sábado, 8 de dezembro de 2012



Paris - Musée d'Orsay: Manet's Olympia

COMPADRE MANET E COMADRE OLIMPIA

No quarto de Olímpia. Eduardo Manet ficou ali por um tempo bem curto. A palavra ternura em seus olhos. Especialmente promissora. Olímpia estava casada fazia sete anos com um banqueiro local. Entretanto. Cristais que se mantém limpos por exterioridades. Ela era. Semi-instruída no amor avulso. “Não se trata disto, compadre, o homem é pura desconfiança desde sempre... O meu desconfia até da sombra... Mas que sombra gorda, não é compadre?”. Olímpia chamava Manet de “compadre”. Uma intimidade de gente de interior. Superficialidade gratuita. Costumes de moça da roça para um antigo cavalariço.  O pintor a olhou, conforme descrito no início deste conto, com distanciada ternura. Um vento bateu na janela que foi logo fechada por Amely, a ama protetora de Olímpia. Uma certidão de futricas envolvia essa mulher da alta sociedade parisiense. Não obstante. O caminho desta estória está seguindo aquele velho chavão do “você soube?”, onde se destrava a guia de corte fotográfico e a estória flui que é uma beleza. Doce língua bárbara é aquela que inventa estórias. Sorrateiramente o mundo sonhado se desvenda e, depois, revela tudo o que até então se desenhava de forma econômica. Manet tinha grandes idéias ao pintar o retrato de Olímpia. Enquanto Amely lhe mostrava um buquê de generosas flores. Ela falava para ele num linguajar entrecortado. Uma província de infidelidades se desfraldava além. Uma paisagem demorada. Como se a parelha de cavalos puxassem a carruagem de forma manietada. Qualquer coisa aconteceria além daqueles campos repletos de pequenos amontoados de feno. Olimpicamente, os versos são feitos de vento. E o campo é antigo, abrigado por uma terra gasta e negra. Estivera chovendo a noite toda. Mas uma esplêndida claridade abriu um regaço nas nuvens. A palavra surgiu. E nasce um dia proveitoso e belo. Pássaros cantam no prado agora verdejante. Além, um chalezinho de montanha. Um caminho entre pedras de cantaria. Bocas e batons dentro da carruagem. Olímpia e duas amigas chegam ao endereço combinado. Ela agenciava moças para um certo Capitão Rodrigo. Ele contratara Olímpia para este trabalho insano. Pois ela agia discretamente. Tinha grandes relacionamentos com a parentela distante. Todos a tinham como uma estrela embalsamada na riqueza. Enquanto. Ela mandava recados de rosa dos ventos. Para o norte, “peça para Mariazinha vir me visitar”. Para o sul, “avise a Lidia que chegou a hora dela conhecer Paris”. Para o leste, “escrevi este bilhete para a Clarissa... Depois de ler ela vai ajeitar as malas e vir morar comigo... Aguarde para que ela venha na mesma carruagem que você”. Para o oeste não havia recado nenhum, pois o oceano imenso deitava ondas desde a Inglaterra até Nova York. Em completa verdade. Na sórdida muralha nua. “Minha vida. Pois não joguei fora com um tal de Reinaldo?”. Olímpia revela as escadarias sombreadas de um velho sobrado. Reinaldo era sobrinho de um contra-almirante holandês. Orgulhoso do tio, ele exibia uma velha bússola de marinharia mantida num estojo revestido de veludo azul escuro. Ainda, como num broche, um antigo paquete de velas arriadas, um mimo feito de ouro. Foi muito curta a estadia de Olímpia na casa de Reinaldo. Ali ela desfraldava suas fantasias em longas divagações silenciosas. “Cheirávamos ópio. O que você espera de quem cheira ópio além de divagações fantasiosas?”. Depois ela morou só em Paris. À custa de um finório cafajeste. Um cafetão de nome Capitão Rodrigo. “As luzes da cidade. Esse espanhol fascinante. Acabei fazendo uma besteira”. Olímpia revelava ao seu compadre Manet as suas primeiras incursões na venda do próprio corpo: “não é tão mal assim, compadre... A putaria é muito organizada... Há essa indignação geral que até compreendo... Mas tudo isso não passa de futricas vindo de pessoas quebrantadas, sem talento para o amor, tentando justificar suas pobres vidas”. Manet ouvia essas confissões com a reserva de um amigo atento. Ele preparava mais uma seção de pintura onde o verde esmeralda teria papel preponderante para o cortinado e o fundo que realçaria Amely sobrecarregada de flores. “E você não soube?”. Com esta pergunta Manet ficou alarmado. Tinha perdido parte da conversa de Olímpia. “Não soube o que?”, ele perguntou para ela. “Compadre, você não estava prestando atenção ao que eu falava?”. Manet, ainda no trabalho de apertar um tubo de tinta à óleo da cor verde esmeralda, fez sinal com a cabeça que não estava mesmo prestando atenção ao que ela falava. “Ah, não importa compadre... Não importa mesmo”. Olímpia fez um biquinho com os lábios como se estivesse arreliada com ele. Depois sorriu e retirou, do buquê que Amely lhe ofertava, uma grande flor vermelha que ajeitou no cabelo. “Que linda!”, exclamou Manet. A seguir o pintor deixou de lado o tubo verde esmeralda, apressado como quem não quer perder a inspiração, procurou na caixa de tintas pelos tubos de cores vermelhas.

Beto Palaio



quarta-feira, 5 de dezembro de 2012


Deu no Pasquim. O Aldir Blanc e o Paulo Francis falaram, “não leu não?”. 

Alêu e a Sereia (XXXIV)

THelonelype+ople= Até Alêu se surpreendia de como passou a perceber as minudencias da recente história do Brasil. E de como ele amadureceu com esse entendimento a ponto de até dar razão àqueles que perseguiram, enquanto parte da milícia, até pouco tempo. Começou a lhe parecer que o povinho político da esquerda eram muito mais brasileiros do que aqueles que governavam o Brasil. Por esses dias Alêu lê também, nos jornais, sobre o novo avanço civilizatório recém chegado ao Amazonas. Um sem fim de grileiros e jagunços cujo lema era floresta abaixo e grama em cima para o boi comer. Fé desvairada no progresso que a motosserra tosa. Qualquer um testemunha o descalabro que se pratica com a floresta. Começou naquela década de sessenta. Minava para todo lado exploradores sem nenhum respeito pela natureza ou pelo direito alheio. Madeireiros temporões, gente que não vale dez merréis de estrume, nas suas ocultáveis ações, fugazes como o besouro da farinha, agindo como parasitas tanto quanto o carrapato e a solitária tênia. Atacando especificamente onde a mata abriga a embuia, o cedro ou o mogno. Para ali faziam vir bulldozers que num instante abriam trilhas vicinais o qual davam passagem para carregadeiras e caminhões-truque. Limpavam aquela área e se mudavam novamente para outro segmento da floresta. Crimes que a lei determina como inocentes quando para usufruto próprio. Esses candangos mambembes. Sem atinarem com responsabilidade ou dolo. Aplicados na esfoliação bem mais danosas do que bilhões de esfaimados gafanhotos e lagartas-saçuranas. Agiam criminosamente na total impunidade. Aqui, ali e acolá. O mundo civilizado pedia. A captura desenfreada por aves, orquídeas e peixes raros. Brazil For Export. Tudo numa liquidação, um bota-fora geral. Ao toque de caixa. Com o ritmo da produção já sendo sugerido. Quando um balcão de comércio era sonhado secretamente por qualquer ribeirinho. O fio do discurso é o mesmo que afia o fio de corte do machado: o desenvolvimento. Das amarguras. Do rala-e-rola. Do caseado e seus abotoados. Dos nichos propícios. Da vida que sai dos trilhos. Da alma cabocla, falsa sendo, que é a predisposição ao clássico entreguismo. Caluda! A Amazônia morre em silêncio. O motivo é que. Em tempo de guerra as musas silenciam. Ou porque a TV mudou de tema. E a notícia envelheceu. Mesmo sentados na calçada. Telespectadores usam a tevê como fenômeno do eletrônico e da ótica. E quem é que sabia? Que a tevê está aí somente para silenciar os pensamentos? Deu no Pasquim. O Aldir Blanc e o Paulo Francis falaram, “não leu não?”. A graça difícil exige um sacrifício maior. Alêu relembrando de seus suplícios de quartéis e fardas cáquis. Tomou um caderno brochura de cem folhas e uma caneta Bic preta de escrita fina: “descrever, para mim, é como colocar meu pensamento no sol da manhã”. E foi no fácil. Alêu dos espíritos. Rememorando e sendo acompanhado por uma vontade louca de sair por aí guerreando em favor desse nosso Brasil. Anotados fartos. Se alguém não cuida do que é seu. Heim? Quem vai cuidar? Alêu passa até a dar razão ao Capitão Lamarca. “Será que estou me comunistando também?”. Mas foge de pensar nessa linha. Agora é o Brasil das águas paradas que lhe atenta a cabeça. Depois das bugigangas feitas com sementes da floresta. O uirapuru empalhado e as borboletas emolduradas. Peixe-boi existe para fornecer banhas curativas. A casca de tartaruga tracajá presta-se para a confecção de cinzeiros. A folha de caamembeca é própria para diarréias. As mãos do pai do carvão não param de alimentar os fornos. Alêu a tudo assiste. Um turista baiano aprendendo a ser bugre. Em Iripixi, na região do Trombetas, onde o índio é peão e trabalhador braçal, há uma placa: “troca-se óleo de copaíba por arroz, sal, açúcar, café, leite em pó, sabão, gasolina ou óleo diesel”. Assim, meio sem ter de pedir explicações. Os fatos amazonenses se impõem. Ditados populares lhe são estranhos. Alguns explicáveis. Como o dito “quem quebra galho é macaco gordo”. E Alêu, filho da Bahia, aprende rapidinho que o menino não nasceu hoje porque a parteira não veio e que o barco não foi porque o rio baixou. Mas Alêu nem está atento para a urgência dos novos costumes. Tudo para ele poderia ser explicado depois. Mas não agora. O turbilhão de novos fatos. Nem ocupa espaço. O objetivo de sua vida é só um. Por isso mudou seu rumo. Está perdidamente apaixonado por uma linda mulher. E que até sonhou com ela. No caso sendo a segunda vez que, em sonho, Mangagaí lhe aparece, subitamente, como uma mulher-peixe. Segredos nômades como ele. Que nunca se explicam. Alêu já se sente um paraense. E quase desobrigou-se da busca por Mangagaí. Até que descobriu, sem querer. Estando no distraído. Numa festa de arrasta-pé. Na confiança do que foi segredado pelos cantadores de viola. O mundo não é mesmo fabuloso? Tudinho ele agora quer captar, letra a letra. O vir a ser da letargia paraense, essa é a mágica, no que tiver de vir, é só ter fé, algum dia virá. Nem que a vaca tussa. Tudo no real. Fainas. Onde mais isto. Peixes da alegria sobem uma cachoeira dentro de Alêu. As nuvens que passam chamam por ele. Uma caravana de papagaios arrepia pouso na paineira. Miragens de gritos de algodão. Olhos de janelas. Muitos seres. Abandonados ao sol. Imagens de chuvas distantes. Trovejou na direção do Xingu. Sozinho a bordo. Tentando relaxar. A contagem regressiva. Quatro, três, dois, um e, finalmente, zero. O céu destampado. A terra dos submersos, aquela somente imaginada, está chegando cada vez mais perto. O ponto infinito baba. “Vem água por aí!”. Splash. Chuá. Relâmpagos estalantes. Corredeiras de não ter fim. Choveu um mês e meio seguido. Bom tempo para gestar vocábulos. Águas em estado de encantamento. Chove que chove. Assim ininterruptamente. Água doce abrindo os peitos para receber mais águas. Deflúvio e dilúvio. Águas densas e palavras de arremate. “Ah, o tempo agora não passa. Falta um mês para a festa de São João”. Todo dia Alêu combina a viagem ao Marajó com Santo e Padroeiro, a dupla de cantadores. E eles sempre prestativos: “é prá já, mano... É prá já...”.

Beto Palaio

terça-feira, 4 de dezembro de 2012



Lata Antiga  De Goiabada Cascão - Irmãos Alves - Outros Objetos de Decoração
Entretanto os excluídos possuem uma criatividade inquebrantável: cálice feito com lata de massa de tomate Elefante, canequinha de lata de leite Moça, canecão de lata de óleo Havoline, frigideira de lata de goiabada da Cica, caldeirão de lata de querosene Jacaré. 

Alêu e a Sereia (XXXIII)

Égrão+Parádecáedelá=O carapanã pinica porque não aprendeu a lamber. O boi baba porque dorme em pé. O homem sonha porque é extravagante. Quem julga caçar é caçado. O homem é a única criatura que recusa ser o que é. Um tema leva ao outro. Toicinho ou toucinho? Boró ou borogodó? É ao crédulo. Pau ou pedra. Do retratado chapéu Ramenzoni ao humilde quepe feito de folha de jornal. A posse só sobrevive com um prenúncio de desapropriação. A vida só se perdura nos opostos. Privilégios nababescos para os reis do monopólio e denúncias vazias para quem não tem nada de seu. Entretanto os excluídos possuem uma criatividade inquebrantável: cálice feito com lata de massa de tomate Elefante, canequinha de lata de leite Moça, canecão de lata de óleo Havoline, frigideira de lata de goiabada da Cica, caldeirão de lata de querosene Jacaré. Na hora da onça beber água, o roto sempre vai falar mal do rasgado. Pelo bem e pelo mal. O pão, mesmo amanhecido, só se valoriza com manteiga Aviação. Tempos de vôos incertos estes. Aonde os donos da cocada preta, gentes do governo, só andam na trilha dos favorecimentos. É Coroné prá cá, Coroné prá lá. Os lambe-botas que vivem de persistir nas migalhas oficializadas. Setembrinos. Os tropicalientes. Do cartoriante aos advogadinhos de porta de cadeia. Nas marmeladas. Acautelai-vos. Em casa de saci, uma calça serve para dois. Depois vede. O senador Cristóbal Tarefeiro faleceu e emprestou seu nome para uma avenida no centro da cidade. Claro está. Políticos nunca morrem, eles se eternizam nos abonos infindáveis, mas também nos nomes das ruas ou praças do município. Os que não conseguem placas de rua põem-se a imaginar outras regalias. Tudo para desandarem no bom viver da frouxidão. Iguais nesse tanto. À erisipela em banha de muruca. A meta? Fique feliz com pouco, mas deseje sempre mais. Entretanto. Na outra ponta da linha. Com seu pé firme em Belém, não obstante seus anseios, de olho somente no Marajó. Alêu fica só no resguardo, na espera das festas juninas para ir rever Mangagaí. Por essa esperança ele fica sóbrio e com mais nada se amofina. Deu até de fumar pouco. Trocou o Hollywood sem filtro por cigarros Minister. Passou a agradecer os astros e beijar santinhos. Começou a ler romances na rede por horas a fio. Estórias de cowboys maltratados que sempre se vingam, seja de uma tribo inteira de índios, seja de um bando de renegados. Estórias de espionagem, onde o espião sempre encontra um jeito de se livrar da bomba-relógio amarrada na sua cintura. Estórias de mocinhas de bom parecer, iludidas com meninos ricos e trapaceiros. Estas e outras estórias do mesmo calibre. Até o ponto de ele repudiar de vez esse tipo de leitura. Alêu estava lendo por ler um outro desses romances baratos, onde se contava a estória de duas amigas de infância que se encontram em Londres depois de afastadas por muitos anos. Quando os filhos delas se conhecem e passam a se relacionar, nota-se que, enquanto o filho de uma delas tem atitudes modernas, a filha da outra é retrógrada, extremamente careta e está sempre envolvida em conflitos de cunhos pessoais. Uma estória envolvente e contextuada, digna de um premio Nobel da literatura. Mas Alêu desiste de continuar a ler. Aquilo estava enervante demais. Puritanos a lamentar seus achaques burgueses. Numa Londres permissiva e coerente. Alêu se compara aos personagens fictícios. Numa realidade sempre amena para quem já pegou em armas e viu um bocado de atrocidades pela frente. Forçoso que ele comece a comparar cidade com cidade. Por exemplo, embora o contexto social de Belém fosse tão ou mais precário que o de Salvador, Alêu se dá conta que por ali não existem grupos políticos atuando tanto quanto na capital baiana. Nem a polícia agia por ali com tanto desrespeito pelo cidadão. Até coisas aparentemente banais que ele testemunhou, onde o rompimento dos valores sociais eram gritantes. Ele lembra-se de que assistiu a ação da policia repressiva agindo até contra um bando de hippies que viviam perambulando pelas praias de Salvador. Observou quando um investigador separa do meio dos hippies uma garota que era muito bonita, mas que aparentemente estava tocada pela maconha. Ele ouviu isso do investigador: “só vamos levar a belezinha aqui... O resto pode continuar pensando que é flor!... Numa boa!... Numa boa!”. Um pouco mais tarde aquela jovem seria colocada na desrespeitável tarefa de chupar a bimba de três policiais que ali estavam. Presumivelmente para arrancar dela confissões inexistentes. Na qual tarefa eles falavam que se ela mordesse um deles iria tomar bala de chumbaço no escutador de rock & roll. Isso Alêu testemunhava sem ter poder ou mando para dar um basta naquilo. Por estas e outras é que Belém lhe parecia providencial. Por um lado era uma cidade pacata, mas isenta dessas insanidades. Ao operístico resumo. Ele ficava até agradecido por ter se proporcionado essa mudança radical. Ao cabo do que. Por absurdo que lhe parecesse. Havia um leve perfume tutti-frutti no ar. As lides da flora tropical rejuvenesciam qualquer outro poder ou atavios das águas. Mas Alêu não estava de todo alienado. Uma lição ele aprendera de todo tempo que passou no meio dos caça-comunistas. E isso dizia respeito ao embate entre o que era real e o que o governo militar estipulava como sendo real. Alêu pescou naquele turbilhão de desencontros e mentiras até intuir, de si para si, que realmente existiam diversos brasis num só Brasil. Como numa fieira de caranguejos essas enormidades estavam atadas umas às outras: o brasil-caravana-da-alegria ligado ao brasil-quadrilha, ao brasil-atoleiro, ao brasil-indisposição, ao brasil-vaqueiro-sub-agrícola, ao brasil-regalia-dos-outros, ao brasil-do-brilho-fácil, ao brasil-entreguista, ao brasil-pátria-mãe-gentil... 

Beto Palaio

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


 E aconteceu aquilo. A chamada coincidência. Estava Alêu num forra-bucho, um arrasta-pé sem compromisso de hora, quando ele conhece dois cantadores de viola.

Alêu e a Sereia (XXXII)

AMUsadaMU+dança= Debaixo da ponte passa algumas folhas flutuando e dava para ver o fundo de areia através da água levemente enferrujada. Alêu, que  observava a passagem das folhas flutuantes, estava refugiado na aquática Belém-do-Pará. Abandonou repentinamente a carreira policial e caiu, tanto quanto as folhas flutuantes, no mundo da arribação. Tanto sacrifício para ficar morgando numa pensãozinha paraense de quinta categoria. Ao redor dali ele estranha tudo. Salvador é uma terra de pretos e mulatos. Belém é território da mestiçagem de branco com índio. Mas a raça índia vence a parada. O caboclo domina. Então ele se vê morando numa imensa tribo, onde os brancos de verdade parecem estrangeiros. Logo ele descobre que sim. Com os pardos brasilíndios sendo maioria, há denominações especiais, vindas da parte deles, para os vários tipos de brancos. Ou são os turquinhos e turquinhas, ou são a alemãozada, ou são os gringos, denominação em geral dada aos norte-americanos. Fora isso. Alêu estranha tanta água ao derredor. É recurso aquático que não acaba mais. Um oceano em si que se impõe com o subir e descer das águas. Onde os pequenos regatos chamam-se furos. Onde os igarapés são rios pequenos que ligam grandes rios com temporárias lagoas. Ademais existem as várzeas inundadas. Restos de enchentes. Águas empoçadas das chuvas. Águas pretas de aluvião. Águas ferruginosas, estagnadas ou não. Em meio à tudo aquilo, Alêu gosta de andar na beira do porto fluvial. Ele fica horas zanzando no mercado do Ver-o-Pêso. Encontra ali uma grande variedade de frutas, madeiras e peixes que o brasileiro comercializa com o mundo todo. Ali ele conheceu de perto o pirarucu, o bacalhau brasileiro. Peixe demais de grande. Com olhos mortiços numa cara de bagre. Ele logo fica fã das mangas, também experimenta a pupunha. E entretém-se em provar as azedas bagas do guaraná. Mas logo se cansa daquilo tudo. Quer outras novidades. E brevemente as abraça. Pois até os seus santos de fé mudam. Troca a Iemanjá das praias da Bahia pela Mãe Dandá, a Yara das águas chocas. E sua sorte está definitivamente lançada. Agora é nas pedras do cais que o seu destino afia a lâmina de corte. Num remoer de novidades. O estralado e lento desfile de fatos. Dando viços. Alêu e seu novo reinado em Belém. Novidades destras e ambidestras. Que isto já pertence ao texto do diário informante de Aleuzenev da Silva. No rabiscar da caneta Bic. Anos sessenta para setenta. Justo no tempo em que Pedro Álvares Cabral estava prá lá e prá cá impresso nas notas de mil cruzeiros. Ele foi, por breves três meses, o rei das princesinhas da Praça da República. As turquinhas não falavam de outra pessoa. É Alêu prá lá, Alêu prá cá. Esse danado do Alêu surgiu acintoso para andar nos trinques. Besteirava em gafieira. Jogo de 21. Bilharécos. Noitadas de samba quadradinho. Mas principalmente em festas nas baiúcas de putaria, dotadas de rodadas de fumo e roleta. Deu de se divulgar travado no copo. Um vício puxa outro.  Alêu e o santo absinto. Nos conformes do insubmisso. Assoviava mirando-se no seu espelhado sapato de verniz, e por dentro do sucesso das rádios: “se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada. Não vá dizer meu nome sem querer, à pessoa errada”. Vésperas de grandes colheitas. Completamente embananado. Sussurrando tons ao léu, só na vadiagem. Alêu, o mulato insoneiro. Ele servindo de guia para turquinhas desamparadas. As quengas estagiadas em Belém-do-Pará. Putas importadas. Transcertas de luxo. Aleu, ao fisgar. Madrugadeiro que era. Gamado na lengalenga que elas usavam: “ei, gatô... Fáis festa prá iêu... You quer iêu?... Si, non ser bom?... Comer iêu?”. Entretanto, no espaço do que é reservado. Ninguém mergulha no Rio Jordão sem querer ser batizado. Estamos na atmosfera ideal e caliente da linha do Equador. O perambulante Alêu nem dá conta. Que esta sua decantada e doce vida. É inclusive um tanto circense. Depois de dois meses de farra. Ele resolve mesmo que seu destino, o verdadeiro, tem de se cumprir. Afinal, não viera ele para Belém na perseguição de Mangagaí? Pois os fatos coincidentes são claros como as águas do Guamá. Alêu agora está mais para se tornar um protagonista da farsa do Boto Tucuxi. De tanto acordar e dormir águas doces. E aconteceu aquilo. A chamada coincidência. Estava Alêu num forra-bucho, um arrasta-pé sem compromisso de hora, quando ele conhece dois cantadores de viola. Estes sendo Santo e Padroeiro. Quando eles segredaram que tinham um compromisso de festa marcada no Marajó. Onde iriam tocar no São João de um fazendeiro. É que uma morena linda, de olhos verdes, sobrinha do homem, foi quem contratou a dupla. Isto lhe disseram os cantadores. Alêu, que já estava correndo sobre as águas da surpresa, perguntou se sabiam o nome dela. E Padroeiro, o manager da dupla, recordou-se direitinho: “o nome da moça é Mangagaí”. Será que era verdade? Alêu quis até explodir  por dentro de alegria. Olhou para a baía iluminada pelas tochas e flutuou de verdade. Rumo ao Marajó. Andou em seu pensamento, por sobre as águas, como se aquilo fosse terra batida. E já se imaginava colocando Mangagaí em seus braços e se afundando em beijos de língua, ao mirar aqueles olhos de esmeralda. Agora, com os pés de volta à festa dos cantadores, ele combina com o Santo e o Padroeiro: “me ajeitem nessa cantoria de São João... Tenho de ir a esta festa nem que seja dentro da mala de vocês...”.

Beto Palaio

 Para sua surpresa Aleu encontra em sua mochila um exemplar do cordel editado pelo finado Pedro Henrique Cabilé, a tal estórinha da Vaca Democracia.


Alêu e a Sereia (XXXI)

TheMyster+yTOur= No ônibus mambembe. Alêu se ajeita como pode e dorme se encolhendo no banco de aluguel. Quando acorda está raiando o dia, e o ônibus acaba de sair de Pernambuco e adentrar no Estado do Piauí. Ele estranha a presença de tanto verde, tanta folhagem. Alêu sente fome e cavouca a mochila a procura de um teco de pão ou de alguma barra de chocolate que ele guardou antes da viagem. Nisto ele acha, ao alcance da ponta dos dedos, um gibizinho. Uma revistinha no meio das tralhas dentro da mochila. Para sua surpresa é um exemplar do cordel editado pelo finado Pedro Henrique Cabilé, a tal estórinha da Vaca Democracia. E saibam que Alêu sequer havia lido aquele estrupício. Mas agora iria ler. Ele era um militar também. O medo de ser confundido com um comunista nem lhe arejou naquele momento. Mesmo assim ele olha, desconfiado, para os lados antes de começar a leitura. O velho Genivaldo está dormindo com o rosto encostado na janela do ônibus. Então Alêu se ajeita para ler a cartilha de Cabilé: “DE COMO O CAPATAZ EMYGDIO TASCOU MEDICINAS PURGATIVAS NA VACA DEMOCRACIA: À cata da própria pata traseira a vaca Democracia encolheu-se toda. Tentou amenizar a ferida e não teve meios de desmobilizar o berne que ali se alojara. Neste instante, nem o frio, nem a chuva, nem o corisco a incomodavam mais que aquele berne. “Ah, houvesse eu me livrado disto lá no pasto...”. Com dificuldade ela vem mancando em direção ao mangueiro. Chegando lá os povos animais se amontoavam e querem entrar no cercado, todos de uma só vez. A vaca Democracia espera com calma, pois na dor e no esforço que fez chegando até ali, só imaginava agora ficar num cantinho e dormir em paz. “Onde dormem três, dormem vinte, dormem cento e trinta...”. Ela entrou no curral e, por um escasso tempo, sonhou que se livrara do berne e que estava soltinha da silva e que se alimentava de uma grama verdinha em meio a um punhado de zebus lindos e saudáveis. Mas ela acorda e grita: “a dor não muuuda... Não muuuda... Não muuuda...”. Ela procurava explicar, aos berros, que o único jeito de acabar com a dor era chamar por aquele meninozinho mulato que já lhe tirou muito leite, mas que também sempre lhe deu carinhos. Queira que o vaqueirinho acordasse e cuidasse naquela dor que sentia na pata. Então a vaca Democracia berrou a noite toda e nem conseguiu dormir. Fantasiava ela que o menino mulato viria ajudá-la a qualquer momento. Com a imaginada solução, a vaca Democracia pensou até que o menino talvez lhe dissesse: "tu és minha vaca preferida... Democracia, não desista nunca!”. Depois, como ela viu que o negrinho não aparecia, desandou a correr de um lado e para o outro. Conclamando talvez por uma possível adesão daqueles bois sonolentos à sua causa. Acontece que num mangueiro compartilhado, o gado, um povo tido como estúpido, ficaria assustado e faria o que pudessem para escapulir. Os bois unidos vazariam por debaixo do arame, evidentemente arrombando a cerca. Um escarcéu que o ajuntamento dos bois criaria na fazenda. Entretanto, no novo sistema de curral, em pontos estratégicos, foram abertos corredores de madeira que se abrem automaticamente para sossegar os mais afoitos. E os aquartelados estão ali numa fuga jamais tentada. Mesmo agora quando ouvem a vaca Democracia choramingar, mas nada podem fazer por ela. Assim, no seguro cercado, a vaca pensa em seu único ato subversivo: continuar sem trégua a espalhar seus tristes mugidos. Entretanto, logo pela manhã, surge o capataz de tanger bois, um tal de Emygdio, um que raramente se revela, movido apenas pela condução de ordens impressas em cartilhas sebentas que recebe da matriz americana, e também contando com um sistema de currais asperamente dispostos para evitar rebeliões. Portanto o capataz Emygdio é apenas um testamenteiro da sentença de todos os manipuladores de bois desde os Estados Unidos da América. Sabe muito bem que para tocar um povo-boi basta acenar levemente uma guia com um agulhão na ponta. Assim, a toque de ferrão, a vaca Democracia foi conduzida ao longo do piquete, já repleta de adivinhações, pois estava marchando num corredor de putrefatos odores sanguinolentos. A vaca Democracia passou por um varal aterrorizante. Um esticado de comércio retalhista onde, anteriormente, o que fora um boi inteiro, agora se repartia em um boi despedaçado. E lá vem a vaca Democracia num extenso corredor onde só pode ir em frente, pisando numa gordura vermelha, na qual adivinhou a fatalidade da sua e da vida de seus iguais. Diz-se coisas terríveis desses matadouros onde o sacrificado não tem opções, morre através de uma martelada certeira no meio do cabeçal dos chifres. Então o peão Emygdio tratou de cumprir seu destino de carrasco, assim levantou e desceu a marreta na nuca da vaca, que amoleceu a língua, tonteou e amontoou no chão. A vaca Democracia sequer soube entender do seu pobre destino...”. Aleuzenev terminou a leitura e não contém seu aborrecimento: “mas que bosta! Como é que assassinaram o coitado do Cabilé por causa de um lixo desses? Tá certo que o nome do Presidente da República aparece disfarçado nesse imbróglio, mas isso não explica tanta violência contra o Cabilé... Ô terra de gente burra!”. Alêu rasgou o livreto em vários pedaços e depois jogou tudo para fora do ônibus. Naquele instante. Ao olhar para trás. Ele vê os papéis picados esvoaçando no meio da rodovia que cortava um trecho de mata fechada no Piauí. “Descansa em paz, Cabilé”, foi o que Alêu desejou definitivamente para o amigo...

Beto Palaio

domingo, 2 de dezembro de 2012


Logo iremos descobrir o poder das águas sobre nós todos... São elas que mandam... E nem um tiquinho da nossa vontade governa as águas... Mas não mesmo.... 

Alêu e a Sereia (XXX)

AZULmirae+oBOTO= Foi apenas uma amistosa conversa. Porém. Aquele foi o primeiro contato de Alêu com as águas amazônicas. Diga-se. Ainda no ônibus. Que cortava a Bahia de leste para oeste. Ele, um turista sem destino. O romeiro que segue metas de aportar em Marajó. Naquela viagem programada para um dia e meio. Aleuzenev partia, chão a chão, no Mercedes-Benz que ruma para Pernambuco. Depois Piauí. Depois Maranhão. E por fim o Pará. Dentro do Mercedão ele divide o assento com Genivaldo Alenquer, um senhor amazonense de rosto enrugado, pele morena e de pouca conversa. No entanto, rapidinho mesmo, na convivência de vizinho, derrete-se o gelo. E Genivaldo traduz para ele, em resumidíssimas formas, o que vem a ser a temida e misteriosa Amazônia: “lá as águas são soberanas. Vivemos sob a tutela das águas. E por outro lado temos o ermo das florestas. No entre folhas o geral perde o sentido. Flor não é flor, é alma. Gato não é gato, é onça. Boto não é boto, é homem...”. Letra a letra. Genivaldo Alenquer pega gosto na fruição das palavras. Vê que Alêu está curioso. Além do mais. A cabeça de quem conta estórias pertence a Deus e a mais ninguém. Foi assim que o caboclo, a partir do assento do ônibus, desfolhou sua estória principal, esta dita verdadeira. Dizia ele sobre uma moça, a Azulmira, uma que namorava um boto. Coisas que lá são reinantes. Episódios os quais Genivaldo jurava ser testemunha – “eu estava lá e vi” – e até firmou detalhezinhos do que se passava naquele específico dia. Com o fato ocorrido em beira-rio: “no chão havia formigas em guerra contra um gafanhoto. Pobrinho dele. E o ar estava morno demais, sendo já de tardezinha...”. Entendia-se que um grupo de pescadores se reunia na praia do rio. E Alêu, entretido, prestava cada vez mais atenção ao caso contado sobre a moça Azulmira. “Fato mesmo assucedido nesse Brasilzão”. Entenda-se: nem tâmaras, ou nozes, ou damascos, só, e sim, apenas manga-espada. Em vista do que houve. De que a turma do Genivaldo estava fazendo fogo para assar um peixe curimbatá. Afinal. O que pode existir de anormal nessas lendas? E o homem continua sua estória arrastando-se nos detalhes: “cansamos de ver um homem branco subir a barranca do rio... Quem era ele?... Logo o Senhor saberá de tudo...”. E arrepiou finalmente a sua estória no que tinha de ser contado: “em torno desse tempo eles colocaram fogo na mata para debelar a correição das formigas-chiadeiras. E no meio da muita fumaça, na ordem de um nevoeiro, foi que primeiramente surgiu um homem de terno branco. As mulheres quando viram esse homem fugiam e gritavam muito. Dizem uns que aquele homem de terno branco depois se transformou num padre. Outros afirmam que ele entrou no rio de terno e tudo, como um lote da sua própria herança de ser peixe. Mas quem estava lá testemunhou o fiel do acontecido. Coisa com coisa, assim eu lhe digo ao senhor, do mesmo jeito que breve surgiu, esse forasteiro de terno branco entrou no rio, nas águas cristalinas, e depois no conforto dele mesmo, assoprou o bufo de um boto, e esse um, ele o boto, dava risadas parecidas com as da gente...”. Aleuzenev achou aquilo uma papagaiada. Até quis cortar a estória no meio. Fingiu que olhava a paisagem lá de fora, ilustrada pela velocidade do ônibus. Mas Genivaldo diminuiu a voz, como se estivesse comovido pelo causo por ele contado: “naquela noite, quando apareceu o moço de branco, a moça Azulmira foi embora. Dizem uns que foi pacto com o boto. Outras acham que elazinha foi fazer viração em Belém. E também uma testemunha existe, a de um cidadão que tem sua profissão em ser mecânico de bicicletas. Esse, no especial, sendo um amigão nosso, como de fato é o Seu Lonjevindo. Um bicicleteiro que é amazonense antigo, um ex-pugilista, tendo tantas berebas na cara quanto as muitas crateras que existem na lua. Um sujeito famoso por ser bexiguento e loroteiro... Mas voltando na estória da moça... O Seu Longevindo disse um algo para destoar de todos os que pensassem mal da Azulmira: “ela foi para São Paulo”. Ele disse, não se sabe se verdadeiro ou não, que ela se amigou com o Sargento lá da guarnição... Um sujeitinho magro e desdentado... Assim Seu Longevindo afirmava... Pois disse da Azulmira ter mudado de vez com o Sargento para São Paulo...”. Alêu achou que aquele senhor estivesse brincando com ele. Isso lá é estória que se conte? Mas parece que Genivaldo adivinhou o que Alêu pensava. E completou: “isso, seu moço, é o que eles acham. Pois eu nunca acreditei em nenhum deles... Fiquei vindo todas as noites na beira do rio. Pois tinha certeza de que a moça Azulmira tinha mesmo é se afundado nas águas junto com o boto. Até que acharam um sapato, um pé só, da Azulmira, num remanso de areia, quilômetros rio abaixo...”. Alêu não disse nem um tanto, nem coisa nenhuma. Tentou mudar de assunto. Mas Genivaldo finalizou em modos de profecia: “o senhor está indo para lá... Logo irá descobrir o poder das águas sobre nós todos... São elas que mandam... E nem um tiquinho da nossa vontade governa as águas... Mas não mesmo...”. 

Beto Palaio

sábado, 1 de dezembro de 2012


Tudo naquela ação concorreria para a formatação de um álibi. Para melhor entender a claquete, na placa principal da Fazenda do Córrego a turba de policiais escreveu a frase em letras graúdas: COMUNISTAS!...


Alêu e a Sereia (XXIX)


Caçaa+oSBRUxos= Vejamos os porquês. Resumindo grosseiramente. O facão Guarany quebrou no cabo, na ponta e no meio. Aos brados e traques de pistola. O dia andado. Num mutirão de fazer troar o chão. Por terra, ar e mar. A Fazenda do Córrego foi cercada. O céu que estava encoberto, de um cinza enjoado, amenizava o mormaço. Um pi-pi-pi de corruíras galanteava a cena. Desmisturando tudo, foi combinado assim. Entre eles. O que depois seria transcrito aos repórteres todos. Adotaram a ideia de que estavam agindo nos conformes de uma investigação antiterrorista. O que significava estarem quites com as grandes metas governamentais, e ajuizadas também. Num resumo de sabedoria revanchista. Tudo naquela ação concorreria para a formatação de um álibi. Para melhor entender a claquete, na placa principal da Fazenda do Córrego a turba de policiais escreveu a frase em letras graúdas: COMUNISTAS!... Isto apenas não bastaria para que eles cometessem qualquer exagero? E não? Assim resguardados de qualquer outra hipótese. Já com um brilho de armas à mão, decididos a tudo, pela estradinha da fazenda, eles invadiram a propriedade do Coronel Clodomiro. Um ar de caldo fervente tomava ponto a prenunciar cadáveres. O tã-tã dos passos alertavam os cães da fazenda, os quais latiram assustados. Estes cães, companheiros fiéis, foram os primeiros que se mobilizaram, na guarda do patrimônio, contra o fuzuê da marcha policial. Inevitável seria a incursão dos belicosos. E aqueles leais cães de guarda foram mortos ao rés da poeira. No sofrer das balas, os ganidos deles cortavam a alma. Doloridamente. Logo a seguir vieram as trincheiras dos capatazes. Que os escribas da imprensa, bem depois, fazendo troca-letras com Canudos, os denominariam como “conselheiristas”. A esses homens houve um demorado cerco. Com passos medidos no detrás de uma cerca. No resguardo de um tambor de aço. Ou na beirada de um barranco. E todos atingiram esses jagunços com o apetite de um Nero. Num breve tempo a fazenda ficou destituída de protetores. Após um cotejo de misérias. Numa Sodoma de nunca olharem para trás. A soldadesca brindou a porta da frente do casarão com um ratatá de tiros formidáveis. E adentraram na casa com premissas de quem cumpre um severo mandado judicial de busca e apreensão. O fazendeiro Clodomiro foi logo capturado e apresentado para a soldadesca no lado de fora. Ele estava sem palavras. Branco como uma vela de cera. E ao Coronel Clodomiro foi dado o tempo certo para que medisse os passos entre a porta da casa-grande e o tronco de uma mangueira no quintal. Onde lá. Em breves tiros. Peneiraram a cabeça do fazendeiro com todas as glórias que se presta a um, no normal do que imaginavam que fosse, comunistóide. E esta versão foi editada até no Jornal Nacional: “caiu por terra, no sertão da Bahia, mais um aparelho comunista”. E logo todos esqueceram desta espetacular revanche em memória do Sargento Dito. Todos menos Aleuzenev, que ficou matutando um jeito de cair fora daquele triste ofício de desagravos, capturas e tropas de assalto. Pensou em desistir e desistiu. Conversou longamente com o Major Silvinho Dantas e foi assim alforriado e liberto de suas obrigações com a PM. No que, Alêu, depois da alforria, voltou a andar faceiro pelas ruas de Salvador como se estivesse livre de uma pesada carga. Entretanto. Para ficar mais longe ainda daquele ambiente. Resolveu inclusive mudar-se de Salvador. Visitou amigos na intenção de uma derradeira confraternização. Trocou beijos com Miranda e foi até se despedir de Nazaré. A qual estava com um pouco de febre, achando que era uma simples gripe. Mas isso não impediu que Alêu se escondesse com ela embaixo das cobertas e tirasse um sarrinho com direito a matar toda a saudade acumulada por eles. Mais tarde o Alêu saiu de mansinho, deixando Nazaré adormecida. Um Aleuzenev compenetrado, siso e decidido, passa no apê do Noé, seu cineasta benfeitor. Ali ele apanhou suas roupas e cravou um bilhete cercado de fita durex no espelho do banheiro, onde explicava que a chave estava com o zelador e que ele estava deixando a cidade. No bilhete ele também agradecia pela gentileza de haver usado o apartamento. Só então Alêu foi para a rodoviária e tomou um ônibus em direção à Belém-do-Pará. Ia partir para a Amazônia no intuito de rever Mangagaí. Decidido a buscar seus anseios, mas deixando o mundo policial de Salvador boquiaberto. “Um menino de futuro que deixa as nossas fileiras”. Agora ele estava sozinho nesta decisão. E partia naquele momento, obcecado com o projeto da viagem. Algo feliz como um pássaro posto em liberdade e indo, ripa na chulipa, doido para enroscar-se com outros destinos, em novos meridianos...


Beto Palaio 

Gravura: Rubem Grilo