quinta-feira, 29 de março de 2012


Noventa milhões em ação, prá frente Brasil, salve a seleção!



ALÊU E A SEREIA (XI)


DOMINgo+noPARque= A luz da tarde não tinha ainda se esfiapado, porém as luzes do parque já estavam acesas. Para a alegria de Aleuzenev. Naquele sábado não tardou para que Mangagaí aparecesse, desta vez acompanhada de uma outra moça de sua própria idade... Elas estavam especialmente alegres e Alêu ficou seguindo as duas por entre os freqüentadores do parque só para ver se havia algum encontro marcado, algum compromisso mais sério esperando por ela, mas tudo indicava que não... Então, enquanto as duas estavam comprando maçãs-do-amor, ele se aproximou, falando diretamente com Mangagaí: “oi... Lembra-se de mim?... Posso conversar com você agora?”. E ela: “ah!... O senhor sempre me pregando sustos... Né, moço?”. E ele: “meu nome é Aleuzenev... Mas pode me chamar de Alêu... Muito prazer...”. E ela: “o meu é Mangagaí... E o da minha amiga aqui é Selma...”. E ele: “então?... Mangagaí?... É nome de flor?... Não?... Hein?... Indígena?... Diferente, né?... Mas... Queria muito falar com você... Vamos conversar andando na roda-gigante?”. E ela: “me desculpe... Mas lá eu não vou não... Uma amiga minha passou mal andando na roda...”. E ele: “ah, que desculpa, Mangagaí!... Confie em mim... Ninguém passa mal na roda-gigante não...”. E ela: “e quem me garante?”. E ele: “pois não estou lhe dizendo?... Eu vou estar lá para te socorrer...”. E ela: “já vi que não tenho mesmo escolha, né Alêu?... Mas a Selma também vai... Tá?”. Assim eles se entendem. E logo a roda-gigante começa a girar... A roda é viva, repleta de luzes, e gira... E a roda-viva do mundo também gira... Nosso pequeno mundinho gira com os rufos das manchetes de jornais... A Guerra Fria se instala... Milhares de jovens irão morrer no Vietnã... Procura-se por Chê Guevara... O homem vai pousar na lua... O Brasil fardado atraca-se com o jovem terrorismo de esquerda... Será que a Rússia vai atacar os Estados Unidos a partir de Cuba?... Nesse clima de renovado suspense... Alêu entra com Mangagaí para juntos girarem na roda-gigante... Os dois estão radiantes por estarem lado a lado... Alêu está com Mangagaí encostadinha nele com a roda girando... Alêu mostra o mundo visto de cima para Mangagaí... Enquanto a roda gira... Mangagaí não quer falar muito, pois sente que sua timidez lhe confunde... Enquanto a roda gira... Naquele instante o alto-falante da parque toca a música do momento: “noventa milhões em ação, prá frente Brasil, salve a Seleção...”. Enquanto a roda gira... Mangagaí está rindo e se deliciando de andar, pela primeira vez, na roda-gigante... Enquanto a roda gira... Lá fora o enlouquecido Brasil também gira: os terroristas de direita explodiram uma banca de revista na Praça do Correio e se acabaram dentro de um automóvel Puma estacionado em frente ao Rio-Centro... Enquanto a roda gira...... O terrorista Carlos Marighella foi morto numa emboscada facilitada pelos padres dominicanos... Enquanto a roda gira... Agora a roda está quase parando e Mangagaí juntamente com o Alêu vão ter de descer... Enquanto a roda vai lentamente parando... Ele está embevecido enquanto sente seu perfume e mira aquela boca carnuda que se oferece inocentemente para ele... Enquanto a roda vai lentamente parando... Seus desejos por enquanto se escondem de modo estratégico... Alêu está curtindo a diversão ingênua... E a roda-gigante finalmente parou: “viu como foi bom girar na roda? Não doeu nada, nada... Doeu?”, Alêu disse isto para Mangagaí e Selma, que sorrindo concordam com ele. Assim os três deixam a roda-gigante...


Beto Palaio


Pintura: José Roberto Aguilar - Futebol

quarta-feira, 28 de março de 2012


No sábado Alêu se arrumou como para uma festa, tudo pela moça de olhos verdes.


ALÊU E A SEREIA (X)


SeguINDO+MangaGAÍ= A flor não tem conhecimento de que é uma flor e nem imagina que entretém o mundo com sua beleza. A fruta, a paixão e a carne também não sabem de si. Assim revela-se a memorável janela indiscreta das insinuações. Onde somos bem-vindos ao epicentro do real desengano. Com o amor a inventar caminhos que são revelados pelos loucos e poetas. Verdadeiros seguidores dos romances de folhetim. Pessoas que se buscam e eventualmente se topam. No tal jogo de tentativa e erro. Pois há aqueles que brincam na chuva e aqueles que apenas se molham. “Ah, estavas tão tranqüilo Alêu, posto em sossego!”. Alêu defende qualquer loucura para perseguir sua revelada prenda. Ela, a gata de olhos de esmeralda, a morena mais frajola da Bahia. Uma delicia de quindim que ele quer seguir. Primeiro ele a acompanha com os olhos. E depois vai indo atrás dela. Disfarçadamente. Só para descobrir em que convento se esconde tão rara beleza. Nesta cobiça. Ele vai, passo a passo, atrás da moça e da freira, que seguem com pressa por uma escadaria longa que desemboca numa rua pavimentada por pedras aplainadas, unidas por argamassa, de onde desponta uma calçada ladeada por um muro repleto de heras, no qual está encravado um caramanchão semicircular, artístico e jeitoso, que possui um portão de ferro de mil detalhes floridos e de volteios, o qual revela um tortuoso corredor de acesso, ao fundo do qual está disposto um belo edifício setecentista que é o do Convento da Anunciação de Maria... E Alêu vai indo atrás... Vai indo... Vai indo... Vai indo... Ele só pára no caramanchão do portal, enquanto elas entram apressadas no edifício... “Cáspita!... E agora, será que perdi essa gatinha?”. Caso para se pensar. Com tantas manhas e artes inventadas. A descoberta da pessoa amada reveste-se de mil mistérios. Assim estava escrito. Durante aquela semana Alêu montou plantão nas proximidades do convento, mas nada dele avistar a morena de olhos verdes que ele conhecera no parque de diversões. No sábado seguinte ele foi novamente ao parque da Fonte Nova e... Nada dela aparecer! E o fato é que Aleuzenev não conseguia esquecer de jeito nenhum daquele rosto lindo com olhos de tigresa. Ele até pensou em fazer um escândalo na porta do convento só para ver novamente aquele rosto de anjo. A bela face que lhe lançou um canjerê, uma visão que ficou tão entranhada dentro dele, que ele acaba até por ter um sonho absurdo com ela. No sonho aquela menina estava com ele no Egito dos antigos faraós, entre esculturas, pirâmides, pés de tâmaras, areias escaldantes e os doces aposentos de um castelo à beira do Rio Nilo. Ali, a moça do parque de diversões era uma dançarina Núbia que vinha levá-lo passear por entre tamareiras e depois eles faziam amor dentro de um castelo cercado de objetos luxuosos. Neste serralho, Alêu deitava-se com ela em suaves e gulosas penetrações seguidas de banhos perfumados. Estavam naufragados, os dois, numa abundância exagerada de rosas verdadeiras. Entretanto. Sob o sol de Salvador, num dos dias daquela semana, Alêu saiu logo cedo de casa e foi andar pela Barra e depois se ajeitou num buzão que o levou até Itapuã. Ele ficou andando pela areia de Itapuã. Somente mirando a solidão imensa das ondas e, da janela do seu pensamento, ele falou para si mesmo: "se tiver outra chance ela vai passear novamente no parque e vai acabar topando ir girar comigo na roda-gigante... E eu estou topando tudo para ver aqueles olhos verdes de novo". Com isso Alêu viu o reflexo daqueles belos olhos na arrebentação das ondas... Tudo fazia com que ele não a esquecesse. Contudo, a semana demorou, mas passou... E no sábado ele se arrumou como se fosse para uma festa, pediu um perfume emprestado para sua vizinha de quarto e foi mais cedo para o parque...


Beto Palaio

terça-feira, 27 de março de 2012


Sim, porque os escolhidos para ficarem juntos nesta vida são como seres idênticos diante de um espelho.



ALÊU E A SEREIA (IX)


NoVIDa+desnaMão= Alêu agora quer esfriar a cabeça. Naquele sábado em que, no momento do gozo, Nazaré discorreu sobre a visão de um carcará, Alêu saiu afim de dar um tempo longe dela: “Eu vou é prá Fonte Nova... O lance é não marcar bobeira!”. Mas Alêu foi mesmo é para Amaralina, andar entre os barraqueiros, onde o canto hippie dos anos sessenta é entoado nas belas praias da Bahia. Ali a moçada é papo firme e, de Arembepe para cima, tudo é jóia rara e tremendão. Porém, para os caretões, os anos sessenta são aqueles que exigiam juízo e condutas temerárias. Onde o respeitoso cidadão é chamado de “fariseu” e respeita a falácia rezada nas cartilhas de educação moral e cívica. Assim difundiu-se a filosofia cartorial de que, se o careta marcar bobeira, ou berra no fio elétrico ou chamusca no trêzoitão. Entretanto, no fuzuê de cantos afro-baianos. Na juventude praiana. Um certo Aleuzenev ferve de vontade de sair por aí viajando de carona. Quer sentir o vento no rosto, e ir apreciar a paisagem e os tipos humanos que ladeiam a Rio-Bahia. Para ele somente. Uma estrada sonhada que vai levá-lo um dia para a Cidade Maravilhosa. Alêu está querendo pegar uma carona no Expresso 2222, mas está preso no seu destino soteropolitano. Num tal zelo que nem percebe que a intentona de 1964 está disfarçada de dinossauro e carimbando o destino de cada ser pensante neste Brasil. Neste ínterim, ao peremptório, entre inocente e iludido, Alêu estava morando, meninote ainda, até bem pouco tempo, em Água dos Meninos. De resto, ele chegou a ter sua mãe na zona e desconhecia que seu pai havia sido um dos mais respeitados Presidentes da República. Agora, passado o sufoco da adolescência, ele arranja modos de se firmar na crista da onda. Mesmo estando sozinho, entrementes, sendo um moço formoso, costumava dormir de graça na casa de uma quenga ou outra. Com elas Alêu trepa só por gosto e elas nunca deixam que ele pague a conta. Ocorre então dele, após o desentendimento com Nazaré, ir dar um passeio num parque de diversões na Fonte Nova, onde ele topa por acaso com uma linda jovem. Ela entretida só de ver ao gira-gira da roda-gigante. Daquele dia ele nunca esquece, pois era oito de Dezembro, o Dia de Santa Bárbara. Dia mais lindo ainda. Com o crepúsculo bordando a cidade. Nenhuma nuvem inesperada naquele céu tão lindo. Belezas que desempedem qualquer risco. Neste trocar de luzes. Alêu se maravilhou de imediato pela donzela e, de olho guloso nela, dá uma volta comprida em torno do tablado dos cavalinhos, depois passa direto pela barraca das prendas e vai ficar bem atrás dela, quase roçando em seus belos cabelos anelados e diz, dando um alegre susto na menina: “quer passear na roda-gigante, minha princesa?”. Ao voltar-se para ver quem mexia com ela, a moça que se chama Mangagaí dá de cara com o seu espelho. Sim, porque os escolhidos para ficarem juntos nesta vida são como seres idênticos diante de um espelho. Mangagaí fica atarantada em ver um moço tão faceiro lhe propor algo para a qual ela não estava esperando. Com isto ela fica sem ação apenas olhando para Alêu, que torna a repetir o convite: “será que assustei você?... Que desastrado eu sou... Só queria dar uma volta contigo na roda-gigante... Quer?”. Logo Mangagaí se protege: “eu não posso... Me desculpe... Estou acompanhada pela Irmã Marina, que está nos olhando... Veja... Me desculpe, tá?”. Nisto Aleuzenev vê se aproximar uma freira e sem que falassem uma palavra sequer com ele, as duas juntas se afastaram... Porém... Já um pouco distante... Mangagaí volta o rosto e lhe dá um sorriso... Oferece-lhe este resumido sinal e vai embora com a freira. Sozinho Alêu ainda murmura: “que saco!... Essa gatinha é interna de algum convento de freiras... Pode?”...


Beto Palaio

segunda-feira, 26 de março de 2012


Nêgo Mickey tinha uma verdadeira escola de sacanagem bem ali no Pelourinho.



ALÊU E A SEREIA (VIII)


BaHIaSal+Vador= Ao ponto do não retorno. Roma inventava gladiadores ilustres, para depois atirá-los aos leões. O que parece ser, de longe, um insignificante gesto. Na cidade de Salvador as regras são definitivamente iguais. Tudo aqui é o prazer do bom momento. Foi assim que algo começou entre os pombinhos. Alêu conheceu Nazaré quando ele era servente de pedreiro e morava nas obras em que trabalhava. Numa tarde de Sábado, ocupado nas funções deste ofício, foi que ele viu sua pretinha pela primeira vez. Alêu estava pendurado num andaime, e lá de cima descreveu para ela as suas intenções: “ei gostosa! Qué namorá mais eu? Ô doideira de baianinha! Eu fui criado para zoar com uma deusa linda... Assim como você”. E de fato eles viveram um grande amor. Uma paixão sem limites. Brindada pelo especial tempero da Bahia. Um amor rico, e sem fim, como a Igreja do Bonfim. No jeito para flutuar no céu azulzinho e vir pousar na Ladeira do Pelourinho. Fatal para voar de balão aos sobrados da Abolição e se espreguiçar bem matreiro na Baixa do Sapateiro. Amor para vadiar faceiro passeando no Rio Vermelho e entreter-se nos atabaques dos santos de terreiro. Paixão para passear no Mercado Modelo, descansar na Igreja de São Francisco, e espreitar a Praça da Sé, com baianas vendendo acarajé. Namorico de andar sem pressa, vendo lá longe, água escura em areia branca, a lagoa do Abaeté... Alêu freqüentava esses lugares todos desde menino. E sabe tudo desta cidade. Decorou tudo quanto é festejo. Quais as do ciclo das festas de largo, que agita Salvador em Dezembro, com a festa de Santa Bárbara, e vai até fevereiro com a Festa de Yemanjá. Festejos que depois desemboca no Carnaval com a força e a tradição da raça. São mais de dois meses de festividades unindo atos religiosos aos profanos. Barracas são armadas ao longo das praças e largos da velha cidade de Salvador e tudo acontece, desde a cerveja consumida em grande escala, aos quitutes e pratos baianos dos mais sofisticados, com aromas intensos, cores vibrantes, sabores picantes e também muito som, muito batuque, muito agito com turistas misturados aos oriundos, todos zanzando para lá e para cá... Mas é da Ladeira do Pelourinho que Alêu carrega na memória uma festa maior. A festa de um contador de estórias que segredava a cultura mundana à uma molecada ávida para o descortinar do amor carnal. Uma aula em primeira mão de quem comeu quem, quem deu para quem e outras miudezas que só podem interessar ao vulgo das ruas. Essa voz dos becos vinha diretamente do maior conhecedor de sacanagens da Bahia: o saudoso Nêgo Mickey. A alegria de quem adota a rua como domicílio, assim como o Alêu, que no Pelourinho ouvia sempre a voz esganiçada e safada de Nêgo Mickey. Esta vindo fantasmagórica e malandra de um passado agora distante. Aquela voz tinha o dom de lhe cavoucar lembranças das mais engraçadas. Nessas ocasiões parecia que ele via o Nêgo Mickey na calçada, cercado por uma fieira de garotos: "A primeira atividade de amor despudorado no Brasil aconteceu bem aqui no Pelourinho... Foi quando um feitor português comeu uma escrava na frente de todo mundo... Não é estória não... O português cravou a pica na pretinha aqui mesmo... A lenda diz que foi um tipo de castigo, sim senhor. Mas será que foi mesmo?". Nessa praça histórica no centro antigo de Salvador. Alêu aprendia tudo da história natural do sexo. Dando trela para essas e outras parolagens vindas daquele rotundo e desocupado Nêgo Mickey. O qual principiava sua oratória sem-vergonhista ao descrever as utilidades da chavasca, para isso escolhia palavras de um dicionário que só existia na cabeça dele. Num recitatório. Como no caso das palavras iniciadas com a letra dê, "para se sentir primeiro como o dedo, depois com o desejo de penetração", dizia o poético Mickey, e acrescentava uma relação de nomes vaginais principiados com dê: "com esta letra temos dedilhada, disgramada, dita cuja, dona-ceta, dondon e duciléa...”. Logo o Nêgo Mickey saltava, aleatoriamente, para outras gentis palavras explicando as receitas de simpatias de alcova decoradas pelo povinho dos becos e vielas: "essa simpatia que vou dizer é um estrago para principiar penetrando lento e depois partir para o estrago enchendo tudo de porra...". Só a partir deste espetacular preâmbulo é que o leão da Metro da sabedoria chinfrim dava a tal receita para o aumento de potência do canhão de carne, que é composta de uma mistureba de ovos de codorna, ovos de pata, cerveja caracu e açúcar: "com essa simpatia qualquer menino que seja, aumenta em cinqüenta por cento o poder de mandar a porra bem longe... De esguicho... Não acreditam?... É só experimentar...". Os moleques ficavam bobos com tanta erudição gratuita com suas safadas simpatias: "querem aprender uma simpatia para a perereca da menina abusada voltar a ser de uma moça virgem?... Pois, em qualquer farmácia tem prá se vender uma pedra milagrosa chamada de pedra ume e é só passar a tal pedra no orifício vaginal que o mesmo ficará pronto, ao de novo, para uma cacetada inaugurativa...”. Arremata-se que. Como tudo nesta vida tem de chegar a um final. Imitando as idas e vindas da maré nas inhaúmas de pedra. Depois de um tempo nunca mais se ouviu falar do Nêgo Mickey; nem no Pelourinho, nem em qualquer outro lugar de Salvador... Dizem que ele foi para o Recife... Ou mesmo para o Rio de Janeiro... A molecada lamentou a ausência das aulas apimentadas na escola da Ladeira... E lamentaram muito mais ainda toda a coleção dos livrinhos safados do Carlos Zéfiro que o Nêgo Mickey levou embora com ele... A escola de safadeza local havia perdido seu maior mestre... Mas Alêu agora está numa Salvador diferente, com os fuscas tomando o lugar dos carrões rabos-de-peixe e das charretes puxadas à cavalo e com muito moço da sua idade vestindo terninho para virar office-boy para alguma empresa petroleira de Camaçari que naquela cidade mantém suas atividades de administração...


Beto Palaio

domingo, 25 de março de 2012


""Siga o carcará... Siga o carcará...": um estranho aviso para Alêu.


ALÊU E A SEREIA (VII)


SiGAo+CARcará= O homem inventou certas frases que caem bem em qualquer contexto. Guarda-te do boi pela frente, do burro por detrás e da política por todos os lados. Esta é uma delas. Eis outra: a Babel emaranha o entendimento, o condor plana no firmamento e o amor se esconde, em fingimento, nas folhagens do comigo-ninguém-pode. Mesmo ao acaso há esperanças quando surge a oportunidade de uma boa explicação. Pois a vida é um oceano que se oculta num dedal raso d´água. E o nosso personagem parece até que entende muito bem deste riscado. Perto de completar vinte anos de idade. Alêu freme. O amor é um vírus oriundo do planeta Castidade. Enquanto em Salvador. No perfume da maresia. Os dias são mágicos. E prometem surpresas infindas. Observe que. Os dedos corrediços das ondas, ao mar retornam. Chora o coração que se ufana e se abisma. E a juventude o usufrui com alma ardente e pés descalços. A lua é, nesses momentos, apenas a Tetéia, uma fã de circo e malabares. Assim o destino de cada um se aventura e se alarga. No ofício de florejar o novo. Os sinos da Bahia tangem o som dos pombos apaixonados. O épico de outrora renasce com o sol ardente. O amor-fênix se apresenta por inteiro. Inflama-se tal palácio de cristal diante de um depauperado deserto. E o verde renovado da folhagem derrama-se por toda capital soteropolitana. Nas amuradas o ouro se esparrama em forma de luz. Nas faces jovens brilha o desperdício do ourives. O riso, os corpos, os gozos, os reflexos da ternura, mais e mais, engendram casais. E o Recôncavo alvoroça-se. Agora em meio rosto, agora por inteiro. Tudo age em pleno luzeiro. Mesmo aos descalços, filhos do proletariado, o amor chega por igual. Excessivo é o lume na caldeira do amor. Até o incauto Alêu se espicha na areia movediça e se entrega para as feiticeiras apaixonadas... “Gente, cheréca é bom... Mas o cheirinho é de lascar!” Isso disse Aleuzenev ainda deitado observando sua fêmeazinha que acabava de sair do banho. “Ah, não seja besta Alêu... Você despreza, mas daqui a pouco vai querer tirar um sarrinho... A mim você não engana não...”. Realmente, o Alêu está é pancadão de tanto peneirar um jazz black love com a sua mulatinha Nazaré. Ele havia passado o dia inteirinho fora e quando chegou no apê se espichou na cama e logo deu de cara com Nazaré nuínha e, ao contrário do que ele falou, ela estava se perfumando com requintes de espalhar talquinho até no amontoado bombril dos pêlos negros de seu púbis... A TV na sala estava ligada no seriado do herói japonês, o National Kid, que foi interrompido para comunicação extraordinária, onde o Presidente da República, vestindo um fardão engomado, acabava de baixar um Ato Institucional que deixou o país inteiro mergulhado em silêncio, o Ato Número Cinco. Tudo feito nas piores intenções possíveis... Porém, nem Alêu nem Nazaré se deram conta da notícia nefasta, pois Alêu quando viu que a morena estava no ponto para um forrózinho, caiu foi de boca soprando e lambendo talco Johnson... “Gostoso demais, Nazaré... Com talco eu nunca tinha experimentado... Agora vem... Vira do jeito que eu gosto...”. Ao bater na porta do céu os beijos são de pelúcia, e as carnes de cetim. A xãna repleta do tenso nervo. Afoitos e lestos. O espôrro, o grito, o tesão, a raiva, o ódio e a malícia impulsionam os diversos jogos existentes desde a idade média até os tempos atuais. Jogos como o pião, a amarelinha, o jogo do ossinho dentro do saco, o gamão, o pula-carniça, o tiro ao alvo, o jogo do fio esticado, a cama-de-gato, o jogo do assassinato sob a proteção da lei e outros não menos formosos. Temos jogos em profusão com o rei destino gritando de sua janela e descrevendo mais e mais contendas onde tudo se iguala e se nivela, seja ele proposto para uma lagosta, uma leguminosa ou um cão. Quanto ao que está traçado pelo atento destino, em seu ato silvo de descrever, incluem-se jogos mui harmoniosos e gentis, estes envolvendo seres desimportantes e pequeninos, mas com acréscimos de dores tão imensas que em comparação fazem com que o gigante Júpiter se revele como algo ínfimo, tal e qual um jardinzinho florido para a visitação de abelhas melíferas... “O carcará!... Siga o carcará, meu amor! Siga o carcará!”. Aleuzenev da Silva, o Alêu, está num apê no centro de Salvador peneirando Nazaré, que é uma mulata muito boa de cama, mas que bobéia e fala coisas disparatadas e absurdas ao sentir que se aproxima o jato do gozo. Alêu já ouviu coisas estranhas vindo dessa mulata. Ditas justo neste momento próprio para um "eu te amo" ou um "goza, meu bem", porém agora ao ouvir a ordem de seguir um gavião carcará, ele sente um quase impossível desejo de refrear a gozada e de cair fora... Vontade de pegar a estrada e sumir... “Pô, isso não é trepar, é uma aperreação... Ou coisa pior... Tá bestando, mulher? Que papo furado de carcará é esse?...”. No que Nazaré se recompõe: “desculpe a sua pretinha, Alêuzinho... Pelo Senhor do Bonfim... Não é culpa minha... É aquele mesmo canjerê de sempre... E isto me fez ver você andando num caminho de terra amarela e tendo um carcará como guia... Tinha que te falar disso... Acho que um dia, tua vida vai depender do que te falei agora...”. Misto de conformes sérios com idéias enroladas. Delicado som destoante. Palavras que esfriam uma trepada. No propósito de entornar o caldo. Elas não explicam nada. Contudo deixam Aleuzenev muito preocupado...

Beto Palaio

sábado, 24 de março de 2012

A primeira aparição de Carlos Lamarca neste folhetim remissivo.


ALÊU E A SEREIA (VI)

Nonada+notudo= Brotas de Macaúbas é uma pequena vila que fica ao lado do arraial de Canabrava. Um rio seco divide ambos os povoados. Brotas de Macaúbas é considerada uma excelente vila para se morar. Isto afirma quem já comeu muito pó da boa areia do sertão. Mas Brotas não seria eternamente confinada à boa paz, como se verá no depoimento que virá após o seguinte floreado: “Eia, a manhã promete piquenique... E você vem?”. Beira o bom e acertou-se de ir. E fomos àquela festa campestre de lambreta. Fazíamos caretas para a velocidade e o vento. Ela estava com uma blusinha de malha. O mar, neste dia, consentia de ser imenso. E numa laje de pedra, oculta da visão alheia, ficamos deliciosamente aquecidos pelo sol. O canto das cigarras nem parecia ser tão importante assim. Prá lá uns mutuns queixavam-se um do outro, e vice-versa. Éramos jovens e tentávamos descobrir tudo sobre o amor, a amizade, a família, a pátria e as religiões. Neste piquenique o mar até respingou em nós. E o dia foi passando ligeiro. O relógio do sol sinalizava suas imensitudes. Ao meio-dia. Na malhação. Notícias do Repórter Esso pelo radinho de pilha. O perfume é amargoso. Era véspera dos direitos humanos. Vai-se ao distorcido. Ao sistema da política opressora. Foi por essa época. 1968, 1969, 1970. Nos anos de chumbo. Na mão de carrascos descobriu-se que o cano da metralha não respeitava nem canudo de rábula. Entrelaçados no jogo de empurra-empurra. Um messianismo exemplar. Nas praticas mais obscuras do regime. O Brasil estava sendo dividido ao meio, entre os comunistas enrustidos e os militares sublevados. Neste dividir, uma parte da merenda estava sendo disputada por um clã de redemocratizadores. Inclusive por um ex-militar de carreira que agora comprara a briga de libertar o Brasil do terrorismo de Estado. Nascido para a fama de versões e controvérsias. Ao perseguir o ideal cubano. Esse militar, o Carlos Lamarca, era Capitão nas divisas perdidas, mas o maior terrorista do país nos lambe-lambes grudados em postes, viadutos e nas vidraças de agencias bancárias e autarquias. Dizem que um destemido nos modos de comandar quem estivesse por perto. Lamarca, no andar da carruagem, aportaria na Bahia com justos motivos de passar o recado da discrepância. Fatos tornados obscuros pelos estafetas de Brasília. O qual Lamarca quis transformar em libelo de uma nova Canudos, algo a ser decretado, entre os matutos do sertão nordestino. Claro, talvez, quem sabe? Achegava-se também ao nordeste. Apenasmente. Na busca de sua Yara, namorada do Capitão que estava num aparelhamento de esconde-esconde em Salvador. O Lamarca, inda que com orgulho de ferro, imaginava-se na ourivesaria da liberdade, e atuava como tal. Fosse ao que fosse. A motivação era para que os sertanejos, todos nós, tomássemos posse do Forte da Estrela, logo mais ao norte, no Cabuçu-do-Ceará, e de lá arredássemos qualquer ser vivente que se aproximasse pelo mar, num cabo-de-guerra, ou por terra, num trem militar. Em contrapartida o Capitão Lamarca viria desde o sul. Onde ele se amoitara na Mata Atlântica, e de lá comandaria o avanço, com rédea curta, aos poucos fiéis seguidores, um tanto quanto verdinhos, entretanto crentes na papelada reformativa, matutos de última hora. Todos estes são os escolhidos, os topados, os verossímeis, os agregados de seu exército particular. Para constar como exemplo de comando. Disseram depois que ele costumava, no frio da floresta chuvisquenta, reunir todo mundo em torno de uma providencial fogueira e deitar falação aos modos de um caiçara dos arredores: “meus amigos, o sertão vem de dentro. O que é nosso se respeita sozinho. A guerra não presta não. A guerra fede. Mas sem guerra nada vai mudar. Não até que...”. Esse “não até que” ficava no ar. Pedia uma solução. Que Lamarca logo arrematava para um entendimento de giz em quadro-negro: “malditos pelegos do exército. Gente estacionária. Vamos mudar isso. No tudo e no nada. Quem aqui morre pelo novo Brasil? E quem ousa lutar, não ousa vencer? Então vamos. Pois já não pertencemos à velha pátria...”. E Lamarca ficava assim discorrendo excelsitudes. Com o quente da realidade fervendo pelas beiradas. Providencialmente. Um sol que fazia tremer aquele exército de sedentos. Onde os melhores recrutas se defrontariam enfim. Bala com bala. Até que o Brasil fosse propriedade, sabe-se lá, de fato, se um dia será, aos reais brasileiros...

Beto Palaio

sexta-feira, 23 de março de 2012


Uma briga de rua sentencia Rodrigo Leonardo Pataca, o Rodrigão.


ALÊU E A SEREIA (V)


OrdemePro+gresso= Gozemos o mais possível, pois que conosco tudo se acaba; gozemos depressa, porque não sabemos por quanto tempo ainda existiremos. Gozemos apesar de tudo, gozemos de qualquer modo, cada qual por si; pois a felicidade neste mundo é tão invisível quanto passageira. No desdobramento de um efetivo intervalo. Um toque floreado de saxofone. A novela das oito é promovedora de farsa, ópera-cômica e sabão-em-pó. O final feliz é sempre muito encorajado. Naquele mar de antenas. Logo o suicídio de Rigina seria esquecido. Havia um ranço de parasitismo no ar. O lícito e o ilícito jogavam de mano em Salvador. Mas o castigo vem a cavalo. Rodrigão não perderia por esperar. Pois só o dono da pólvora tem a chave do paiol. No tim tim por tim tim. Apenas para os omissos. Aqui se faz, dizem, aqui mesmo se paga. Pois o belo canto e o desencanto nunca combinam. Acertado que sim, explica-se. Houve um outro crime na cidade. Após a missa de sétimo dia de Rigina ninguém mais pranteou por ela. Aí é que o bicho pega. Nessas aspirações de felicidade. Só sendo na Bahia para a gente justificar isso tão bem. Quando nas notícias há um sagrado sentido de ordem. Outras estórias. Nas ladeiras ao redor. A TV Philco mostra um astronauta afundando suas botas na lua. A publicidade é prima-irmã da filosofia barata. Na erraticidade é que o espírito progride. Com a bola verde-amarela ofuscando os campos do México. Nas faces juvenis. O progresso. O radinho de pilha, o fusca, o LP e o violão. As conversas de botequim. A Crush tomada no gargalo. E o povo descabido a sorrir. Burburinhos de felicidade. Quem perdeu o cabaço na escola das madres? Quem mastigou a óstia na Primeira Comunhão ? Quem roubou a agência do Banco do Brasil da Praça Castro Alves? Quem findou com dois tiros na cara? A vida é mesmo fofoqueira. É ruminante. É colossal em seus palpos-de-aranha. Para o devido aclaramento. A trança social logo vem e ilustra o transcrito no que tange a vingança do destino ao infiel Rodrigão. Eis, sucintamente, os fatos: a moça Maria Rosa, o pivô da tragédia, era uma criatura doce e recatada. Os conhecidos não podiam dizer dela um nadica de nada. Era chegada à Revista do Rádio, poemas sentimentais e agulhas de rendados. Mas Vidigal desconfiou da prima. Quis engendrar o causo de boca própria. Topou com Luizinha na praça. Em questão de minutos. Luizinha desdisse o que dissera antes. Forjou-se um acordo. Conversa vai, conversa vem. Entendera ela, por alto, que Rodrigão tinha culpa no cartório ao usar e abusar de Maria Rosa. “Aquela santa!”, como lhe disse Luizinha. Então Vidigal pedalou firme sua Calói em direção à casa de Tomás Jasão, o aprendiz de estiva. Havia entre Tomás e Leonardo Pataca, dito Rodrigão, uma diferença de jogo. Coisas do 21 e do pôquer. Contas mal resolvidas. E o tal Vidigal, ali, em futricas sem compromisso de solução. Muito embora, entretanto, no outro lado da praça, esse tal Rodrigão, por pura casualidade, orelha em pé, ouviu da vizinha que a Dona Maria, a mãe de Maria Rosa, não estava nada satisfeita com o procedimento da filha. E isto era mais do que cisma da menina não ser mais cabaçinho. Dizia que Maria Rosa com casamento marcado deu de soltar a franga, com vistas, quem sabe, a um possível descompromisso. Inclusive a vizinha disse que a mãe de Maria Rosa estava coberta de razão, pois o Compadre Zeca, um dia indo até a mercearia, ouvira dizer que o Delegado Carlão Sampaio também tinha comido e descomido essa menina Maria Rosa, e que, além disso, já ouvira dizer das taras do Rodrigão com ela. Ainda somou: “o abusado que não perdesse por esperar”. Mas Chiquinho e Alexandre, outros primos de Rosinha, a defenderam e, por fonte segura do primo Vidigal, saíram acusando Rodrigão da lambança sexual com a prima. Tudo por ela estar de casamento marcado com um estimado oficial de cartório chamado Reginaldo Bronha. Com os disparates como testemunha, foi prometida uma surra ao folgado do Leonardo Pataca. Tudo no bom embrulho da encomenda. Prontamente restrito a um sururu, com o Rodrigão, acuado e cercado, pelo pai e pelos irmãos de Maria Rosa. Ele, com intuito apenas de intimidar, até puxou de um revólver. E calhou de acontecer aquilo. No empurra-empurra todos tinham e não tinham razão. Foi quando a arma de Rodrigão vomitou dois tiros. Assim, dessa forma desastrada, findou que um Tenente-Coronel de nome Afonsinho foi tombado sem querer, com dois balaços no meio da cara. Morte prá lá de dolorida. Aos autos acrescenta-se: João Manuel, um dos vizinhos, testemunha da lisura de Rodrigão, aliás, Rodrigão nos documentos sendo mesmo, no completo, Rodrigo Leonardo Pataca. Este João Manuel, em frente ao juiz, tremeu. Disse outras estórias. Que ouvira dizer que Rodrigo Leonardo era até primo longínquo de Maria Rosa, o qual foi quem recebeu um caboclo, na ordem de um exu, e tentou acertar contas com seu despropósito, este sendo o Luizão, pai de Maria Rosa, mas que errara o tiro. Afirmou até que o Tenente-Coronel nem estava por lá. Só muito depois dos tiros que apareceu o corpo dele na praça. “E como é que o Senhor explica isto, Senhor Juiz?”. O Juiz não explicava nada. Nem tinha de explicar. Um Mestre-Escola foi chamado ao banco das testemunhas, um zeloso cidadão era testemunha de que Maria Rosa era quem ia, toda safada e por conta própria, à procura de Rodrigão. Os primos urravam no recesso. Vidigal até corou na platéia. Todo esforço de salvar a prima Rosinha estava desfeito... Recapitulando o nó-de-gato: uma certa vizinha forjou uma estória de que Maria Rosa, a prima, estava transando com o namorado Reginaldo, mas que na calada da noite era furtada pelo Rodrigão: “um zé-mané que não saía da porta de uma banca de birita na beira da praia”. Tomás Jasão, também primo de Maria Rosa, que devia um certo dinheiro para esse Rodrigo Leonardo Pataca, por ódio e em vista disto, mas também escorraçado pela moral titubeante da prima, acabou por atracar-se com Leonardo em frente ao bar do Conceição. A comadre Dona Maria, a mãe, que estava possessa na audiência pública, foi firme na acusação de que Rodrigo Leonardo Pataca seria o criminoso, entretanto deu um grito desconcertante da platéia: “Senhor Juiz, ele é inocente, a culpa é da sem-vergonha da minha filha!”. Inclusive Vidinha, uma puta assumida, também gritou pela inocência de Rodrigão. Mas o Juiz recebeu um bilhete lacônico de uma autoridade militar. Um “farinha do mesmo saco” que estava ali à paisano. Neste bilhete o milico graduado pedia, em ato extraordinário, a condenação sumária do réu por tratar-se de “crime contra o Regime Militar”. Então o Juiz, naquela noite, entendendo o recado daquele bilhete, avesso que era às intrigas da distorcida maçonaria dos militares, ordenou afrouxar a guarda do criminoso e este caiu na mão de belicosos torturadores. Ocorre que. Nenhum daqueles homens de alma negra. Por mais inventivos que viessem a ser. Jamais acreditariam na estória de que um decente militar fosse morto numa pendenga sobre a virgindade de uma sirigaita desatenta de seus guardados. “Ô cidadão!... Ô cidadão!”, perguntavam estes ao Rodrigão, no encontro esconso e medieval da tortura: “você fodeu com a prima ou com o tenente?”, isto vindo de um dos marmanjos militares que, com a mão na manivela, desferia 220 volts diretamente no saco de Rodrigo Leonardo Pataca. Mas foi Leonardo quem acabou mesmo por entregar os pontos. Não resistiu ao interrogatório. E num aperto mais prolongado, veio ao óbito. Ao depois, no bairro de Rodrigão, os ânimos se dividiram. Morte é morte, festa é festa. Rodrigão, sendo um Filho-de-Gandhi, recebeu sua justa homenagem. A rua de sua casa ficou tomada de atabaques, bancas de salgadinhos, birináites, flores e faixas de condolências. Disfarçadinha, a prima Maria Rosa foi até ali chorar e fazer entrega de um calhamaço de flores. Arrependida estava ela de haver sido o pivô daquela tragédia. Entretanto. No fundo, lamentava a perda de tão esmerado comedor de bocetas. Chorou na moita as suas mágoas. E aos poucos, no derredor do bairro a bairro, foi tudo voltando ao normal...


Beto Palaio

quinta-feira, 22 de março de 2012



Será que somente ela caminha na contramão do mundo?

ALÊU E A SEREIA (IV)

NaBahia+sóCéu= Do outro lado da rua já é 1959. O motivo condutor criativo é capaz de tudo. Até de olhar para a calçada oposta e ver rostos anônimos passando. Entre eles está a mãe de Aleuzenev, com 28 anos de idade, abraçada à um conchavo de indecisões. Naquele momento sua vida está mais enrolada do que mecha de alinhavados. Ademais, isto é fato consagrado, apertura financeira só surge em hora especialmente imprópria. No caso particular de Rigina. Os números saltitam em juros ascendentes e nunca se atrapalham: são 100 cruzeiros que passaram a ser 300 cruzeiros, que passaram a ser 700 cruzeiros, que passaram a ser 1.200 cruzeiros, que passaram a ser 1.500 cruzeiros. Depois a soma deu dois contos de réis. Rigina está devendo tudo isto de aluguel, e deve também no armazém, na loja de roupas e no atraso das contas de água e luz. Mais até do que uma constatação. A realidade da turmalina é a de ser pedra falsa, a do sapato novo é o de apertar em pé grã-fino e a do cão vira-lata é de apreciar comer restos nos monturos. Fatos pouco acerbos quando comparados com a grande impaciência que invade Rigina. Esta contramarcha vinda desde a noite anterior, quando elazinha ficou prostrada de tanto argumentar com seu homem, o Rodrigão. Confiara demais nas mentiras dele. Com isto, em lagrimas furtivas, Rigina tenta concentrar-se no batom que reaplica com visões borradas no espelho. Depois quer se entreter ao mirar os detalhes de sua casa quase feminina, com cortinados e bibelôs espalhados por todo lado. O seu casaco de deusa está dependurado e seu vestido ainda se equilibra na beirada do box do chuveiro. Por breve que seja, ela tem uma interpretação de raiva, sobe-lhe um calor que lhe dá afobação. “Engraçado isso”, ela pensa, “agora dei de ter pressa”. Uma mudança de estilo para ela. Desde que mudara para Salvador está de mãos atadas. Sua vida é como um ipsilône, bifurcada numa ponta para o filho Aleuzenev e na outra para seu namorado Rodrigão. Agora Rigina se sente ridícula. Seu filho adormeceu. Ela ama Aleuzenev que já tem quase onze anos de idade. Ele já sabe se cuidar sozinho e tem seus passatempos, mesmo nas vezes em que Rigina sai para seus encontros amorosos. E toda noite ela se ausenta. Principalmente agora que Rigina conheceu o caminho da zona. Abre para si todas as circunstâncias de se fazer idolatrada nos inferninhos da vida. Entretanto a realidade a esbofeteia, acachapante, sem melindres, cruamente. O mundo das taras é repleto de falsidades. Afinal o que mais a vida pode lhe oferecer? O sexo é uma delícia, isso Rigina demonstra que sim. Chega até a embaraçar-se, quando lhe falta o consolo de um mastro pulsante. Porém, apesar desse lenitivo, vive oprimida pelos corredores dos casarões de Salvador. Cidade onde o calor a sufoca e as pessoas lhe são estranhas. Ali a nação negra a intriga pelo exotismo e a conscupicencia. Principalmente agora, naquela eminência de despejo, os espaços lhe faltam, minuto a minuto, com suas chances restritas. Com isto ela já se vê morando no olho da rua. Não tendo coragem para nada, naquele dia, no aguardo do Rodrigão, sente-se humilhada desde o almoço. Onde a qualquer momento espera que surja para cumprir com o prometido. Entretanto. Sua roda da boa fortuna parece girar ao contrário. Os aluguéis estão em atraso. As contas vencidas e uma ameaça constante de ser posta no desamparo. Ela, contrariada, vira bicho, faz baixarias. Sente mesmo um curuquerê na alma. Se maldiz até. Inclusive agora. Apalpa as roupas dependuradas como se procurasse dentro delas um tesouro libertador. Anda para lá e para cá. O seu menino está dormindo, mas com o rosto suado pelo calor da tarde. E o Rodrigão nesse chega não chega. Rigina quando nervosa costuma até ouvir uma voz que martela dentro dela. Uma voz soturna vinda de suas preocupações. “É teu santo-de-cabeça”, dizia sempre sua mãe-de-santo, a Deolina, “você tem de desenvolver esse santo, senão tudo em sua vida anda para trás”. Rigina, naquela tarde quente ouvia aquela voz baixa, entrecortada, grave, dizendo-lhe que seu homem não viria. E, pior ainda, dizia que seu homem não lhe daria dinheiro nenhum. Dizia até que Rodrigão tinha outra mulher e que Rigina era a segunda opção dele. “Rigina, olhe para você... Se dê valor... Você deve parar de andar com esse safado”. Rigina, sozinha no quarto, nem sabia mais de si, desesperava-se, vestia seu casaquinho branco, olhava no espelho, ajeitava o vestido, molhava as têmporas, chegava até a porta da rua, entretanto não avistava ninguém vindo que lhe lembrasse a figura do Rodrigão. Então voltava, ia até a cozinha e colocava uma colher de açúcar num copo com água e sorvia aquilo que julgava ser o melhor dos calmantes. Ela disfarça e tenta até rir com sua situação. Entra no quarto onde Aleuzenev dorme, pega uma antiga foto que está na penteadeira. Lembra de Minas Gerais, das ruas de terra misturadas com pedrinhas brilhantes, lembra-se das árvores frondosas sempre cheias de gorjeios de pássaros e das imensas montanhas, as quais formavam seus azuis lá no horizonte. Salvador não tinha nada disso. Ela desesperava-se por não ter um lugar que pudesse chamar de seu. Está atarantada. Foi de Pará-de-Minas para o Rio, depois voltou para sua cidade natal e agora, Salvador. Mas dentro da penumbra do quarto ela não está exatamente em Salvador, pois traz nas mãos algumas fotos antigas. Ela sente-se velha. Até isso a oprime. Desconfiada, lesta, pasma. Verifica, ao atribuir, por tudo, que cantou, sorriu, chorou, zombou, amou, gozou e o tempo passou. Fotos de como e quando ela era menina. Junto com outras meninas. Fotos já esmaecidas. De um amarelo curtíssimo. Fotos com o melhor do que ela foi. E isto. Apenas sendo um presságio dela estar junto de pessoas queridas. Seres que ela nunca mais veria. Retratos em preto e branco. Com poses de caras e bocas restritas ao papel fotográfico. Alheadas desde que. Suas mãos trêmulas lembrando. E tão somente e apenas isso. Mas ela quer se iludir. Com o acumulado das dívidas a lhe cutucar. Ela e Alêu estão praticamente esmolambados. No frágil dessa suposição. Ela mira as fotos. Quer voltar a ter a pele viçosa de dez anos atrás. Os olhos sem aquele princípio de papadas. O cabelo faceiro. O rosto sem o apontar de precoces rugas. Será que somente ela caminha na contramão do mundo? Será que o universo é que está errado? E assim, neste conforme. Ela sente uma vontade de sumir e de praticar algum desatino. “Não quero nada de ninguém!”, ela pensa em voz alta. E acha que o espelho da penteadeira é a casa da bruxa: “Ele mente...”, “...Eu não sou assim...”, “...Não sou assim...” , “...Nunca fui assim.”... E depois ela tenta não pensar em nada e deita-se ao lado de Aleuzenev que dorme, mas nem consegue ficar muito tempo assim. A pressão lateja em suas têmporas. Foi até tentar dormir um pouco, mas não consegue. Mesmo para entreter-se. Depois se levanta, entra no banheiro e tranca a porta. Nada mais faz sentido para ela. Não consegue pensar noutra saída senão aquela. Olhando para uma lâmina de gilete que está ao lado de fragmentos de sabonete, na pia do banheiro. Mal sabia que aquela simples lâmina iria jogar suas chances no lodo e transformar Aleuzenev em menino andarilho e engraxate. Contudo, pouco importa o futuro quando se está naufragando num poço sem saída. Ela escuta aquela voz soturna dentro dela que repete não haver outra saída. “Acredite Rigina: a única solução é esta. Só esta mesmo...”.

Beto Palaio

quarta-feira, 21 de março de 2012


Veio a calhar da Venezuela ser a pátria da rumba e do bolero.


ALÊU E A SEREIA (III)

AleuzENEV+VENEzuela= Pois Aleuzenev nasceu mesmo em Minas Gerais. Entretanto consta que nasceu em São Sebastião do Rio de Janeiro. Isto foi lavrado em Certidão. Com este fato ele é, ao mesmo tempo, um bicho-de-queijo e carioca da gema. Sua mãe sendo uma rumbeira de nome Rigina. A qual. Menina ainda. Vivia na Lapa. Palco do lirismo das letras de samba. Próximo ao Aqueduto da Carioca. Morando com uns parentes mineiros. Num regime restrito. A implorar por auxílio divino. Rigina na sua pobreza. Dividia seu colchão com sonhos e planos de melhorar de vida. Enquanto nas vidas cariocas. Com a década de quarenta desfilando guerras, boemias e sambas carnavalescos. Na Lapinha de então. Pelas ruas percorrem mil sujeitos escolados. Desocupados com gola engomada e cabelo esticadinho. Congregações de malandros no sapateado. Circulando entre gente de bem. Mergulhados em tênues trevas. Palpiteiros de jogo-do-bicho. Operários da estiva. Donas-de-casa apressadas. Normalistas de saias plissadas. Pais de família constritos e mulheres da zona oferecidas. Na Mem de Sá, Riachuelo e Lavradio. Para além da conta. De uma esquina para a outra. Um gigolô bacanaço sustentava o paletó no antebraço, seus sapatos brilhavam, engraxados que foram outra vez, e a mão direita, manicurada, viajava para cima e para baixo, levando e trazendo um cigarro americano. Nos baixios dos Arcos. Os malandros se pavoneiam. Cada qual com sua navalha enrustida. E o canto de ossãnha ladrando avarezas. Mas Rigina logo apresentou coxas. Posto que arredondou seus formatos dos quatorze em diante. Ela logo teve consciência de que o futuro só haveria de premiar quem ralasse dentro de uma repartição pública. Aplicou-se então nas aulas de datilografia. E por um nadinha preencheu uma vaga burocrática. Que a dona anterior, padecendo de furunculose, deixou à disposição da pretendente. Rigina suportou a mesmice dos quatorze aos dezessete. E depois virou a cabeça. Bateu asas para uma trupe de vedetes, acertadas de se apresentarem no Cassino da Urca. Naquele palco Rigina dançou rumbas e maxixes. Escolou-se. Conheceu homens de origens nobres. E, num zás, chegou-se aos ricaços. Gente finória de cabelos encerados na brilhantina. Na ruidosa companhia destes, ela saltitava de festa em festa. Rio, Capital Federal. Até que foi cercada por amigos e puxa-sacos do Presidente da República. Desejada foi Rigina até por políticos de fala mansa. Não demoraria nadinha para a mineirinha Rigina participar de reuniões festivas. Saraus onde brilhava o próprio Presidente. O qual lhe segredava que suportava certas jogadas ilícitas. Coisas próprias da política. Onde ora comprava gato por lebre. Ora batalhava a ferro e fogo, movido por pleitos renhidos. Assuntos de borbulhante champagne. Indo do inferno ao Éden num instante. E sendo este um pé-de-valsa, não tardou e se entreviam, liso em liso, ele com a menina Rigina, nos escondidos do Catete. E o Presidente estava mesmo caidinho por ela. Numa venturosa fotonovela de Grande Hotel. Quando jocoso, entre um uísque e outro, ele falava para Rigina: “nunca empobrece na vida quem ao governo cativa”. Para um legalista pouco é bocadinho. Daquelas palavras pouco Rigina entendia, mas mirava na risada do Presidente que o dito era coisa boa e também se ria com ele. Muitas vezes o fogo enrustido é a labareda dos pecados. Pois quem traz a virtude presa num cabrestilho se alvoroça com a proximidade do coito. Soma-se que uma andorinha só não faz verão, jacaré não é crocodilo e focinho de porco não é tomada. Assim Rigina requintou-se na abundante arte de servir. Na toada deste desregramento, tudo por um mixê, no que se diz, por dez mil réis de pastéis. Deste modo torna-se concubina de um homem que é azedo de cama e quarenta anos mais velho que ela. Rigina logo se contenta com este homem. O qual vê apenas uma vez por quinzena. Ele quase sempre dado a enxaquecas. Arrazoados que se interpunham entre o que ela sentia e o que o Presidente realmente lhe dava. No que se sabe. A brisa sopra aqui e acolá. E em breve surgiu a novidade: Rigina apresentou barriga após três meses daquele affair presidencial. Entretanto, numa ação canalha, a primeira reação do Presidente foi, para o presumível gáudio de Rigina, muni-la de um efêmero fundo de pensão. Depois disso providenciou para que ela voltasse para sua cidade natal que era Pará-de-Minas. Aos nobres intentos, a gestação é quase sempre mártir na ocultação de provas. Por estádios. Com o badalar dos nove meses. Pará-de-Minas providenciando sossego. Rigina acabou por dar a luz a um menino que batizou Aleuzenev. Tudo, nome e coisa, de trás para frente, vindo de sua idolatria pela nação Venezuela. Um sonhado país que ela julgava ser a pátria da rumba e do bolero, donde ela tomou emprestado o nome de seu filho. Assim Aleuzenev veio ao mundo nascido de parteira em Pará-de-Minas, mas registrado como filho de mãe solteira, em letras de ofício, na cidade do Rio de Janeiro. Tudo o que os procuradores oficiais, os cricris da lisonja, cuidaram e depois esconderam...

Beto Palaio

terça-feira, 20 de março de 2012


A tevê a cores como estrada feudal e magma.


ALÊU E A SEREIA (II)


AFãdeUMcom+EÇO= Não, não adianta não admitir. A tevê a cores é um magma quase concreto, às plumas, encorpado, em lambe-lambe, multi assediante, tal qualquer coisa que nos encobre e obscurece. Assim parecidíssima. À vista ou tato. Com um irreverente furacão equatorial. Faíscas curtas em momentos obtusos. Uma estrada feudal. Aperfeiçoada, sim. Com esportes e sorteios. Enquadra-se que. O boxeador Cassius Clay estava treme-treme na imagem da televisão, entretanto, seu desafiante foi eliminado logo no segundo round. O massacre estatizante acontece enquanto a imagem da tevê empresta sua caleidoscópica luz àquele quarto imundo em Belém-do-Pará. Aqui também, rumo ao nocaute, eis que o moreno Alêu dava uma geral, um chega mais, uma lambança de afetos, numa bela turquinha. E as tais turquinhas pecadoras eram o que nunca escasseavam em sua vida perambulante. Um metro e setenta e cinco de erraticidade. Alêu é o amante do “ver para crer”, do “lance bacaninha”, do “ferro na boneca”, do “barato total”. Tanto que. No campo mítico. Onde Davi bateu Golias. Na nula turbação de um pacífico despertar. Agora se enfrentava visagens de carabina na mão. Porque o xis da questão é vexatório. Sendo, deste ou desse ou daquele modo, ele acabou mesmo por carnear e desfolhar o tal cabaço sagrado. Travou-se com a chincha obtusa. Vórtex irrefreável. Lambou-se, isto dito, com a venturosa sereia das águas. O inexato é que sim. Que talvez. Até que se prove o reverso. Sabe-se agora. Ao resolvido rei das peles claras. No tudo. Ferros e bois. Pois Alêu, no registro sendo Aleuzenev da Silva, é alma safa, e indivíduo aprontado para grandes invenções. Ao arremate de que. Depois dele proclamar haver sarado a mulher-peixe. Ditoso ou desditoso. Logo gastou opinião de que as escamas dela o desenganaram. Desviando riachos para construir açudes. Melhor que ninguém. Soube explicar. Que bem macias são as carnes da sereia. Em vãs satisfações. Do chazinho morno ao mambo quente. Mulher para mais de um batalhão. Monstruosa no amor. Uma porta aberta para o paraíso. Inclusive Alêu não fazia segredo: “os brancos seios dela igualam-se ao marzipam e à baunilha. Doces no igual”. Culpa-se. Tanto empenho no abranger. Da alma merecer o expiar? Qual será o arremate disto? Desde o alento de recordar a meninice. Esmagando sob as botinas as bolinhas do fícus benjamim. Esperando pelo cometa. No tempo do Rei Juscelino. Verde-amarelismo em preto e branco. Pará-de-Minas, 1957. Do A de Abelha ao Z de Zabumba. Para fixarmos a idéia e não divagar. Bagana boa é de Aquidauana. No caminho dos cisnes. Aleuzenev no céu com turmalinas. Lambeu-se. No bê-á-bá. Ao mirar sua primeira professorinha, desenhou-a como uma estampa da Eucalol. Metade peixe e metade mulher. Ao eterno. O que vem do amor tem usos de proveito. Nas mãos mágicas do moleque. Quando até aos marulhos do mar claramente ele ouviu. Posto que o desenho, inquieto de alma, sobejou em peso real. Sereia sendo. A ocasião irá cunhar o embuste. O truque verdadeiro. Quando um gesto suave lhe sujeita. Ao momento em que a floresta tem olhos e ouve. O peixe-sereia se revestirá do inusitado brilho. O futuro há de arquitetar. Assim que serenar os ferros na tinta de lembrar. Aulas sobre coisas que nunca mudam. No Jequitinhonha o beiçal de uma canoa clama por travessias. Desde as tábuas da beirada. Algas e algo. Desamor mole, parede gorda, flor por fazer. A história volve, volve e não vai à parte alguma. Num lundu de Azerbaijão. Flores do ipê amarelo quebrantam a paisagem. Entretanto as letras flamejantes não estão a ofuscar-se. Apresentam-se marombadas e encharcadas de combustível. E fremem por quilometragem. Para assim viajarmos, sem pressa, entre ruídos, luzes e falas incomensuráveis. Fornadas de visagens surgindo. Em direção às profundezas da iniciação...


Beto Palaio

segunda-feira, 19 de março de 2012

O sertão (de fora e de dentro) tal como uma sarça ardente.


ALÊU E A SEREIA (I)


ORitMOdAch+UVa= Aconteceu numa dessas noites. Quando Barrabás Pereira só se lembra que estava dirigindo no meio da tempestade. Em seguida ele ouviu um ruído tal o estouro de um saco de pipocas. Um imenso objeto de aço escorregava no asfalto criando um troar de ferragens saltitantes. Depois... Silêncio. Barrabás sentiu uma friagem de grama molhada grudar do lado esquerdo de seu rosto. Ali perto um grilo cantava intermitente. Apareceu-lhe então um túnel de luz com ele andando em seu interior. Ele ouvia nitidamente um eco de barulho de passos e de crianças gritando ao longe. Sua vida pregressa foi voltando para ele como um filme que flui ao contrário. Barrabás Pereira havia retornado, naqueles breves segundos, para a casa dos seus avós maternos. Entretanto ele sente um arrepio ao adentrar aquela casa, pois ela estava inteiramente vazia. Ali quase todas as manhãs seu avô o levava, algo um passeio inadiável, até o cemitério para visitarem o túmulo da avó. Durante o trajeto eles sempre colhiam uma flor silvestre para dedicarem a ela. Agora, após o acidente com o carro, ele refaz aquele trajeto sozinho e, coisa incrível, lembrou-se até de apanhar uma flor enquanto caminhava. No cemitério Barrabás Pereira ouve o som da terra sendo jogada pelas pás acompanhadas de baques surdos. Tudo numa escuridão absoluta, como se a terra estivesse sendo jogada sobre o seu próprio corpo entorpecido. Depois uma constatação, quando ele vê ao redor os seus parentes, amigos e conhecidos. Barrabás então desconfiou que algo estivesse errado, mas muito errado mesmo. Com isto sentiu até um calafrio. Desejou voltar para casa e, numa pirueta bastante flexível, foi parar dentro da sua antiga escola primária, onde ele estava distraído na sala de aula e esboçava um barco a velas utilizando, para isto, toda uma caixa de lápis-de-cor. Depois Barrabás viu que era hora do recreio, sentiu fome e procurou pela lancheira, onde havia pão com goiabada. Prontamente aquele perfume da goiabada fez com que Barrabás fosse direto para a companhia de sua querida mãe onde, logo em seguida—algo a mais para surpreendê-lo—ele era apenas um bebê. Assim Barrabás passou a sugar do leite materno, mamando avidamente nos seios dela. Na seqüência tudo ficou muito escuro, mas ele ouvia o pulsar do coração de sua mãe e sentiu-se flutuar dentro de uma bolsa que lhe trouxe muita serenidade. Posteriormente ele adormeceu... Adormeceu profundamente... Mas este livro nem era para narrar a vida de Barrabás Pereira. Inclusive não era e nem será. Porque o personagem deste livro, embora seja também brasileiríssimo como Barrabás Pereira, logo surgirá com sua ginga, seu nome cartorial de fonética russa e um desejo baiano de se dar bem. Não demorará em ele aqui botar sua banca, mas não agora, porque as circunstâncias pedem por uma exposição inaugurativa que seja aguerrida, superficial, eterna, chinfrim e marcante. Onde no desmembramento e na determinação tentaremos construir uma Babel que faça valer nossos próprios preconceitos, hábitos e conformismos. Algo ameno oriundo dos deveres nacionalistas a abalroar a vida de egos alvissareiros e sutis. Frágeis criaturas estas. Comparadas, sem nenhum exagero. Às sementes com derredor algodoado. Panamericanas e plumosas. Num fio de tentativa. Dadas a arriscados vôos. Deste modo. Enquanto ao vulgo. Envoltos, paridos. Em pobres cerrados. Ou ao vasto. Destes lanígeros a planar. Pela extraordinária leveza do ser. Aos doces sonhos. Mesmo arriscando-se nos mil espinhos da carqueja ou do mandacaru. Aos gerais, os tais esporos flutuam. Ou aplainam. Embora todos os sacrifícios purifiquem. Na ordem deste mistério. Abriu-se um mar. Com seu rantãtã de tambor oculto numa simples concha verde-amarela. No emaranhado. Escrito tinhas. Pasquins com as tais consagradas fotografias. Só condescendentes. Nas manchetes em destaque. A casa do azeite a ferver dias históricos. Num macaréu de saramandaias e locomotivas e day-by-days e roques-santeiros e irmãos-coragens. Com efeitos de cinema os movietones de Primo Carbonari cinquentaram, sessentaram e setentaram. Foi quando um compacto simples disse: “por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir. A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir”. Em vista disto a censura foi estabelecida através de atos institucionais. Os não-gêmeos governando o mundo. A paz gazeteira em debandada. Aos teus, Xarope São João e Cafiaspirina. Enquanto nos mordem cães de guerra. Cancros buscando a cura num passaporte feito de silêncio. Todos eles perfilados. Para além dos Andes, ou em caribes de surinames pouco toleráveis. Até numa Paris sonolenta ou em uma Londres enregelante. Vide outros mecanizados grandes sertões. Esperava-se pelo recado dos exilados. Vós, ó côncavos vales. Uma manzorra, ventania, fustigava as dunas. O maior oceano é o da liberdade de expressão. As correntes do julgamento avançam. Um deteriorado ônibus de turismo surge na auto-estrada. Urge contar aqui uma estória. Nesta mágica e misteriosa viagem. Sem casca, sumo ou miolo. Aos torós multinacionalizantes. Num ramo de enxerto comparativo. Desapareceram com o dono das vacas ordenháveis. Em texto chinfrim. Nem o veterinário, nem o leiteiro, nem o confeiteiro sentiram sua falta. Entretanto. Imolaram um sargento do Exército. Vespas eletrificadas zumbiram. E o seu fator sangüíneo evidenciou-se do Chuí ao Aiapóque. Pedidos de revanche. Admirável mundo vingativo. A rigor, cassetetes, todavia. Nada como uma revoluçãozinha para convocar o treinamento. O herói sendo um misto de Batman, castelo de cartas e sarça ardente. Pow! Crash! Crinch! Bang! E a TV treme. Razões de sobra. A desconfiança é fruto de magarefes em uniforme cáqui. Com tal esmero. Até o espírito Brasil quis baixar numa seção de mesa branca. E a estória se apresenta desde a raiz da macaxeira. Perfex videx acelerex. Chaminés de bangüês. A boa seiva repara o corte. E o contado flui. A própria existência sendo destinada à sentença máxima. Vem e vai; dá e toma; escasseia e passa. Nesta tapeçaria multiforme. A floresta recua e a sarjeta aceita o desterro. Logo mais se saberá das minúcias. Dos conformes. De como um reles compensado de Madeirite foi fabricado com cedro, mogno e pau-brasil. Ao bom ouvinte, um péssimo serviço de alto-falantes. Muitos, no entanto, se revelarão. Dispostos à cautela. Pois aqui as letras são comissárias de bordo. Lindíssimas. Cheias de glamour. Podendo ser criaturas hermafroditas. As tais ninfas de rios e fontes. E a seguir, palavras tonificadas, mais ainda, romanceadas nos canais folhetinescos, surgem para espatifar a nave de encontro aos arrecifes. Dizem os poetas que as palavras azulejam. E que as letras são como zumbis renascidos. Ou namoradinhas do sol. Irmãs interpretadas. Germes imorredouros. Sorte de quem. Vocábulos que surjam na porta da frente. Escancarada por inteira. Enquanto sovinas e pobretãs. No varal tremulam nossas roupas comuns dependuradas. Cumpre ao modo de pressa. Para os que almejam consagrar o poraquê eletrificado. Quando um sinistro fado espreita ao justo. Letras abaladas neste propósito. De mãos dadas. As boas sementes algodoadas. Precipitam-se para a corredeira. Precavidas contra os tais celacantos que engendram maremotos. Até ao mar profundo. Ao troar da cornucópia. As letras têm de estarem atentas...


Beto Palaio