quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, pessoas em pé, oceano, céu, nuvem, praia, crepúsculo, atividades ao ar livre, água e natureza

O AMOR NAVEGANTE

Permito que fiques
e barquejas-me devagar
preso aos meus remos

À medida que a quilha
treme
e acelera no devaneio sedento

Inicialmente o monte e logo após
a sarça ardente
no mistério do orvalho descido

Da ode que nasce e a folha respira
trova
em todo abandono

Tateias a vergonha e ajoelha-te
travesso
como olhos ávidos e abstraídos

Eles copulam mudos e sôfregos
que como estrelas
iluminam o grito

Cavalgas no mar o intenso destino
e logo após o percurso
batas asas sozinho

Na sombra movas-te e conduzas
a espuma
com vestes de lisura

Pressinto-te quando regressas no eriçar
da tez, na síncope oclusa
do batimento restrito

Enquanto componho
os arredores na aspiração
o desnudo devagar e o arrefeço em mim

SOLANGE DAMIÃO

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

domingo, 5 de novembro de 2017


LEILÃO DO AR

Nos últimos tempos, vem acontecendo leilões de navios e leilões de ilhas, não sei se de montanhas. O leiloeiro, diante de um público restrito, mas de alto poder econômico (não há por aí gente em condições de arrematar uma ilha ou um navio inteiro), faz se exatamente como se se tratasse de um aparelho de chá ou de um lote de miudezas. Só que é estranho ver uma ilha leiloada, com suas águas, plantas, bichos, minerais, caminhos, casas e outras benfeitorias.  Quem dá mais? Dou-lhe uma, dou-lhe duas... De repente, ao entardecer, a ilha aparece no salão escuro, cercada de dívida; emerge da papelada do espólio, ocupa a rua, caminhamos por ela através dos lances do leilão, de gritos martelados.

Com o navio sucede a mesma coisa. É um velho barco desmoralizado, mas como viajou! Se tardar um pouco o leilão, ele se reduzirá a sucata. Vai afundando... mas tudo que foi susto ou alegria de navegação vem a tona, e a sala se enche de gíria da marujada, cabeludas histórias de bordo, ventos, tempestades, tatuagens, o diabo solto no mar. Mesmo em ruínas, que nobre é o navio, inclusive os cargueiros!

Agora o leilão é outro: banal na aparência: pequenos objetos, bolsa de viagem, cristais, saboneteiras, latas, xícaras, taças de sorvete, poltronas. Muitas poltronas. Muitas poltronas, em que os presentes podem sentar-se, testando-lhes a comodidade. No entanto, este é também um leilão raro, o primeiro no gênero, de que tenho notícia no país: o de uma empresa de aviação. Na loja da Avenida Graça Aranha, expõem-se os tristes trastes da Panair do Brasil. Coisas que escaparam de acidentes aéreos, para vir sofrer o desastre em terra, com o esfacelamento da companhia, que serviu a tanta gente por tantos anos.

Eu não ia arrematar nada, mas incorporei-me à multidão de licitantes. Pareceu-me ver um grande avião caído. Com os destroços varejados pelos curiosos. Uns calculavam com frieza o valor dos lotes. Outros olhavam, desinteressados. Algum raro pegava de uma peça. Apalpava-a, mirava-a longamente. Todas as poltronas estavam ocupadas. Pelo que dizia um cartaz, elas se adaptavam perfeitamente a um Volks, e serviam para compor um living: estão em moda as poltronas geminadas. Eram todas de avião, e só elas davam a ilusão de viagem. Mas a viagem era imóvel, paralítica. Não havia aeromoça para trazer o lanche e gratificar os passageiros com aquele sorriso circular que infunde coragem aos apavorados. Nenhum sinal de tripulação. 

Não se apertavam cintos, ninguém sentia nada. As coisas amontoadas, etiquetadas, vencidas, falavam do ar, mas num pretérito mais-que-perfeito, e ninguém as ouvia. Objetos acostumados a voar estendiam-se pelo chão, dou-lhe uma; aguardavam um destino de hotel barato ou de casa pequena burguesa, dou-lhe duas. De tapetes voadores, as poltronas passavam a uma domesticidade sedentária e pobre: dou-lhe três.

Assim acabava aquilo que foi uma grande empresa nacional, cujo nome sonoro retinia por toda parte. Os aviões já tinham passado a outros donos; as instalações serviam a outros fins; chegara a vez das poltronas e dos açucareiros, das latas de comida, copos e cobertores, da bugiganga que antes, integrada na máquina voadora, participava de suas propriedades mágicas, pois o avião continua a ser mágico, à medida que a viagem aérea se torna cada vez mais rotineira. E ninguém ali sentia nada de especial diante do corpo derrotado na Panair, de seus intestinos à mostra. Quase todos teriam usado suas linhas, comido seus jantares,  lido seus jornais brasileiros em Paris, mas a hora era de liquidação, e não de saudades. E o leilão ficava mais lúgubre, quem dá mais? em meio à indiferença geral, que é marca registrada de leilões. Dou-lhe três.

Em dado momento, senti que uma das miniaturas de avião, que iam ser igualmente apregoadas, manifestava sinais de inquietação. Positivamente, queria evadir-se, fugindo à sorte comum. Num esforço de que não revelarei a fórmula, encolhi-me todo para caber dentro do aparelho e, em silêncio, como fazem os aviões decaídos de sua glória, ele rompeu as paredes do edifício, e alçou voo sobre o Rio de Janeiro levando-me consigo para onde os aviões se tornam estrelas inacabáveis, sem remorso dos homens. 

Carlos Drummond de Andrade, in Jornal do Brasil (2/10/69)

sexta-feira, 20 de outubro de 2017


O velho 

I

De tudo – o que sobra.
E é pouco.
O que sobra é o fato.
E o fato é oco
frio.

II

Nestes dias de guerra cerrada,
prosseguir é o de menos, o nada.
E o voltar é, em si, tão obtuso
que o parar é, por si, um consolo.
E não consola.
Hemos tido por certo o errado
(Já que o errado é a pausa, a metade
– sem tropeço – do que há de ser feito)
e o silêncio em tornado palavra
ordenou a parada: o que basta.

III

Pois o velho (idade incerta
beirando o sossego), seguiu.
No chão que beijou
no pó que comeu
no mijo bebido – houve em certo seguir
       semi-erguido
e encascar-se no meio da estrada
sem saber IR ou RIR.

IV

Daí :
donde em sendo o meio a parada à vista
e o regresso ilógico
e o processo absolutamente impossível,
o velho ficou.
Como o vento e o pó.
(Como o chão).


TORQUATO NETO


Foto: Universidade Estadual do Piauí

quarta-feira, 4 de outubro de 2017


AFINAÇÃO DA ARTE DE CHUTAR TAMPINHAS

Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando. Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute. 

JOÃO ANTÔNIO 


segunda-feira, 2 de outubro de 2017



PONTO DE BALA

os mortos tecem considerações
os tortos cozem quietos
as crianças brincam
e bordam desconsiderações


CHACAL


Pintura de Manzur Kargar

segunda-feira, 25 de setembro de 2017


GWYRÁ MI (O PASSARINHO)

GWYRÁ MI MINHÃ
GUVIXA NHEÊ
OMBOAJE VYVE
KOÊJU MA REXAVYVE
OVE OVE VE
JAVY JAVYARE
GWYRÁ TUKANJUÍ
OGWUE OGWEI
NHANDERU
NHANDERU
OEJA VAÊQUE
JARQUE

O PASSARINHO OBEDECE AO CHEFE
VOA ALEGRE AO NASCER DA MANHÃ
QUANDO NÓS ACORDAMOS
O PASSARINHO AMARELINHO
VOANDO DE ÁRVORE EM ÁRVORE
NHANDERU, NHANDERU QUE CRIOU
CONSIDERE ISTO.


quarta-feira, 20 de setembro de 2017


O RELÓGIO

Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade.

JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Pintura: A cobra na caixa de ANTONI TÁPIES

sexta-feira, 15 de setembro de 2017


RECADO 

Os dias, os canteiros, 
deram agora para morrer como nos museus 
em crepúsculos de convalescença e verniz 
a ferrugem substituída ao pólen vivo. 
São frutas de parafina 
pintadas de amarelo e afinadas 
na perspectiva de febre que mente a morte. 

Ao responsável por isso, 
quem quer que seja, 
mando dizer que tenho um sexo 
e um nome que é mais que um púcaro de fogo; 
meu corpo mutilado em fachos. 
Às mortes que me preparam e me servem 
na bandeja, 
sobrevivo, 
que a minha eu mesmo a faço, 
sobre a carne da perna, 
certo, 
como abro as páginas de um livro 
e obrigo o tempo a ser verdade.


FERREIRA GULLAR

Arte: Edvard Munch

quinta-feira, 14 de setembro de 2017


ARPEJOS

Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.
ANA CRISTINA CESAR

quarta-feira, 13 de setembro de 2017



NOTHING

Nada nada nada
Nada mais do que nada
Porque vocês querem que exista apenas o nada
Pois existe o só nada
Um para-brisa partido uma perna quebrada
O nada
Fisionomias massacradas
Tipoias em meus amigos
Portas arrombadas
Abertas para o nada
Um choro de criança
Uma lágrima de mulher à-toa
Que quer dizer nada
Um quarto meio escuro
Com um abajur quebrado
Meninas que dançavam
Que conversavam
Nada
Um copo de conhaque
Um teatro
Um precipício
Talvez o precipício queira dizer nada
Uma carteirinha de travel’s check
Uma partida for two nada
Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas
Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava
Um cão rosnava na minha estrada
Um papagaio falava coisas tão engraçadas
Pastorinhas entraram em meu caminho
Num samba morenamente cadenciado
Abri o meu abraço aos amigos de sempre
Poetas compareceram
Alguns escritores
Gente de teatro
Birutas no aeroporto
E nada.


PAGÚ (Patrícia Galvão)

quinta-feira, 7 de setembro de 2017



VOLTA

Quando estive em poesia
Visitei um não lugar
Um sonho refinaria
De prosaicos de pesar

O banal é refinado
Em leveza e lucidez
O reverso é revelado
Os clãs encontram as greis

A mágica e a alquimia
São línguas oficiais
Até quem não crê cria
Lá onde o sempre jamais


 Cristal vira nuvem e voa
O Sol namora a garoa
E o choro gargalha também

Tudo te diz imagine
Tudo te pede me nine
Não se pergunta de quem


 Vive-se a vida na flauta
Não se sabe o que é falta
Mas sabe-se o gosto que tem

Eu voltei estupefato
Com olhos de iluminura
Nem precisa de futuro
Quem tem assim um passado.


EDUARDO TORNAGHI

terça-feira, 29 de agosto de 2017






JORNAL SEM DATA

I

Tudo tão na hora
que te antecipo, já,
um peixe
que ainda irei buscar
no mar.

Ou dou-te, já, uma flor
que ainda me virá
do Japão.
Como se a tivesse, já,
na mão.

Tudo tão já,
sem onde, nem quando,
que o caçador me vende
um pás-
saro ainda voando.

Adianta-se o ponteiro
da hora exata
para a hora imediata.
A vida, um jornal de hoje
mas sem data.

II

Manhã e amanhã
incesto mágico do tempo
no calendário
de Roma e da romã,
do homem e do canário.


CASSIANO RICARDO


Pintura: O nó e o retorno ao ninho, pintura de TOYEN de 1950

sexta-feira, 25 de agosto de 2017




A reminiscência
das flores

essa veste muda,
germinada e petalada, nas janelas de vinho, em amparos que carregam uma taça com a delicadeza própria do vitral colorido, descostura os dígitos das roupas enegrecidas, descostura a matéria, desviando à dor, à investigação, ao peito da escuridão.

A reminiscência
das flores

essa efemeridade que pousa na fala — ah!; essa reminiscência que me relata por onde passaste, por onde o teu perfume foi exalado, por onde as veredas foram seduzidas por ti, por onde teus pés foram derramados como saibro; a reminiscência de um tempo, em fevereiro, na estação quando varandamos como pássaros feridos de estrelas, essa reminiscência revolta, exata, que crepita as chamas no corpo.

A reminiscência
das flores

essa luz a quem confio o meu fado de amor solitário, no qual me visto de silêncio.

Solange Damião.


Poema de Solange Damião / Pintura de Anna Marinova

segunda-feira, 21 de agosto de 2017



Things are better in Milan.
Things are a lot better in Milan.
My adventure has sweetened.
I met a girl and a poet.
One of them was dead
and one of them was alive.
The poet was from Peru
and the girl was a doctor.
She was taking antibiotics.
I will never forget her.
She took me into a dark church
consecrated to Mary.
Long live the horses and the sandles.
The poet gave me back my spirit
which I had lost in prayer.
He was a great man out of the civil war.
He said his death was in my hands
because I was the next one
to explain the weakness of love.
The poet was Cesar Vallejo
who lies at the floor of his forehead.
Be with me now great warrior
whose strength depends solely
on the favours of a woman.

O PRÓXIMO

As coisas ficam ótimas em Milão. 
Um bocado melhor em Milão. 
Minha aventura tem seus açucarados. 
Eu conheci uma garota e um poeta. 
Um deles já havia morrido 
e um deles sem dúvida vivia. 
O poeta era do Perú
e a garota era uma médica. 
Ela estava tomando antibióticos. 
Eu jamais a esquecerei.
Ela me levou até uma igreja sombria
consagrada à Maria. 
Vida longa para os cavalos e as sandálias. 
O poeta trouxe meu espírito de volta.
O qual estivera divagando numa oração.  
Ele foi uma figura de destaque na guerra civil.   
E disse que sua vida estava em minhas mãos
Pelo motivo de eu vir a ser o próximo
a explicar as baixezas do amor.
O poeta foi Cesar Vallejo
O qual descansa nos recônditos de sua nuca.
Esteja comigo doravante grande guerreiro
cuja força depende totalmente
dos favores de uma mulher.

LEONARD COHEN

Foto: Leonard Cohen com a atriz Dominique Issermann (anos 70) 

sábado, 12 de agosto de 2017



Tea for Two

"Honey and lemon?",
she asked him,
even though she knew the answer.
It was the same answer every morning.
Yet, an unexpected silence
coaxed her to look up
from the tea she was pouring.
His chair sat empty.
And dusty.
She was reminded,
just like yesterday morning,
and the morning before that,
that she and his chair
had been left behind.
Two years ago.
Or was it three?
It seemed like just yesterday
when she heard him mumble,
"But I don't like tea".
Oh, dear, she thought.
She finished pouring the two cups.
Well, then, "Honey and lemon, it is". 

JANETTE PAPP


Chá para dois

"Mel e limão?"
Ela perguntou,
Mesmo que ela soubesse a resposta.
Que era a mesma todas as manhãs.
No entanto, um silêncio inesperado,
forçava que ela olhasse para longe
do chá que ela agora derramava.
A cadeira dele ficara vazia.
E empoeirada.
Ela foi lembrando,
tal como na manhã de ontem,
e também de anteontem,
que ela e aquela cadeira
foram deixadas para trás.
Dois anos passados.
Ou seriam três?
Parece que foi ontem
Quando ouviu dele um murmúrio,
"Mas eu não gosto de chá."
Ah, querido, ela pensou.
Assim termina de servir duas xícaras.
Bom, então te ofereço "Mel e limão". 

Poema de JANETTE PAPP

Pintura de MIKE SKIDMORE