sábado, 28 de abril de 2012


...Quer que a gente lhe sofra? Quer que lhe aperte a alma com nosso alicate?


ALÊU E A SEREIA (XV)

OinferNOn+aTERra= Como pode a realidade intangível desandar numa miríade de fenômenos que se transformam neste mundo deveras palpável?  Onde tudo nasce, pedras e fetos. Ao toma lá, dá cá. Um dia tudo vem a fenecer. Fui, foste, foi, fomos, fostes, foram. Num palco onde se encena a vida que promete o reviver. Como um pêndulo que vai daqui para ali, e depois volta para retornar outra vez. Neste avançar e recuar de ondas. Um ditirambo inscrito pelas leis da atração gravitacional. A política em algo se assemelha ao bravo pêndulo. Vai-se também daqui para ali, num átimo, para depois recuar à mesma posição. Neste caso sem que nada disto servisse aos propósitos humanos. Assim, proscritos. À herança e à decrepitude, a população deve penitenciar-se. Se usufruem, é mágica. Se passam fome, é fastio. É que a democracia tem uma monstruosidade lógica. Todos, nós, o povo, somos de antemão culpados do nosso próprio destino. E é nesse avesso de fatos que o Estado Autoritário se esconde. Ali, num covil especialmente instrumentado em autoritarismo, há desprezo e deserção para seus liderados. Sofre nesse desterro o próprio cidadão, o indivíduo civil. Ocorre que. As civilizações vêm e vão por demais confiantes, e a cobiça à todos subordina. Eis que este miserável artifício alastra-se de norte a sul do Brasil. Onde o Estado Burguês é uma quimera, e o Estado Proletário uma vaga sugestão literária. Nesse ambiente controverso ditam-se regras de bom viver. Não se importando de que lado se rói a corda. Ela que estoure do lado mais frouxo. E de que lado estamos falando? Eis os fatos: Pedro Henrique Cabilé queria ser jornalista. Era ligado ao grêmio da escola onde o Alêu fazia um curso de supletivo para tentar entrar na universidade. O Pedro Cabilé quis porque quis escrever e editar um livreto de cordel onde ele esmiuçava o sofrimento de certa Vaca Democracia na mão de um peão de fazenda que, nesta referida estorieta, tinha um perfil parecidíssimo com o do Presidente da República. O Cabilé andou distribuindo o livreto por aí, gratuitamente, a quem quer que fosse e estava orgulhoso da sua literatura. Os estudantes riam dele, pois não entendiam nadinha da estória, que era enroladíssima, apenas achavam que era algo importante a partir da ilustração, já na capa, de uma vaca cheia de bernes sendo pisoteada por um jagunço que tinha a cara do Presidente da República. Inclusive o tal livreto passou a ser visto como estandarte da legitima prova de coragem do Cabilé. Ocorreu, inclusive, do livreto da Vaca Democracia ser fixado no mural do grêmio na escola como sinal de vitória da classe estudantil. E assim a tal Vaca Democracia ganhou pernas e se espalhou para além do universo ginasiano. Ocorre que, como todos na classe ganharam o tal livreto, o Alêu também ganhou o seu, mas não estava nem aí para aquela estória idiota de uma vaca imbecil sendo morta por um vaqueiro que usava um quepe de general do exército... O Alêu, muito prático, via o livreto apenas como um útil e reles pedaço de papel em que poderia desenhar seus corações apaixonados no qual anotava as palavras "Alêu e Mangagaí". Coraçõezinhos que ele cuidava de fazer atravessar por uma flecha desenhada com todo carinho. Neste enlevo. Alêu estava justamente desenhando corações no livreto, quando entrou na sala de aula um bando de policiais que foram como gaviões esfaimados para cima do Pedro Henrique Cabilé. Foi uma luta corporal bastante desigual, onde colocaram o Cabilé de rosto espremido contra os tacos de madeira da sala, depois deram chutes à vontade nele. Em seguida arrastaram-no porta afora com a boca sangrando e algemado. O Pedro Cabilé esperneou, mas foi agilmente arrebatado de dentro daquela sala de aula. Neste fuzuê, um jovem cabo da Polícia Militar, inspecionando entre as carteiras da classe, viu o Alêu com o livreto da Vaca Democracia. E assim arrematou: “você vem com a gente também... Sem chiar, tá... Vai falar com o Doutor Delegado... E me dá aqui esse livrinho que é a prova de que você também tem pouco juízo!”. Alêu não chegou a ser algemado, mas foi jogado dentro do camburão de polícia junto com o Pedro Henrique Cabilé. Ambos trancafiados como dois animais. E assim o rapto oficial dos dois tem início, com todas as sirenes ligadas como um sinal de júbilo para os “caçadores”. Deste modo, chegando à Delegacia, os mentores da lei estavam babando para iniciarem as interrogações. Um e todos falavam quase ao mesmo tempo. Ali estava também um Sargentão, coincidentemente o dono do cão Varuna, que morava na rua de Aleuzenev, e que milagrosamente partiu em defesa deste. Ao que disse para os outros que por aquele “menino” ele observaria. “Deixem ele em cela separada, esse aí eu conheço... É morador em nossa vizinhança... Não tem problema que eu respondo por ele...”. Então separaram os dois, sendo que Alêu foi trancado numa cela privativa no segundo andar, enquanto Pedro Henrique Cabilé foi arrastado para o porão. Lá cevaram o infeliz no interrogatório: o que você está olhando? Quer namorar com a gente? Quer cagüetar alguém? Você não é escritor? Não sabe tudo? Quer agora dar a sua opinião? Ou quer que lhe enfiemos o cassetete goela abaixo? Ou seria melhor... O cassetete enfiado no seu rabo? Quer falar? Não quer falar? Vai cooperar? Quer voltar a ver a vida lá fora? Vai cooperar? Então não vai falar? Quer que a gente lhe sofra? Quer que lhe aperte a alma com nosso alicate? Quer que lhe cutuquemos o miolo da sua unha? Quer que a gente lhe enrabe? Quer entregar mais alguém? Quem é seu chefe? Vai se abrir? Ah, só quer ficar quietinho? Olha, ou você fala, ou a gente, inclusive aquele negrão gigante ali, vamos todos te enrabar já, já! Não quer cooperar? Então vamos mostrar as lingüiças para ele minha gente!”. Em seguida um desses brutamontes deu um tapa na cara de Cabilé e este começou a chorar alto. Depois outro tapa. Logo estavam amarrando o prisioneiro num cano de ferro, onde foi dependurado para “melhor contar o que tivesse que contar”. Assim espremido e de ponta-cabeça, Cabilé vomitou até o que não comeu e entrou em desespero. Queria confessar coisas sabidas e inventadas. Iria contar o que eles quisessem. Mas queria sua mãe. Chamava sem parar por sua mãe. Nisto um dos torturadores, naquele local nefasto e nauseabundo—lugar especificamente criado pelo próprio capeta—envolveu sua cabeça com um saco plástico para fazê-lo sufocar e mostrar-lhe claramente quem mandava por ali. Ao meio de uma tortura absurda ouvia-se os gemidos de Cabilé ao longe. Em seguida um outro retirou o saco plástico para sugerir que enfiassem um ferro no rabo do interrogado. Cabilé definitivamente entregou os pontos, balbuciou que não era comunista de jeito nenhum e que, por curiosidade, comprara um livro de Marx. Que chegou a ler as orelhas deste livro O Capital, mas que não tinha lido nadinha do miolo. Disse também, entre um choro e outro, que não era filiado ao Partidão e nem tinha nada a ver com os atentados terroristas, pois era apenas um estudante. Não passava de um zé-ninguém. Que fossem conferir o que estava falando. Só tinha escrito aquele cordel por pura brincadeira. Não teve intenção nenhuma de causar mal a quem quer que fosse. Nisto um dos torturadores sentenciou aos berros: “cala a boca, seu perrengue filho-da-puta, ninguém aqui quer ouvir suas ladainhas... Comunista vagabundo tem é que se ferrar... Chupa que a cana é doce...”. Dizendo isto desferiu seu cassetete mirando as costas de Cabilé, mas calhou da pancada atingir em cheio a nuca do prisioneiro. Naquela ação covarde, Pedro Henrique Cabilé estava dependurado de ponta-cabeça, no cano do pau-de-arara, no justo ensejo de receber a tremenda cacetada. Então Cabilé desfaleceu...  

Beto Palaio


Arte: Rubem Grillo

quarta-feira, 25 de abril de 2012



...E foi muita maluquice debaixo daquele chuveiro.


ALÊU E A SEREIA (XIV)


ASSimEuQ+ueROnão= No meio da semana Alêu já estava ansioso para que chegasse o Sábado. Contudo ele não comentou nada com Nazaré de que queria terminar tudo com ela e recomeçar sua vida. Embora o amor, para ele, já estava definitivamente trocando de pele. Algo que era da competência e maestria das fadas, as quais fazem suas visitas sem nenhuma precisão ou pontaria. Protegem este aqui e abandonam aquele acolá. Quem caiu nessa emboscada que fique esperto. Não se fie quem ama, nessas tais fadas, porque as decepções existem. Como bem disse um sábio: compra-se a glória com a desgraça alheia. E a dedicada Nazaré não sabia ainda de nada. A bobinha até que estava feliz planejando algo para aquele Sábado, pois inventou de fazer uma moqueca bem temperada, do jeito que o Alêu gosta: regada à cerveja bem geladinha e com as postas de cação flutuando no molho acebolado de camarão, rodelas de tomate, leite de coco e azeite de dendê. E Nazaré está feliz só de ver o Alêu por ali, sendo o seu companheiro de sempre. Nos conformes. A felicidade às vezes inventa possibilidades arretadas, e até impossíveis, que escoam como chuva de verão para dentro dos bueiros. Alêu viu quando Nazaré saiu do apartamento e ficou vagabundeando, solto na rede, brincando de imaginar que o tempo já tinha passado e que já era hora dele rever Mangagaí. Não estava nem aí para a tal moqueca comemorativa da Nazaré. Ela estava era bestando. Misturando estação. Marcando bobeira. Com seu pensamento longe, Alêu ficou empurrando sua rede com o pé, fingindo flutuar. Enquanto sua cabeça está longe, num devaneio próprio para uma manhã de verão em Salvador. Neste vai e vem.  Contudo, ele fica atento para algo. Ao ouvir passos de alguém vindo no corredor. No que ele até adivinhou: só podia ser aquela menina Miranda, uma amiguinha da Nazaré. Pois essa menina, dia sim dia não, morando num apartamento próximo ao de Nazaré, vinha visitá-los com sua faceirice e piadinhas picantes. Só que nesse dia ela estava estratégica demais e, antes de vir, tratou de ficar quietinha, atenta aos rumores de quando Nazaré saísse. Esperou um tempinho e depois correu para o apartamento da amiga com suas outras intenções já servidas e embrulhadas. Destinada ao pecado. Essa Miranda via o vizinho Alêu sempre olhando faminto diretamente para ela e também para suas bem torneadas curvas. Ele não sabia, mas esse olhar a transformava numa pessoa especial, e tudo de maravilhoso ela imaginava com ele, só para concluir o que a sua cabeça romantizada pelas fotonovelas criava. Nestes conformes. Miranda tinha também desplantes e arremedos e vontades de realmente sair azarando com o seu vizinho Alêu. Ela queria porque queria transar com ele. Com este intento. A morena se aproximava sempre com zelos para melhor apreciar Alêu. Nessas visitas constantes ela até chamava a pretinha Nazaré, a concubina de Alêu, de "comadre Zica", isso ela dizia sempre que o assunto delas fosse cair no trajeto da curtição e da vadiação. Agora uma oportunidade para Miranda chegara. Pois justo no dia da compra dos ingredientes para a moqueca, a Miranda sentiu que Alêu estaria sozinho no apartamento, e até viu quando Nazaré saiu para ir ao Mercado. Conseqüentemente Miranda adivinhou que Nazaré iria se demorar mais do que a conta do normal. E justo ela, a vizinha que prometia, de si para si mesma, jamais entrar sozinha no apartamento deles se a comadre não estivesse lá. Questões mais do que respeitosas. Mas, ao gosto de uma novidade, qualquer conselho envelhece mais do que vinho em tonel de madeira perfumada. Ora! E há tanta mulher bonita! Alêu acha que sim. Passam-se momentos aflitivos numa reticência. Então nesses momentos de entressafra ele, eterno vadio, acha toda e qualquer mulher admirável. E o tempo está quente. Foi exatamente quando Miranda entra no apê de Nazaré e ficou dando um agá por ali. Ela tomou alguns goles de caipirinha com Alêu e foi logo soltando o verbo. Falou um monte de sacanagens e liberou a conversação fiada com ele, inclusive isto: “aproveita bobo! Estou tão afinzona de você...”. Ela, malandrinha querendo enrosco, se jogava para cima do Alêu. Isso em vias de antemão, outras palavras, querendo dizer para ele: "só não come se não quer...”. Então Alêu desconversava mangando do tempo: “olha! O sol sexualmente transmissível deu uma ingênua trepada com aquela nuvem acolá...”. No que Miranda aproveita em tom de brincadeira: “tá vendo... Até o sol trepa”. Inesperadamente feliz Alêu chegou mesmo a avaliar aquela oferta avulsa. E pensou até em comê-la. Ele sabia, tal nenhum outro safado, como cutucar a paixão de arrepiar o gozo em uma mulher. E naquele instante a menina Miranda estava mesmo aos riscos de tomar um chinfrado no entre-pernas. Nas posses. Alêu rapidamente tratou de se ajoelhar diante dela, entre a pia e a mesa da cozinha, e iria derreter na língua aquela mulata Miranda, no fácil, como se ela fosse uma brincadeira qualquer. E foi e quis... E quando se ajoelhou, afastando já a beirada de sua calcinha, ele quase chegou a lamber naquela pecadora cepa cor de carmim. Aliás, uma majestosa e convidativa lorpa de carne entontecida pelo desejo... Mas, levantou-se ágil e esclareceu tudo: “cai fora Miranda... Não vou aprontar com a Nazaré não... E você também devia respeitar a minha pretinha... Devia sim!”. E ela: “cê não vai broxar comigo não... Vai Alêuzinho?”. E Alêu: “Miranda você tem é muito fogo... Muita galinhagem... Além disso, sua xavasca está é fedegosa demais!”. Miranda logo sentiu na pele uma surra de repulsa exemplarmente aplicada. Ficou furiosa. Saiu batendo porta. Saiu de lá e se refugiou na escadaria do prédio, chorando e prometendo vingança. Miranda estava revestida de um ódio em que só queria desbancar com o Alêu. Mas no fundo Miranda estava satisfeita de haver, afinal, se revelado para ele. Deste modo, bem depressa, já não o odiava mais e até pensou num meio de fazer as pazes. Foi assim que ela voltou ao apê de Nazaré. Desta vez murchinha, e sem vontade nenhuma de aprontar com o Alêu. A porta ainda estava aberta e Miranda entrou no apê escutando a água do chuveiro caindo. Foi até a porta do banheiro e falou diretamente para o Alêu num tom de gentileza: “Alêu... Sou eu de novo... Vim pedir desculpas... Você tem razão... Acho que estava forçando demais a barra...”. E Alêu: “tá bom, Miranda... Eu também não deveria ter te ofendido daquele jeito... Foi mal para mim também... Faz assim... Como demonstração de que eu te perdôo... Eu sugiro que... Vem cá, Miranda... Tira a roupa e vem tomar um banho aqui comigo...”. Miranda saltitava de alegria por ter sido aceita por ele... E assim ficou nuínha e entrou no chuveiro com ele. E foi muita maluquice debaixo daquele chuveiro. Alêu ensaboou Miranda inteirinha e deixou-se ensaboar. Depois ele foi lentamente se ajoelhando e, aplicando-lhe uma surra de língua. Prestou-lhe demorada homenagem, desde os intumescidos bicos dos seios à bela e carnuda xãna... Em seguida Miranda retribuiu à altura, solfejando no tarugo de Alêu e ele finalmente penetrou-a, sob uma tremenda gana de ambos, para tornar imortal aquele momento único e inesquecível... Entretanto, bem depois, sozinho outra vez no apartamento, Alêu nem pensava mais em Miranda... Ele pensava era num jeito de comunicar para Nazaré que aquele lance entre eles dois, um romance com várias idas e vindas, algo que já durava quase três anos, tinha micado de vez e que não dava mais para eles continuarem juntos... Ele não poderia ficar com a Nazaré se, ao mesmo tempo, farreava com a Miranda e pensava em fugir com Mangagaí. E outros motivos somavam. Ele não estava mesmo numas de continuar com ela. Inclusive aquilo da Miranda ter se insinuado um pouquinho e ele já tinha furunfado com ela na maior zorra... Alêu estava realmente resolvido de romper com a Nazaré... Se há alguém que consiga ficar com uma pessoa sem sentir nada, esse alguém não era Alêu... Cedendo trégua aos inconvenientes ele planejava definir aquilo sem muita delonga. Onde Alêu até zoretava: "chega de aflição... Agora vou é buscar razão para minha vida...”. Seus pensamentos andavam longe... Procurando forças num enredo típico do carnaval baiano, onde tudo quanto é feitio de sonho, em fugaz vertigem, se espalha... Naquele providencial arrebatamento quem ele vislumbra é Mangagaí, que lhe chama, de acordo com sua voz de fada. E Alêu feliz em ser e estar. Com seu coração de leve pluma, flutuando irremediavelmente atrás dela...  

Beto Palaio

sexta-feira, 20 de abril de 2012


Domingo no parque: Alêu, Mangagaí e Pedro Henrique Cabilé...




ALÊU E A SEREIA (XIII)



OSOrvete+eAROsa= Alêu, Mangagaí e Selma riram bastante ao saírem da roda-gigante. Ao fundo tocava uma música no serviço de alto-falantes do parque: "amou daquela vez como se fosse a última. Beijou sua mulher como se fosse a última. E cada filho seu como se fosse o único. E atravessou a rua com seu passo tímido. Subiu a construção como se fosse máquina...". Mas nenhum deles estava prestando atenção à música. Alêu, feliz por inteiro, convidou Mangagaí: “venha... Agora vamos à barraca do tiro-ao-alvo... O que?... Você nunca deu tiros de rolha?... Então vai ser a primeira vez... Vou ver se ganho alguma prenda... Se ganhar... A prenda é sua...”. Eles estão andando em direção à barraca do tiro-ao-alvo e Alêu se encontra casualmente com um colega do ginásio chamado Cabilé, e o Cabilé está eufórico: “ei, Alêu... Você escutou a música Construção que eu pedi prá tocar no alto-falante?”. E ele: “pôxa, Cabilé... Eu nem prestei atenção...”. E Cabilé: “não tem problema... Eu ia mesmo pedir para tocarem de novo... Presta atenção agora tá?”. E Alêu: “então tá... Você não quer dar uns tirinhos de rolha com a gente?... Não?... Tá legal, mas se cair um maço de cigarros eu te dou...”. E o outro: “legal... Agora eu vou dar umas voltas por aí... Depois eu peço para tocarem a Construção do Chico Buarque de novo... Vê se fica ligado desta vez...”. E ele: “Tá certo, Cabilé!...”. Novamente às voltas com Mangagaí, Alêu tem agora diante de si uma prateleira cheia de maços de cigarros e caixinhas de fósforos, estes últimos equilibrados sobre cada brinde oferecido, para a tentativa do tiro de rolha. Mangagaí e sua amiga Selma estão ao lado dele, assistindo curiosas, primeiro vêem o Alêu apanhar o projétil de rolha e encaixá-lo no cano da espingarda de pressão... Depois ele mirou e não acertou em nada... Novamente ele apanha a rolha e repete a operação, desta vez acertando num maço de cigarros que girou, mas não caiu no anteparo de lona... Só então ele atirou novamente e conseguiu derrubar uma caixa de fósforos que se equilibrava sobre um elefante de louça... Este prêmio singelo ele ofereceu para Mangagaí, que fica feliz por ter ganho aquela lembrança de Alêu... Um pequeno elefante de louça branca com traços dourados para realçar a tromba, as orelhas e as patas... Um mimo que ela conseguiu guardar dentro da bolsa: “vou guardar com carinho Alêu... Vou colocar entre meus vidros de perfume na penteadeira...”. Depois disso as meninas manifestam o desejo de voltarem para o Convento... O movimento do parque naquele sábado estava acima do normal... E isso estava começando a assustá-las... O parque estava realmente agitado naquela noite... Com pessoas apinhadas no carrossel de cavalinhos... Lotando a roda-gigante... Aglomeradas em frente da barraca da Songa-Monga, a mulher-macaco... Gente esperando para entrarem no trem-fantasma... Todas as alegrias periféricas completam o momento, pois no serviço de alto-falantes do parque tocava uma música do Roberto Carlos: "olha aqui... Presta atenção... Essa é a nossa canção...". Quando... Súbito... De um instante para outro, há policiais para todo o lado e tem início uma correria no meio do povo. Aquilo preocupa até quem está nos limites do parque... Ninguém entendia nada do que estava acontecendo. Foi quando Alêu avistou um enorme cão negro que circulava ligeiro entre os freqüentadores atônitos com aquele corre-corre. Um cão que Alêu conhecia de vista e sabia daquele animal pertencer a um oficial de polícia que morava em sua rua. O enorme cão alsaciano chamava-se Varuna e não parecia estar perdido, muito pelo contrário, andava confiante de que seu dono, o oficial de polícia, estava ali por perto... Logo a algazarra da perseguição chega ao auge, pois há um vulto subindo lépido pelas ferragens laterais da roda-gigante. É um rapaz que está lutando para encontrar um espaço seguro nas alturas. Pouco depois há uma agitação incomum, com gritos de aflição, os quais contribuíam ainda mais para o tumulto geral. Aquele rapaz está pendurado nas ferragens no alto da roda-gigante, após o que se ouviram vários pipocos de tiros e em seguida aquele moço equilibrista caiu, fazendo um barulho de trovão abafado ao bater na base de ferro da roda-gigante. No dia seguinte soube-se que aquele rapaz era um notório subversivo de esquerda, que vinha fugido desde São Paulo, e que caiu aniquilado em solo baiano pelas forças positivas e operantes da direita local. Nos jornais impressos e eletrônicos todos louvavam a atitude firme da ação policial, mas não havia uma palavra sequer em defesa daquele moço desconhecido que morreu crivado de balas e estraçalhado por ter despencado do alto das ferragens da roda-gigante. O trágico fato acabou com o passeio de Mangagaí e ela quis voltar com sua amiga Selma para o Convento. Então Alêu se prontificou em acompanhá-las. Sendo que. No caminho não falaram outra coisa senão do corpo do moço que caiu fazendo um barulho horrível que não saia da cabeça de Mangagaí: “acho que não vou conseguir esquecer daquele barulho tão cedo...”. E depois, durante o trajeto, um pouco para disfarçar sua timidez, Mangagaí falou tim-tim por tim-tim que tinha nascido em Belém–do-Pará e que foi morar uns tempos com seu tio fazendeiro na Ilha do Marajó. Falou que este tio explorava a mata nativa e depois plantava eucalipto e vendia carvão de eucalipto, mas antes vendia carvão de mata nativa mesmo e estava com planos de plantar eucalipto por toda Ilha de Marajó. Também queria espalhar eucalipto por todo o Estado do Pará, pois o Governador do Pará era sócio dele nesse negócio de eucalipto e tinha, assim como o tio, horror a tudo que era flora e fauna nativa da Amazônia. Mangagaí depois falou dela mesma e disse que estava estudando no colégio de freiras, mas frisou muito bem que não iria ser freira de jeito nenhum e que era tudo questão de uma briga que teve com esse tio dela do Marajó, que ele era muito ignorante e que encasquetou de mandar interná-la naquele colégio católico só porque cismou de proibir o namoro dela com certo moço violeiro que veio do sul chamado Celso Branco e que esse moço Celso passou algum tempo no Marajó dando shows junto com um sanfoneiro do Piauí e que depois seu namorado sumiu de não ter jeito de ninguém saber notícias dele. Inclusive o sanfoneiro, amigo desse Celso, desacoroçoado com a situação, foi embora sozinho para Manaus, com a desculpa de que iria tocar num fandango na Festa do Encontro das Águas. Ainda por cima, Mangagaí acrescentou, que estava desconfiada que o tio mandara matar esse seu namorado Celso e acabou brigando feio com o tio que ligou para um deputado amigo dele em Salvador e esse deputado, que ganhava dinheiro também com a derrubada de mata nativa no Pará, arranjou para que ela ficasse internada neste colégio de freiras. “Foi só isso...”. Mangagaí encerrou sua estória e Alêu já segurava em sua mão para confortá-la, pois sentiu uma imensa revolta em tudo o que ela falava. Nisso ouviram algumas trovoadas vindo distantes, lá do alto mar, e ninguém falou mais nada, mas pensaram naquele barulho do corpo caindo da roda-gigante e Alêu tratou de mudar de assunto. Ele marcou de sair com Mangagaí no próximo sábado e foi embora contente para o apê de um amigo que ficava pertinho do Elevador Lacerda. Mas depois cismou de dar uma passadinha no apartamento de Nazaré, para apanhar as suas roupas que lá estavam. Ele também precisava conversar sério com Nazaré, pois já tinha em mente procurar um outro canto para morar... Bastava apenas que Mangagaí, sua nova conquista, dissesse um sim para ele... Um simples sim... E aquela menina, anjo encarnado na Terra, seria inteirinha dele...


Beto Palaio

quarta-feira, 18 de abril de 2012


Uma pausa para afastarmos a pedra do meio do caminho.

ALÊU E A SEREIA (XII)

DaVIdae+Damorte= Façamos o seguinte. Uma pausa. Para refletirmos sobre uma estrofe camoniana. Onde o mestre lisboeta deitou sabiamente, na mesma fina porcelana, a pusilânime morte que retrocede seus passos, flauteia com a vida e, por fim, troca de destinatário: “Um filho próprio mata, e logo acusa. De homicídio à Tomé, que era inocente. Dá falsas testemunhas, como se usa. Condenaram-no à morte brevemente. O santo que não vê melhor escusa. Quer apelar para o Padre onipotente. Quer, diante do rei e dos senhores. Que se faça um milagre urgentemente”. Diante desse jogo de consortes duplicados. No afinado ofício do toma lá, dá cá. Saímos desta maneira caçando luas vagas, amanhecendo dogmas e desfraldando bandeiras filosóficas. Tudo para afrontar a persistência do esfaimado diapasão, para o qual Platão, Kirkegaard ou Spinoza muito se esmeraram sobre o tópico. Assim, ó criatura devota das letras, algo de sopetão, pense e responda: a vida o que é? Ofício pagão de melhor dádiva? Uma pena do supra-mundo munida de tinta ilimitada? Um alto-relevo que produz uma flor soçobrada em claro e escuro? Um alvo cristal, pedra rara, a contemplar a luz diáfana da fortuna? Um verso que engasta uma rima e produz algo inesperado? Uma Deusa, angélica e inspirada, de ações multiplicadoras ad infinitum? Um adágio, uma centelha, um algo, um tudo, um universo acabado? Pense e responda: a morte o que é? O fim do ar que se respira? A mão ressequida da Fada Negra? Uma gilete na veia carótida? Ou algo como a lâmpada dos sonhos, que alcança píncaros inusitados, para depois descer aflita, desde o Palácio das Ilusões, das mãos do Criador, donde saltita, saltita e afinal descansa seu eterno paradeiro nas trevas? Pense e responda: a vida o que é? Formas alvas, brancas, angelicais e cristalinas? Formas impossíveis, ilimitadas, iluminadas por mil sóis ou mil luas, a refletir o branco da neve ou a mergulhar nos geradores recônditos das neblinas clorofiladas? A vida é tudo o que ocorre nessa miraculosa essência alquímica, ainda ao som do persistente troar do Big Bang? Pense e responda: a morte o que é? Seria a morte um desproporcional vazio? No vulgo, a discorrer, chamam-lhe inclusive Fatalidade, e de seu inquieto interesse, permanece a pungente escolha de decepar, anular, enguiçar, desprover ou minguar; a propor ainda o demônio no meio do redemoinho para engendrar suas trapaças? Pense e responda: a vida o que é? A vida é aquela que estica os prazos, assim como no forró se estica o fole? Não estaria ela, entretanto, bem ao longe, com suas manias prescritas, sendo sutil admiradora de navios de guerra, aviões de carreira, zepelins flamejantes e vingativos comboios militares? Pense e responda: a morte não seria uma bruxa faceira, de bela fala, que surgiu com pouca labuta, como dama de honra, à aniquilar traçados alheios? Não seria esta que em fantasmagórica visita, declamando versos de fidelidade, dos resolutos e inventados, a nos embalar por breves instantes, após o que trai, trapaceia e inverte seus desígnios ao nos apartar de nosso querido fado? Pense e responda: a vida é sempre o fulgor do inverossímil? Levada aos numerosos adversários, aos traidores, aos insanos, não seria ela, neste intento, apenas uma indelicada perfídia? Sendo má como o vinho que azeda o tonel, ou o vício que inviabiliza a disciplina, ou amaldiçoada qual o ái-me-acuda de um morre-não-morre infindo? Pense e responda: à morte sempre se reserva opróbrios de faces escarlates, línguas pérfidas, beiços rubros e estremecimentos repetidos por tortuosas trilhas? Sente-se acolá, a morte, que nem febre nem infecção grave havia, mesmo assim firmemente atua, a despeito de desalento ou carícia, neste caso, seus aconchegos doces, convencidos, estavam antecipadamente afeitos à ceia fatal? Pense e responda: a vida, ela própria, com metódicos suspiros de refazimentos, poderia agir somente pela sugestão do que quer que fosse, com uma constatação, diríamos, ao acaso? E não é que sempre acusamos a vida de ser viciada em aspirar tempo, em injetar tempo, em bebericar tempo? Pense e responda: a morte seria uma sádica, que se põe ao regalo, em gratificada lambança, por decepar alegres e vitais pulsações? E não foi algo providencial e súbito que, abrigado em disfarces, um frágil pombinho negro se apresente e bata insistentemente à nossa janela? Pense e responda: a vida não está a deslizar, em ritmada eloqüência, cheia de músicas saltitantes e peças da temporada, a dobrar-se como referida criada, como que fustigada, a viajar de palco em palco, incansavelmente? A vida fosse deste modo, estaria ela, sendo amaldiçoada, negada até, sendo pontuada, neste vil propósito, de arrependimentos? Pense e responda: a morte ronda e nos segue por horas a fio. Dias, noites. De sol-a-sol. E a aniquilação de milhões de criaturas, quando bem lhe aprouver, não lhe basta como motivo de contrição? Observem então este arremate: a danadinha da morte atravessou o povoado, sossegada, metida consigo mesma, a observar uma criança que o mar apartou da areia; ou mirando, sem pressa, uma inteira família, às curvas, dentro de um carro; ou admirando um meteoro a dirigir-se contra uma cidade distraída; e depois do frio, ou cio, saltita orgulhosa, ao regressar da lama, onde esgrimiu feérica, exaltada, à unha, com a descuidada vida? Coisas que os homens apenas supõem entender, mesmo os mais versados em barganhas aduaneiras, fustigações literárias e arrebatados projetos de administrar o hoje e o amanhã. Isto posto, imaginemos isto: será que não existiria entre elas, vida e morte, uma afeição, mesmo que seja a mais improvável? Após o que. Ao trampolim. Elas. Brincando, saltitantes, alforriadas, bem de perto, fiéis, enlaçadas, uma à outra, ao gosto? Tal o embate do mar com a areia? O bisturi atraído pela carne anestesiada? A mariposa entontecida pela luz? Um eterno duelo do lume com a sombra? Razoavelmente entregues uma à outra? A vida amasiada com a morte? De mãos dadas? Ardentemente? Apaixonadas, cada qual, com seu ofício?...

Beto Palaio