sexta-feira, 30 de setembro de 2011


VIDA NOVA PARA SEVERINA

Perder o senso. Certo que sim. Grandiosa é a esfera que nos sustenta a todos. O céu é feito de papel crepom. As estrelas são apenas furinhos ornamentais neste empapelado todo. E a Terra não se move. Nem poderia se mover. Não te parece lógico? Entretanto quando a vi. Soube da existência de uma criatura imensa. Azulando longitudes e latitudes. Exalando nuvens celestiais. Mais até. Branquinhas no demais. E a Terra polvilhando suas lonjuras. Saara acolá. Fincado na areia. Amazonas aqui, afogado na água doce. Ao planeta Terra azulejado. Mares em abissais cantorias. Uma entre outras tantas. Praias cantantes. Cartas em uníssono. Retornam ao remetente. E voltam, e voltam. Ao lado do paraíso. Planta de pé, bolhas na mão, mapa na cabeça. Um chapéu de palha e uma bússola improvisada, feita de rolha e alfinete imantado em repentinos esfregaços. Cargas, positivas e negativas, vindas, confusas, de outras lonjuras, nos encontrando. Andrômeda. Conversazinhas. Sendo-as, umas claras, de olhos azuis, lindas como a pirraça encomendada em sermão dominical. Um pianista tocando no saguão do Cine Ouro. Quando entramos no cinema, o filme estava na metade: Madame Anais: “Eu tive uma idéia. Você não gostaria que te chamasse de bela da tarde?”. Séverine Serizy: “Bela da tarde?”. Madame Anais: “Isto porque você só vem aqui no período da tarde...”. Séverine Serizy: “Se você acha bom me chamar assim, eu não me importo...”. Madame Anais: “Está combinado então, a partir de agora você é a bela da tarde...”. Ela lambeu a carta na dobra contendo cola. Despachou qualquer suspeita de continuar sendo a esposa ideal. Passou manteiga-de-cacau no lábio sensível, e ofereceu ao primeiro que entrou no seu novo quarto. O chofer de praça ainda não acreditava no que via. Severina, assim como a vida, era demasiadamente bela. “Meu carro está na garagem. Não temos nenhuma pressa. Mas fuja comigo”. O mundo caindo pelas tabelas e o taxista nem percebendo. Severina estava assustada. Ele era seu primeiro cliente, dava-lhe asco, mesmo assim beijou-lhe a boca. “Sobre o carro... Na garagem... Nenhuma pressa”. Ele quis outra vez. Adentrar-lhe a gruta rosada. “Você não existe, Severina”. Ela cederia a tudo o que ele pedisse. Estava aprendendo a arte de amar no avulso. Pronta entrega. Lava e usa. “Belezinha da Tarde, eu te adoro de verdade”, isto dito por um alfaiate. Barba por fazer. Ainda mascando o palito do almoço. Ele que tinha no corpo o perfume de xampus. “O senhor toma banho de xampu?”, Bela da Tarde lhe pergunta. “Sim, claro que tomo. É uma mania minha”. E todos têm mesmo certas manias. Tudo a leva para enredos e definições de improviso. Como num conto de fadas. Quando o peludo lobo mau. Deglutiu a vovozinha e pareceu mesmo insatisfeito. Na emenda de uma grande estória, dessas contadas em mil páginas de um Norman Mailer, trovadores afins, todas as páginas revestidas de frescor, opiniões condescendentes daqueles que nunca, jamais, davam opiniões erradas. Severina sentiu um jogo brutal nesta exigência generalizada. “De que o dia e a noite... Não existem de verdade.". Reafirmou isso a um caixeiro viajante, um homem até bonito. “Tu tens a boca mais linda que minha boca beijou”, disse-lhe o caixeiro, nem se importando sobre dias e noites. “Teu corpo é divino!”. Este deu de segui-la pelas ruas. No que ela disfarçava. Entrava em lojas que não precisaria entrar. Passava por desvãos de prédios que nem precisava passar. No dia seguinte o caixeiro estava lá. Pagando pelo tempo que teria ao lado de Severina. “Te trouxe um presentinho”, e lhe dava uma caixinha revestida de sedas e fitilhos rosas, “é apenas uma lembrançinha mesmo”. Severina abria a caixinha e se deslumbrava: “um anel de diamantes... Você enlouqueceu?”. Mas, saindo dali, ela jogou o anel no primeiro tambor de lixo que encontrou. No dia seguinte Bela da Tarde contou para Madame Anais do que fez com o anel. Esta contemporizou. Levou o assunto para o lado prático: “A mulher está massacrada por dois mil anos de culpa católica... Qual o problema de dar por dinheiro?”. Assim acabava com os argumentos de Bela da Tarde que estava descobrindo, no dia a dia, o lado nobre de fazer o que sempre quis, ao multiplicar-se nas trepadas inigualáveis, sempre doando tudo de si, à exaustão. “Ele, o amor, cresce infinitamente quando eu o divido com mais e mais homens...”. Os olhos que tudo vêem. O olhar da sabedoria e da conveniência. Esses invadiram o tal diagnóstico, cara a cara, da comparação desses homens todos com seu marido, que nem era mau para ela, nunca fora na verdade. O problema de Severina é outro. Ela nunca havia apreciado se doar. A vida com Ivan, seu marido, até que não ficara diferente do que era antes dela freqüentar a casa de Madame Anais, “Eu e meu marido somos dois dementes apaixonados. Sim... Eu amo meu marido... Apesar de pensarem o contrário disto”. Nos dias e noites sem fronteira, como acreditava Severina, um detalhe apenas era necessário que constasse, seu mote preferido, a desculpa perfeita para continuar sendo a Bela da Tarde: “O que há de errado em dar carinho para alguém que você não conhece?”.

Beto Palaio

(O conto acima foi livremente inspirado no tema Belle de Jour)


Sinopses dos filmes de Luis Buñuel.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Kenneth Patchen

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(Tudo ao mesmo tempo / Isto é o que é a eternidade.)

kpc04b.jpg kenneth patchen image by nethergyrrl
(Aproxime-se, minha criança... Se estivéssemos planejando atacá-la
você acha que continuaríamos escondidos aqui nesta floresta
escura e úmida?)


O Mundo que se Esvai (um livro bem filosófico)

quarta-feira, 28 de setembro de 2011



NO GIRA-GIRA COM BRIGITTE.

HOMENS VOLTAM DA LUA. Isto na capa de A Tarde. Em 1968. Instituição e hipocrisia são duas torres ruindo. Na falta de emergências, em flores, TV à cores, de fluidez aromática. Cavalos estroboscópios que se desfazem em licores. De repente. Uns viciados, tal hoje em dia, no utilizável. Nomes de famílias protegidas nas Páginas Amarelas. Filtros fumáveis. O combinado papai-mamãe indo embora para sempre. No high society. Como uma tigela vazia. Corria-se, on-the-rocks, em mais de um paradeiro. “Você ainda vive a embriaguez da Disneylândia?”. Sonolentos, on-the-roads, desfeitos do sonho prestes a acabar, perseguindo linhas de trem enevoadas, dormentes para imaginárias patas de cavalos. Pastelões correndo loucamente numa fita carrossel. Em paralelogramos e trapézios. Numa só negociata internacional, coisa mancomunada com o dito-cujo, e Jó perderia seu harém inteiro. Mil e duzentas amantes emigraram da Tunísia para a França. E Jó no peco-peco da masturbação. Sem mais nada. No castigo divino. O meio é a mensagem. O rosto em quadricomia é cinema desde o tempo de Jó. Truculento maio de 1968. Cabelos descorados na pia. Água oxigenada num frasco. Não há terra como a dos escravos de Jó. Que jogavam caxangá. Pois o rosto impresso é cinematografia em zigue-zigue-zá. Só para fazer mídia. O ego. Inventava-se mais de uma reunião com aquela metade de maçã verde posta a girar. Bolacha preta com um furo no meio. Emprestada da Apple. Girando Get Back na vitrola Phillips. OS BEATLES ESTÃO VIAJANDO. Uma revistinha underground estivera também na Índia, curtindo o barato todo. Somado aos tons das motosserras. Nós estamos num gelo de parafernália perceptível e sideral. Bizarra fita de vídeo. Cavalos. Deitados em lençóis de linho. Ferragens saltitantes do último B52 abatido em Saigon. Depois... Silêncio. E a socialite e modelito Brigitte, não a atriz. Segue-me, e se colocou a disposição para uma entrevista. Antes fomos ao seu garboso barco, “diga-me se, inclusive, não percebeu nada sério?”. Brigitte torturou-se para se tornar acessível numa só palavra: “não?”. Um dia totalmente azul é o único em que gato preto dá azar. E o dia era azul. Assuntos que iniciamos como se fossemos uma brisa, eu e Brigitte, na língua todas as áureas correntezas. Entretanto, como ela mesma sussurrou. “A coisa fácil, com a ótica da lei, complica muito”. E disse o motivo de haver respondido estar andando com o pé esquerdo, “uma moçinha...”, segundo soube detalhes com o Mascarado, seu primeiro marido, essa “moçinha”, era quem lhe fornecia cocaína. Mas ainda não seria o fim do mundo. Ainda não era. Aquele em que todos iremos filmar e retransmitir desde a borda da falésia limítrofe. Pois o fim do mundo virá mesmo da Patagônia. Depois viveremos de novo debaixo do inferno verde antagônico. Tão salários de serpentes catatônicas. Entretanto estaremos seguros ao batente, sob o qual, nos protegeremos do histriônico. Cataclismo total. Isto está na capa de uma revista: BRIGITTE AJOELHOU-SE EM TRIBUNAL. Aos donos da imprensa fez-se o crepúsculo. Ela anunciava a tendência ao esquecimento abrupto em juízo. Parece até poesia. Na cabeça de quem não leu o corpo de Brigitte em sua totalidade. Ela sendo loira 100% carnes claras. Ajoelhou-se ali para dizer que adorava sexo. Turbilhão de amor. Os flashes. Desligaram a lei nesta precisa ocasião. Ensimesmou-se, o Juiz, em palavras-ostras. Outras palavras saltitam no tubo espelhado das TVs do mundo todo. “Eu adoro sexo, Sr. Juiz, juro que sim”. Entretanto. O ganho de causa foi para o ex-marido. Ela não entendeu. Poderia ter mentido. Que era escandinava na cama. Fria como uma morsa. Tatuada como uma mandarina da china. Enquanto do lado de fora, uns tanques de guerra, cães na rua, gente farejando sacolas e bolsas alheias. GOVERNO BAIXA NOVO ATO. Perdemos todos nós. Vinte anos de inanição. Nem cousa nem lousa. “Você vai querer ser o primeiro a me acalmar depois dessa palhaçada?”, Brigitte no barco de Adriano. Se oferecendo para ele. Um Adriano embotado, self-made man, de tanto esmero, tilintava. Que tinha Brigitte na conta de um brinquedinho caro. De repente largou tudo. A excessiva amante Brigitte. O seu barco Anamour. A vida sem mérito nenhum. Brigitte saltitava sobre as almofadas do convés. Queria afundar o barco. Espalhar grãos de papoula pela calçada. Estava agora globalmente sozinha, pois Adriano partira na companhia do capitão do barco. Ela jurava que estavam se beijando. Os dois dando-se as mãos, se equilibrando na prancha que prendia o barco Anamour à marina. Eu entrei na vida dela assim. Pedi para fotografá-la. Pretendia usar um filme 200 Asa. Ela estava a meio sol. Florescente no cio. “É só a foto que você quer?... Tem certeza?... Olha lá, heim?”. A verdade é plena, assim assado, ou Hipoglós ou vaselina. Como no despertar da Bela Adormecida. Num misto de luz arroxeada, transei pela primeira vez com Brigitte na cabine do barco, com as cortininhas roxas todas fechadas. Depois confeccionamos momentos mais coloridos. Andávamos com o antigo barco de Adriano a toda. O mar liso como os cabelos de Brigitte. E ela datilografando seu possível livro numa velha Remington, enquanto eu fazia curvas com o barco à toda velocidade. “Isto faz bem ao meu texto”, ela dizia rindo, “mas vou acabar vomitando seu esperma”, dizia rindo mais ainda. E ria. E ria. E ria enquanto lia o que acabara de escrever na Remington sob o efeito das curvas e da maresia: “medifda por medidfa sim ep verdades eis era muito mais livre quan doque hojes oipodfia esscrever nla milnha maqkuina reminghgton e tudo saieoa saia certinha na linhas aquie mesmo quanero eu errava de teckal faz fasz e sair assim meior tojsurotorto besm toersto”. Sugeri à ela que editasse um livro todo assim. “Lindo de morrer”, disse eu, citando uma frase usual em 1968. Ela ficou séria. De repente. Achou legal também aquele texto todo salpicado de nonsenses. “Gostei!... Pode girar mais ainda o barco... Vou continuar escrevendo!”.


Beto Palaio

terça-feira, 27 de setembro de 2011



DOCUMENTOS DISPONÍVEIS

ontem foi amanhã
Ontem foi o MAL
hoje é ontem
ou antes de ontem

solo seco
deserto o céu
Espírito não é flutuante
Mas é ILHA

nada a OESTE
Ninguém ORIENTAL
norte de gelo
o gelo inteiro

questão foi localizada
RESPOSTA perdida
palavra violência agradável
frente vazia




Poema: Tábor Ádám
Ilustrações: Sugár János

(Ambos da Hungria)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011



CABEÇAS NA CAIXA.

Uma manhã dessas eu segui o meu desejo de cair fora. “Cuidado com o acostamento”. Na verdade não existe acostamento nessa estrada. Uma ladeira, depois outra, depois outra. Lama na praia. Um cara tocava pandeiro. Só um pandeiro e mais nada. Havia uma caixa de isopor abandonada perto da arrebentação. Silenciamos por dentro. O mar, eu e minha amiga. Segredos que mantemos dentro de nós. Doces e amargos. O mar não te oferece doces nem amargos. Ele salga. “E o que haverá dentro daquela caixa de isopor abandonada?”. Eu disse, imaginando, que seria o lanche de alguém, possivelmente alguns sanduiches e uma garrafinha de coca-cola... Vazia”. Completei eu. Ela foi mais ferina. “Talvez haja ali dentro a cabeça decepada de alguém”. E fomos ver. Pois nem o dia ainda se pronunciara. Nem a favor de chuva, nem a favor de sol. E estava feio. O tempo, gris, com nuvens. Enevoado pacas. “Se for uma cabeça eu vou vomitar”. Disse isto deixando para trás minha sandália plástica amarela. Ela garantiu que não vomitaria. “A chance de haver ali, dentro da caixa de isopor, uma cabeça de alguém, é remotíssima”. No espaço de uns cem metros. Apenas com a claridade do sol ameno. Pensando se abriríamos ou não. Aquela caixa de isopor. “Pare de falar e corra”. Corremos ambos em direção à caixa de isopor que agora flutuava numa onda maior que veio até ela. “A caixa vai embora, corra”. Já não podíamos ignorar. Nem eu, nem ela. Que o mar estava traiçoeiro naquela parte da praia. Pedras pontudas no lugar de areia. “Ai... Me ferrei!”. Cortei meu pé tentando recuperar a caixa de isopor. Mas não consegui. Ela avançava, onda após onda, mar adentro. “É minha cabeça que está indo embora com aquela caixa”. Garanti isto para ela, já na segurança da areia, mas com meu pé sangrando. “É a minha cabeça também”. Disse ela, colocando a mão em palma sobre os olhos, tentando ver o mais fundo possível. A caixa branca de isopor parecia estar alegre, dançando, indo embora, flutuando sobre um mar ensarilhado. “Ambos perdemos nossas cabeças para sempre”. Longe, como um pedido de SOS, nossas cabeças estavam indo embora. Sempre cada vez mais fundo, mar adentro.

Beto Palaio

domingo, 25 de setembro de 2011


Fundo azul para a música SleepWalk de Ritchie Valens.

ritchie, buddy & big bopper

Will a penny
dropped from the top
of the Empire State
Building
kill a person?

Will throwing a hammer
off a bridge to break
the surface tension
of the water
save a person
who jumped off
the bridge?

In both cases, no one was dead.

Falling from the sky
ritchie, buddy & big bopper
was in a small chartered airplane
that crashed in a snow covered
field outside Clear Lake, Iowa
in nineteen-fifty-nine.

In that day the music died.


Beto Palaio

(Será que uma moeda atirada do topo do Empire States mataria uma pessoa? Será que se jogarmos um martelo de uma ponte para quebrar a superfície de um lago salvaria uma pessoa que pulasse da ponte ao mesmo tempo que esse martelo? Em ambos os casos as pessoas se salvaram. Entretanto, caindo do céu, ritchie, buddy & big bopper estavam num pequeno avião alugado que se espatifou num campo coberto de neve perto de Águas Claras, Iowa, em mil novecentos e cinqüenta e nove. Naquele dia a música morreu)

Poema originalmente escrito em inglês.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011


David Hockney


TO A TREE

Oh, tree outside my window, we are kin,
For you ask nothing of a friend but this:
To lean against the window and peer in
And watch me move about! Sufficient bliss

For me, who stand behind its framework stout,
Full of my tiny tragedies and grotesque grieves,
To lean agains the window and peer out,
Admiring infinites'mal leaves.


PARA UMA ÁRVORE

Ah, árvore perto de minha janela, somos iguais,
Pois você nada pede a uma amiga, apenas:
Encosta-se na janela e entra na sala
Observando como me movo! Alegria demais

Para mim, que fico firme atrás da vidraça
Cheia de pequenos dramas e tristezas indizíveis,
Encosto-me contra a janela e saio para ver
Admirando folhas de nunca ter fim.


Elizabeth Bishop

terça-feira, 20 de setembro de 2011




ANJOS DE LOUÇA.

A realidade às vezes. É uma bordoada. Um imenso tacape. “Desce já dessa fruteira”, minha tia-avó ralhou comigo. “A comida está na mesa. Não sei até quando vou agüentar criar filho dos outros”, ela completou nervosa, “a comida está na mesa, já avisei!”. Tutu de feijão queimado, cinzas ao eterno. Para quem isso? “Durante a noite nunca dormia. Ouvia grilos. Gritos. Cães de vizinhos desconhecidos”. Quem já prestou atenção no pó do carvão caindo sobre o próprio pó de carvão? Cerco dentro de cerco. Sempre o real dentro do real. “A luz entrando pelas frinchas da janela cria um cinema feito de poeira flutuante”. Porque acordar? Tua lombada, tua carga, passa daqui ali. Homenagens de himaláias condensados. Ao raso do chão. “Minha tia esqueceu-se de colocar o sanduiche de goiabada na minha lancheira”. Tua vida, mãe-vida, rastafáris, sua, dela, no caldo de mil vulcões. Fotonovelas. Queimadas. “Minha primeira ação de querer incendiar o mundo foi ao deixar cair um fósforo na grama seca perto da escola”. Quando o negror é aviso. Bijus de carnes. Cheias. Avenidas. De gemas. De cortinas. Mãe amante. “Minha própria mãe no quarto ao lado com o moço que é ajudante do açougueiro aqui perto”. Eis asas. Asa de libélula. Asa de colibri. Asa de amor fugido. Asa do amor daqui. Pé-de-vento. Na lâmina do céu. O infinito é um rio. Lânguido ao interminável. Doce asa do ir e vir. Asa da xícara. Asa do beiral. Asa deste instante. Asa do nunca mais. Sensualidade nas asas de uma borboleta da cor do abajur lilás. “Meu próximo incêndio foi no fundo do quintal, onde queimei uma pilha de Revista do Rádio de minha tia-avó”. Seixo-de-rio. Voa de volta ao fluir. Em lance de saltitar. Águas para depois sossegar. Asas de espirais liquefeitos. Asa de querubim. Asa do anjo torto. Asa do velho pássaro empalhado. Asa do livre pensar. Amém. “Daí a queimar a Biblia Sagrada foi um passo”. Cordeiro-de-Deus. Damos asas ao Cordeiro. Para que tire os pecados. Do mundo e suas dores. Asas de cura e de paz. Na vida e obra em porcelana. O que há de vir. Mãe escrava. “Minha mãe era funcionária da fábrica de tecidos aqui perto. Lembro que ficava feliz ao ouvir o apito da fábrica anunciando o fim da jornada. Mas ela nunca vinha cedo para casa”. Áia feita de louça, disposta. Entre potes, essências, loções. Uma penteadeira bem arrumada. Teu ser à, ao (re) lento, craquelar. Viés, tal secular, nobreza. Exemplar donzela, posta em sossego. Mãe das mães. “Uma vez ela me levou ao cinema. Um filme do Gordo e o Magro onde ri para valer”. A casa é sempre sábado. Roupas secando no quarador. Um perfume de brancura nos lençóis dependurados. Anil, Omo, Confort e o doido amor. “Tentei colocar fogo nos lençóis, mas estavam muito molhados”. Um vidro de perfume deixado. Ao destampado do espelho. Seu crucifixo de ouro. Tão dedicado à fé, em repetições. Tudo abandonado para o nunca mais. Cinzas de crucifixos. “Um dia minha mãe não voltou mais”. Tim-tim no craquelar. A pequena áia de louça. Seu ovário oco, incompleto. Uma vida apenas superfície. Nem medusa, nem musa. Clara, luz, mesmice, cruz, ali perto. “Coloquei fogo nas fotos amarelecidas que ela deixou numa antiga caixa de sapatos”. Acertando o relógio. O meu com o dela. Mãe distante. A cautelosa delicadeza da hora. Um mal que palavra alguma. Gagueja, entremeia, solidifica. Para perturbar o bom augúrio. Da paz decalcada em porcelana. O tacape. “Deixa eu explicar o que é um tacape”. Até me fantasiei de índio, pura fantasia, ao tentar captar o momento mágico de um touro solto em uma loja de porcelanas. “A vida é botar para quebrar”, disse eu imitando a mulata do Sargentelli, ajeitando seu bustiêzinho. “O espetáculo dura enquanto durar as cortinas de veludo”, falei como falaria nas coxias o produtor shakesperiano George Camerlengo. “Vem sempre na contra-mão o martelo seguro para quebrar o inquebrável”, disse enigmático um chefe de obras, equilibrista, cowboy nos andaimes, apertando os parafusos das emendas, aço com aço, da estrutura de um futuro arranha-céu. “Cabeça, tronco e membros” disse eu acertando com um tacape uma bonequinha de louça que pertencera à minha mãe. “Um dia tudo acaba”, falou minha tia-avó serenamente, chuleando uma casa para um botão de madrepérola.

Beto Palaio

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

HENRY MILLER

THE SMILE AT THE FOOT OF THE LADDER /O sorriso ao pé da escada


Sou um patriota do quarteirão onde nasci no Brooklin...



Me debati muito no começo. Eu dizia que iria escrever toda a verdade possível,
nisto tive até a ajuda de Deus. Achava que conseguiria. Mas descobri que não
poderia. Ninguém pode escrever toda a verdade.

Clique acima para o site

domingo, 18 de setembro de 2011

Patrick Leger Illustration
- Não saia agora, Literatura, espere eu ajeitar a gravata....

LITERATURA, ESSA CATIVA!

A literatura é como um bicho preso. Um homem que se debate—alegre ou triste, desesperado ou sereno—dentro de um cubículo. A literatura é uma fera cercada de arames farpados. Como aquele carneiro com os chifres presos entre os arbustos. A literatura é o fogo, visivelmente indomável, a devastar um capinzal, mas com um aceiro de terra que cerca e delimita. A literatura é...

- Entre muros se faz todo serviço, no isolado do beco...

Creio, não tenho muita certeza, que um cara disse isso num filme de gângster em 1957.

- Entre as duas capas desse livro existe um pássaro preso que só se liberta com seu olhar atento.

Apenas por sarro, imaginei a Fada Sininho dizendo isso para o Peter Pan, fazendo a cara mais esperta do mundo.

- Um dia a literatura será dos garis, ou daqueles que recolhem a xepa no fim da feira, ou dos que estão na fila do INSS esperando pela féria do mês.

Isto dito por um amigo socialista, que endoideceu e largou o mundo, mulher e filhos, para refazer o trajeto de Luiz Carlos Prestes. Agindo assim como um verdadeiro Quixote do século 21.

- Não toque nisto... É meio frágil...

Disse minha Tia Nininha ao saber de minha inclinação para o conto e a poesia.

- Porque você tem de enfiar a mão nesse penico?

Falou-me um advogado amigo, o Ortiz, com a cara mais séria do mundo quando lhe segredei que estava me tornando escritor.

- Desiste que ainda é tempo...

Entretanto. Apesar dos maus augúrios. Com todas as premissas contra a literatura me servir de arrimo. Numa manhã fria. Enfarruscada pacas. Estava andando na praia com meu walkie-man. Sem o que fazer. Chutando o final das ondas que se espichavam na areia. Súbito, como toda iluminação interior tem mesmo de ser. Ouvi ali uma música cantada pelo Gonzaguinha que fez eu querer me tornar escritor. A bem dizer um moleque disfarçado de letras me chamou intimamente para adentrar seu mundo de folguedos:

- E o menino com o brilho do sol, na menina dos olhos, sorri e estende a mão, entregando o seu coração, e eu entrego o meu coração. E eu entro na roda, e canto as antigas cantigas de amigo-irmão. As canções de amanhecer, lumiar a escuridão. E é como se eu despertasse de um sono que não me deixou viver. E a vida explodisse em meu peito com as cores que eu não sonhei. E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim. E é como se então, de repente, eu chegasse ao fundo do fim, de volta ao começo...

Achava no meu inicio que a Literatura seria um menino irrequieto. Fiz-lhe os mimos. Dei-lhe pacotes e mais pacotes de goma de mascar. Doces dos mais variados, desde o vulgar e melado doce de padaria ao fino confeito árabe comprado nas escuras travessas da rua 25 de Março. O menino exigia. E eu dava. Pediu sorvete, saí madrugada afora atrás de uma sorveteria aberta. Pediu baba-de-moça, canjiquinha e cocada. Contratei uma doceira baiana para lhe fazer as vontades. Pediu, por fim, moça de carnes novas... Vi que meu menino havia crescido e mudei o cardápio... Fiz de tudo ainda para agradá-lo...

- Quero sim, uma moça que trepe no coqueiro como a Gabriela...

Depois passei a achar minha literatura algo sério, vinda das vilas dos confins, nascida em bafio agreste de rosa e sertão. Uma literatura pregada de tábuas de que se fazem canoas sestrosas pintadas no bojo com o nome de Rosinha. Brasileiríssima. Pendendo para andar de alpargatas, mesmo que esta se enchesse das areias da Ponta do Seixas, ou ficassem esquecidas ao sol de Ipanema.

- Ô, escritor... Liga um João Gilberto e solte a palavra... Esse é o segredo...

Logo a literatura pegou um entojo de bossas novas. Atreveu-se a ficar quieta. Quis resumos. Não causava nem criava efeitos. Minimalizou-se. Quis escrever monotonamente, como se o texto fosse um longo rugido que saísse do fundo de uma cocha ao pé do ouvido. Foi assim quieta que ela, a literatura, me abandonou. Minimamente protegida pelos seus ideais pósmodernos. Foi-se.

- A literatura é um bicho sem sal nem açúcar.

Dizia isso aos quatro ventos. Parei de escrever até. Passei a beber latinhas e mais latinhas de bebida energética. Ficava acendendo velas vermelhas para o guia do bom texto e velas pretas para o guia do texto safado. Mas nenhum me atendia os brados. Por fim, lembrei-me do Gonzaguinha, que veio novamente me socorrer:

- De volta ao começo, cara... De volta ao começo!

Ah, a literatura!... A literatura é como um bicho preso. Um homem que se debate—alegre ou triste, desesperado ou sereno—dentro de um cubículo. A literatura é uma fera cercada de arames farpados. Como aquele carneiro com os chifres presos entre os arbustos. A literatura é o fogo, visivelmente indomável, a devastar um capinzal, mas com um aceiro de terra que cerca e delimita. A literatura é...

Beto Palaio

Ilustrações de Patrick Leger.

sábado, 17 de setembro de 2011

Sul - Roberto Polaco Goyeneche

Sur

Astor Piazzolla

San Juan y Boedo antigua, y todo el cielo,
Pompeya y más allá la inundación.
Tu melena de novia en el recuerdo
y tu nombre florando en el adiós.
La esquina del herrero, barro y pampa,
tu casa, tu vereda y el zanjón,
y un perfume de yuyos y de alfalfa
que me llena de nuevo el corazón.
Sur,
paredón y después...
Sur,
una luz de almacén...
Ya nunca me verás como me vieras,
recostado en la vidriera
y esperándote.
Ya nunca alumbraré con las estrellas
nuestra marcha sin querellas
por las noches de Pompeya...
Las calles y las lunas suburbanas,
y mi amor y tu ventana
todo ha muerto, ya lo sé...
Clique na pauta acima para assistir ADIOS NONINO
música que considero como sendo um dos patrimônios
artísticos da humanidade.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011


motherWeb - candice breitz


Há algo de Beckett em MotherWeb. Talvez o recorte das atrizes somado ao discurso impulsivo. Mas. O obsessivo também faz parte da linguagem da autora. Vide o trabalho dela focando Jack Nicholson. Uma seqüência de aberturas de filmes do ator que torna o nome dele a única atração. MotherWeb é muito estranho quando visto da ótica estabelecida das estrelas de Hollywood em seus papéis habituais. Mas o não-estabelecido é exatamente o que Candice Breitz quer:


Estou interessada em criar uma obra de arte como algo catalisador, aquele que momentaneamente registra maneiras complicadas de fazer sentido, o que torna o resultado até muito estranho. Meu interesse não está em censurar os que preferem a maneira acomodada de ser, algo que um bem de consumo já concorda, mas gosto chegar num modo de expor uma lógica própria que, em certos casos, vem ampliar limites estabelecidos.


Candice Breitz




A autora candice breitz