcional chamado violoncelo. Fazia seus exercícios de violoncelista enquanto suas agregadas acarinhavam, com frente e verso, aos inúmeros fregueses. Elas estraçalhando seus orifícios de Vênus ou os de Diana, ou mesmo abocanhando um mastro de Febo, enquanto a Marinete ficava a entreter-se de varão encastoado retirando notas adocicadas do seu violoncelo. Mas, no dia da batida policial, ela parou com a melodia e associou a investigação com uma só pessoa: “será que esses meganhas estão procurando pelo Adamastor?”. Não longe dali, o dito Adamastor Pastinha, tramela de fita, poeta sem remédio, professor afastado da cátedra, está com o seu táxi de aluguel, um ganha-pão momentâneo, estacionado em frente a um boteco  em Salvador. Como sempre Adamastor está espevitado depois de algumas pingas. Assim, subiu numa das cadeiras de lata do bar e lançou seus disparates habituais: “vejam bem, seus sórdidos!... Vocês sabiam que o quintal do Pequeri é bem aqui... E o quintal de Paquetá ficou prá lá? Quero ver quem é que sabe mais nome de árvore que eu. Cubro a aposta de ontem que é de cinco mil réis... Olha a minha lista... De memória... Pois não pode ler nenhum papel não... Sai daí João Tibúrcio... Prá ganhar a aposta tem de recitar todas as árvores que tem no Jardim Botânico... É só ir lá e ir lendo as plaquinhas... Isso é Brasil, meu nêgo... Brasil... Tá sabendo... Mas não me atrapalha não... (Ameaçou descer da cadeira, mas ficou firme)... Abacá é a primeira árvore... Atenção para a lista, minha gente!... Ao depois de Abacá vem... Todas elas outras... Completando com Arapitiú. Bico-de-Ouro. Bicum-do-miúdo. Calos-do-profeta. Castanha-flor. Barnico-cabaceiro. Baobázinho. Burê-santo. Dasdô-diminutas... Foiáge...”. Neste ponto alguém dentro do bar gritou que Foiáge não era árvore, pois era tudo quanto é mato que existia. Mas Adamastor nem ligou para os comentários e continuou com sua lista das árvores, repetidas de memória: “...Árvore-de-açafrão. Aguaraúna. Baba-de-sapo. Certafrô. Campainha-de-sino. Paracapira. Pé-de-baga. Falôsandá.....”.  Mais uma interrupção, com a qual o Adamastor grita: “...claro que tem! Claro que tem!... Vai lá estudar Seu Pedro Vazão... Vai lá estudar, sô!...”. E depois continua sua ladainha: “eu parei no Falôsandá... Depois vem... Açafrão. Assa-peixe. Baunilha. Bálsamo...”. Depois Adamastor, ele próprio, se desinteressa de ficar falando tanto nome de planta e propõe uma saudação levantando seu copo cheio de pinga: “mirem... Isto sim é que é a rainha dos destilados... Mesmo dos bons... Elixir engasga-gato, espírito-que-esquenta-por- dentro, goró, branquinha-maldita, filha-santinha-do-senhor-de- engenho, guirgolina, catinguenta, parceira-de-dar-ao-santo... Ó imaculada pinga pura!... Te arrenego, pois o que esquenta vem de fora... Mas o que esfria vem de dentro... Ofereço este gole para a solidão dos taxistas da Bahia!”. Disse isso levantando o copo, de si para ninguém, o poeta Adamastor Pastinha. E depois complementou: “eu estava só começando, seus putos!... Hoje estou para as poesias...”. E disse mais. Outras coisas decoradas, letra por letra: “todo bicho-comedor, coloca um dia o chifre no cio... O certo é que a comichão acaba... O desejo se esvai... Só sobra dissipação, dissolução, finitude... Vem daí a morte do sarro, do sátiro e do sedutor... Sessenta e nove nunca mais... O gosto do ácido xibílico fica só no imaginado... Para seus definitivos áis... A coisa mais preciosa que é uma boa xãna... Aquela deliciosa carne mijada... Desta ele ficará totalmente afastado... Existe punição maior nesse mundo?...”. Depois, definitivo, cuspiu no chão, descendo da cadeira para pedir outra pinga: “fiquem espertos... O perigo vem do próprio homem... Pois o homem é como o caranguejo que limpa pela frente e suja por detrás... Estes são os estados da verdade!”. Enquanto, algo serelepe, feliz de ser, naquele bar de Salvador, o Adamastor ardia de copo em copo, inclusive, o que ele nem sabia era que seus discursos avulsos o estavam entregando como ativista... E ele na verdade era apenas um piadista. Um bobo desbocado. Suas falas eram tolas e inofensivas. Eram. Lições que ele ministrava, ao acaso, nas filas de desempregados e grevistas. Babozeiras. Ou os seus ditos desgarrados, entre uma corrida e outra, aos taxiados da vida. Corre aqui, corre lá. Estas parolagens vieram a furo. Envolvendo-o, com consecutivas alcagüetagens, no rol dos mais temidos comunistas que já existiram abaixo da linha do Equador. Mas só depois. Pois no aqui agora. Nesta porta de bar. Onde as verdades se incineram. Ou o existente se resume. Em reflexões gratuitas. Numa brasilidade nascida no bafejo da cachaça. Soubessem já. Em estilo de cordél. As vomitações de Adamastor Pastinha. No todo eram um embuste. Apenas um falatório sem filiação partidária. Estórias que fossem, vazias de maldades, no todo azul de um Adamastor versado. O que mais ele gostava de falar. Uma correição de qüiproquós históricos, um mundo soprado sem vírgulas que acabou, afinal, por assustar os ignorantes de carteirinha. Os apátridas. Ditos sem destino. Os militares e políticos canalhas da extrema direita... 


Beto Palaio