domingo, 24 de fevereiro de 2013





TITO E LAVÍNIA


“Não há. Nada lá. Não mesmo”, balbuciou Lavínia ante a dúvida de que o silêncio anormal denunciava um acontecimento funesto. Arrepios ao ouvir sinos da meia-noite na igreja distante. Um descampado. O frio é um açoite. A noite é úmida e gelada. Os olhos dela estão embaciados. Quando achamos que tudo vai bem. Um acendedor de lampiões nos esquece apagados num canto da praça. Aquele que nos empresta lumes em encadernações heróicas. Passos de uma notívaga em noite de inspiração fugidia. A confecção de um conto é como uma missa que se reza. Quando um vento mais forte vem na calçada de Copacabana e sopra dois imensos sacos plásticos em direção à Lavínia: um deles era branco, o outro era negro. O vento que os arrasta é caprichoso. O saco plástico branco passa rapidamente à direita dela, e o saco negro corre pela sua esquerda. Que tipo especial de poder abastece o acaso em momentos como este? Divisar o horizonte por esta época, meados dos anos setenta, era praticamente impossível. Vivíamos a saltar de cratera em cratera. Os dias amorfos seriam como bagas vermelhas, vulva de algumas poucas alegrias, se assim fossem permitidas pelas autoridades regulatórias. Impossível precisar quando se rompeu o dique da concupiscência, até então firmemente contristado. Escrever é digitar democracias. Criar prosódias com o inexistir. Quem há de se importar com isto? Ouve-se o ruído incessante de ondas que invadem o calçadão da praia. Lavínia imagina isso desde que achou que o mundo acabaria com o mar invadindo tudo. Uma preleção particular que não tinha antecedentes. Alguns colegas a transtornavam na escola. Que alguns a irritassem, ela não se importava. Mas ela leu uma novela onde o personagem era, na trama, Tito Andrônico, um poderoso general da Roma Antiga, o qual volta triunfante da guerra contra os visigodos. No entanto, a recusa de Tito em se tornar imperador gera uma onda de vingança sem fim. As cenas por vezes chocaram Lavínia, onde ela pensou em desistir de ler as descrições precisas de decapitações e mutilações, além de um estupro e de uma cena de canibalismo involuntário. Lavínia criou coragem e abriu a porta do texto, a qual a levou por um longo corredor, no qual se ouvia o chiado de um telefonema onde um personagem errante se comunicava desde a estalagem até as faldas de castelo distante. Ela evita se livrar de suas culpas e castigos, todavia finalmente, para aquele castelo Lavínia se dirige, e vem depositar, interinamente, num específico corredor, criado a contento do autor, neste entre tantos corredores, as suas dúvidas civilizadas, para finalmente adentrar, não sem titubeios, o magnífico quarto de Tito Andrônico. Ele ainda dorme. Seu elmo e sua armadura peitoral estão ao pé da larga cama de mogno. Sua espada ao alcance da mão. Tito ronca suavemente. Seu rosto demonstra velhice e cansaço. Lavínia descompassa a leitura: sono, senilidade antecipada, exaltação, parentes afins, sobremesa, fieira de peixes, conchas, retalhos de corpos, féretro, cores de anil, perfume, rosas em vaso de cristal, pedestal, olhos que se abrem. Dando descendência à veracidade dos fatos. Vimos até aqui o não de tudo, bem ao talho, no corpo do texto de Lavínia, sim no sim, ela estupefata ao adentrar o quarto do senhor da guerra. Lavínia, ao encontro, não tem pressa, porém. Senta-se ao pé da cama de Tito Andrônico e segue a fiar lentamente numa antiquada roca de fuso, vindo algodoar o piso do quarto com um lençol confeccionado do mais puro entretenimento. Ela vê o corpo do seu senhor enquanto ele ainda dorme. Mais nítido e maior. Indigente feito gravetos jogados à terra para germinar. Carne e solo. Ali dentro, contra uma vetusta cortina de veludo, há heróis que se mesclam: os sete samurais nele, o zorro nele, a espada de escalibur nem demora a surgir, às mãos premiadas de louros. Eis ao límpido. Luz e sombra dormitam ali em afinidades. Tal um atrevido cio. Na lanterna mágica de apresentar raios vermelhos e lascivos. Contra um fundo lilás. Lavínia é levada até o Arno que arde ao se entregar ao Mediterrâneo. Feminina ao extremo. Ao se sentir inteira, em infinidade com sol e sinos – ela, Lavínia, procura pela tessitura do mísero escrito, com que, de findo, a penu mbra vencesse. Como se, na leitura apaixonada, o etéreo lhe surgisse concreto no reconstruir cenas. Súbito Lavinia percebe que Tito está desperto. “Quem és tu?”, ele pergunta atônito. “Eu sou a camareira... Chamo-me Lavínia”, retrucou ela. “E o que queres no meu quarto?”, ela não sabia o que responder, pensou tanta coisa, mas resumiu isto: “apenas fiar”. Ocorre que a literatura é algo enfastioso e movediço como o mascar de um chiclete: ora a literatura é mentirosa, ora é verdadeira. Miasma de mistérios. Entretanto. Tal é a nudez da arte. Especificamente. Neste caso que se relata, Tito e Lavínia se revestem da mais pura verdade. Ela continuou tecendo seu lençol de algodão. Ele levantou-se e saiu do quarto. Quando retornou Tito tinha nas mãos um espelho excessivamente polido. Trouxe o espelho e levou-o defronte ao rosto de Lavínia. Com isto Tito a expõe como ela realmente é. Abruptamente. Lavínia se assustou e deixou cair o livro que lia. Depois nunca mais tornou a abrir aquele livro.


Beto Palaio

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


ST GAUDENS GOLD $20 DOUBLE EAGLE

O CAMAFEU DE SOL


Um camafeu de sol para se abrir nas missas de Domingo. A fé que age como um farol distante. Um lusco-fusco na vida de Angelimércia. Quando não havia mais para onde correr. Sua cidade por excesso de ser pequena. Caixa de palitos de fósforos ganha em latitude e longitude. Ali: asfalto, terra e paralelepípedos. Mas os paralelepípedos multiplicavam-se. Rochas de granitos cortadas de forma absolutamente iguais, milhares delas. Ao chegar perto do Rio Perequê, a estradinha de paralelepípedos se transforma em terra batida. Ao consórcio de mata fechada, um ruído de riacho correndo por sobre pedras. Embora não se descortinasse o rio desde o lance de estrada. O barro que procriava criaturas, árvores, pássaros e insetos. O que na estrada se pisava. Amiúde. Saltando poças de água lamacenta formadas nesta madrugada. Uma anta saltou da mata ciliar para o rio. Ouviu Angelimércia o fragor. No velho rio, a anta salta, estrondo na água. Putz, é um livro! O que a vida registra. Sem que se discorram os fatos verídicos, ditos incoercíveis, em alfarrábios de tabelião. A vida de Angelimércia não tem sido fácil. Tudo lhe causa terror. Ela tentou fazer uma experiência para se isolar do mundo e suas inúmeras contradições, para si unicamente, construiu um palácio feito de palavras e determinações. Equipou-o com o mármore das citações elevadas, cercou-se de uma biblioteca de boas intenções, que sugeria veneráveis jardins suspensos. Tudo para seu refúgio. Deste esconderijo único ela observava o mundo. Muito embora, por pouco não se perdeu totalmente. “Estou muito bem aqui sozinha... O mundo nunca me alcançará!”. Como de fato assim ocorreu durante anos seguidos. Até que Angelimércia conheceu o amor em toda sua plenitude. Inicialmente ela não quis se entregar para Antonino. Negou-lhe a chave de seu coração. Atapetou de pedras, como de paralelepípedos, o caminho que o lado de fora do mundo entrega para o acesso de seu foro intimo. Até que Antonino lhe oferece um carinho mais ousado, com a respiração arfante, um minotauro a percorrer os subterrâneos de seu tão bem resguardado palácio. Esse homem absurdamente prático, de chofre, ele vem, dá-lhe beijos demorados, quando em perdição absoluta, suspende seu vestido, ajoelha-se, faz-lhe carícias supremas, beija ternamente seu púbis por sobre a calcinha de rendas, que Angelimércia se recusou a tirar. Este jogo de amor ocorria repetidamente. Eles já sabiam que tudo isto se repetiria. Bastava um olhar. Um pedido quase secreto de cada um. Vistos ao sim. Aprovações de ambas as partes. É então chegado o inadiável. Antonino lhe penetra avidamente. Ambos querem aquilo. Desejam pela estocada aflita. Carne concorrendo com carne. O gozo. As determinações que se aplicam. A conversa de travesseiro. Conselhos para que um nunca perca o outro. No entanto Antonino foi chamado para a guerra. Angelimércia voltou a se esconder no seu castelo de letras. Lia. Pensava. Escrevia cartas. Lia. Pensava. Escrevia cartas. Lia. Pensava. Escrevia cartas... Isso Angelimércia fez até que recebeu a decisiva carta. Esta vinda com o timbre dos Estados Unidos do Brasil. Ali, entre desculpas oficiosas, a notícia de que Antonino sucumbira à serviço da nação. “Meu Antonino morreu!”. Isto apenas ela suspira. Então Angelimércia decide também morrer. Toma de um paralelepípedo e anda até a ponte do Rio Perequê. Eis em suas mãos o frisson e um pequeno artefato grosseiro, ao uso que se propõe, com massa de dois quilos de granito, cortado de forma retangular, quando amarrado ao pescoço por uma corda, abandonado de um ponto distante da água de um rio, desde o patamar de uma ponte, da qual, vem a cair verticalmente, sob a ação da força-peso, acaba por vencer a resistência do ar, arrastando atrás de si um corpo, o de Angelimércia. Ao baque surdo. Uma estação de trem ela vislumbra no fundo do rio. Peixes passam pela locomotiva. Curimbatás, dourados, tainhas, lambaris e guarús. Angelimércia corre para comprar a passagem para a cidade de Éfeso. O vagão começa a ficar apinhado de pessoas vestidas de branco. Murmúrios aquáticos de felicitações por ela estar indo também para Éfeso. Porém, ela vê um vulto escuro que a apanha. Logo ela está outra vez experimentando a luz do sol. Um camafeu de luz que ela assiste lhe chegar aos poucos. Um homem de terno, todo ensopado por pular no rio, lhe havia salvado. Angelimércia nem parece acreditar. Foi nos braços desse homem viril que ela adentra ao pequeno hospital da cidade. No dia seguinte ele lhe traz flores. No dia após aquele, mais flores. Depois mais flores ainda, com um cartão perfumado e um pedido de namoro. Angelimércia aceita. Ela está novamente autorizada a recarregar de luz a sua alma feita de sol.


Beto Palaio

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013



SALTO PARA O AZUL.


Não havia em Azul Ferreira a mínima condição dele se tornar um tuaregue. No entanto o deserto universal o atraia. Azul Ferreira pressentia quando chegava a hora dele partir e virar as costas para tudo. Era o momento dele voar para outros pousos, ser atirado como uma pedra na superfície de um lago em repouso. Saltitante então ele partiria. Vazio pacas. Porém pleno de santidades. Wabi-sabi por inteiro. Como a sabedoria celestial de uma inscrição num bambu murakami. Como uma hóstia escondida num trapo de macramé. Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direção. Você pode mudar de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de você. Volta a mudar de direção, mas a tempestade se segue, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem ter nada a ver contigo. Esta tempestade é você mesmo. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta se deixar levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar. Sobre isso Azul Ferreira filosofa longamente. Hoje ele mora numa vila de pescadores em Ilha Bela. Azul está só enquanto ouve o coaxar de sapos distantes. Isto ele escuta também: o troar de uma sirene de barco, quase inaudível, possivelmente vindo do alto-mar e um cão que late. “Eu estou só nesta cozinha. Barman é meu cachorro que está lá fora. São mundos paralelos o meu e o do meu cão. Eu estou aqui tentando fritar um ovo, enquanto Barman, meu velho cão de caça, está lá fora e começa a ganir.”. Azul sabe que Barman quer passear pela praia e que está agindo assim para fustigá-lo com ganidos. Esta é a maneira dele pedir por este passeio. “Barman, seu velho sabujo, você sempre ganha o que quer... Sempre ganha”. Já com a guia e a coleira na mão, Azul Ferreira conversa com seu cão. Depois eles saem para andar pela praia. Ele desabafa com Barman como se realmente estivesse acotovelado num balcão de bar. Para o cão ele revela seu dia terrível: “Não consegui escrever nada hoje, Barman... A pôrra está encalacrada... Eita texto difícil de parir”. Azul Ferreira está escrevendo seu terceiro livro. No fluir de sua literatura. Como de praxe. Ele habilmente mistura influências da sua leitura de livros baratos, heróis transformistas, zulus das estórias do Tarzã, mulheres de aparência subversivas, potes de geléia mofados, mundos suburbanos, embalagens vencidas, manteigas rançosas, perfumes baratos de maquiagem, cheiros convidativos dos pães que alguém termina de assar. Azul discorre sobre possibilidades do tema. Arrastado pela coleira. O cão continua seguindo pela areia e insiste em querer cheirar uma gaivota morta que a maré alta jogou na praia. “Barman, eu estou também querendo futricar com os meus cadáveres... Estou ferrado... Ando tendo cada lembrança!”. Isto ele desabafa, pois havia escrito para seu novo livro um trecho terrível, embora verídico, que se passara com ele e com a sua mãe. Quando aconteceu o fato, Azul não tinha mais de quatro anos de idade. Mas ele lembra-se claramente. Sua mãe tomando-o pela mão enquanto seguia pelas alamedas estreitas de um cemitério. Ela trazia na cabeça, cobrindo parcialmente o rosto, um grande lenço de cambraia negra, quase transparente. Numa das mãos ela carregava um balde enquanto puxava Azul pela outra mão. Chegando defronte ao túmulo do pai de Azul, ela jogou todo conteúdo daquele balde sobre a lápide. Dentro do balde haviam restos esquartejados de duas galinhas inteiras. Aquele ritual sanguinolento foi rápido, porém decisivo. Algo marcante e inesquecível para ele. Enquanto. Sua mãe gritava a todo pulmões ao despejar aquele restolho sobre o túmulo de seu pai: “não quer comer galinha nova?... Pois tome do que gosta, safado!”. Depois sua mãe o pegou no colo e se afastou rapidamente dali, sem olhar para trás. “Cheira sua gaivota, Barman... Que mal isto faria?”. Azul Ferreira pensa na continuidade e, principalmente, na substancialidade de seu livro. Não queria que ele se tornasse autobiográfico. Mas o aparente controle que Azul pensou ter sobre o texto estava se esvaindo. “É preciso ter disciplina... Total disciplina!”. Azul sabe por experiência que a disciplina é precária, é correta, é estranha, é calmante, é dolorosa, é revolucionária, é profunda, é fiel, é mentirosa. A disciplina é, por fim, desnecessária. No entanto Azul está vivenciando completamente seus personagens. Ele sente-se na pele do nobre Arthur, e vibra com a presença de Vanessa, sua namorada: “Vanessa, eu sei que você virá, como de costume, pontualmente, às oito da noite. Eu não poderia imaginar algo melhor hoje para nós dois: sofá, TV, pipoca e esta chuva lá fora. Falarei para você ficar. Eu embalaria seu sono com esse ritmo cadenciado da chuva tamborilando nos beirais e adjacências. Vanessa, você me conhece há quanto tempo? Então sabe muito bem que eu adoro dormir com um barulhinho de chuva lá fora, e depois acordar com o cheiro de terra molhada”. Azul Ferreira imagina, a partir de seus escritos, a delícia que é dividir a cama com uma mulher a qual poderia amar longamente. Ele está só. Numa casa onde ele divide a solidão com Barman, seu cão de estimação. Azul caminha da geladeira para o console do computador. Ele está com um copo vazio na mão. Desistira de encher o copo com água gelada, pois teve uma brilhante idéia para a continuidade de seu livro: ele levaria seu personagem Arthur para percorrer a velha Escócia. Tornaria mais nobre ainda o Arthur ao compará-lo, levemente, a um rei do passado. Não importa quem. Mas alguém que possuiu a nobreza da autoridade revestida em atos subservientes, vis, biltres e canalhas. No entanto, um rei: “Boatos de que o próprio rei andou por aqui. Onde ele costumava tomar cerveja. Andou pisando duro, inflexível, com sua intransponível majestade. Hoje Arthur de Valença pode usufruir do mesmo ambiente real. As mesmas pedras continuam por aqui. Pavimentos indeléveis. Permanência que se instala ao ignorar o que é fugaz. Tudo passa rapidamente por este mundo, principalmente a madeira, a palha e a carne!”. Há um momento de trégua no novo romance escrito por Azul. Ele dá ao personagem um pouco de oxigênio puro. Faz com que Arthur entre num carro conversível com Vanessa e os leva para passear por um reino encantado permeado por estradinhas campestres, ladeadas por infindáveis muros de pedra. Da alma sincera do escritor, brota a união daquele casal, indivisível até diante da luz dos astros, permeada por uma brisa leve que norteia velas errantes. Entretanto, na sala, Barman derruba um raro vaso de porcelana que ficava no meio da mesinha de centro. Azul, no entanto, vai até lá e fala ternamente com Barman: “Ah, seu bandido, esse vaso pertencia à ela... Aquela insensata que nos abandonou... Soubesse você da monstruosidade do amor... Da sua demência temperada, ao meio de uma doçura refinada... Barman, você é feliz porque desconhece o mar de lagrimas dos amantes”. Depois ele foi colocar Barman para fora. Fazia calor, embora houvesse garoado um pouco. Isto Azul notou ao observar o corredor, que leva ao portão, ainda úmido. Ele lança seu olhar demoradamente para o céu e vê que, ao longe, fagulhas de relâmpagos cruzavam o céu. Ele imagina daquilo se propagar com intensidade. Acha que durante a madrugada a tempestade chegaria até ali. Depois sentou-se na espreguiçadeira do pórtico, com Barman quase lhe servindo de tapete. Ainda discorrendo sobre as propriedades de um romance. Imaginou do amor ser como um sonho, uma fantasia, algo que também sofre tempestades, porém sem nunca ofuscar-se. Pensou, além disso, no arrebol do dia que nascerá na manhã seguinte. “Boa é a tempestade que lava e prepara o novo dia”. Azul então afagou a cabeça de Barman e quis voltar a escrever. Tudo o que ele faria agora era tornar seus personagens felizes. “Custe o que custar... Eu me esfalfo aqui sozinho... Mas meus personagens sempre receberão o melhor que eu possa lhes dar”.


Beto Palaio



Arte: Deidre Quinn

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013



O ORNITORRINCO

Eu vejo flores de plástico por todos os lados. Estamos cercados de dúvidas que são atrizes de um palco vazio de respostas. Os opostos se atraem como moscas ao pote de marmelada. Viver mal e porcamente para depois se acabar morto, porém cercado de flores. Ao entupimento. Tudo se acaba longe do lar e com a ausência do ar. Em esgar. Enquanto estamos em duelo com a gravidade. Findos os propósitos. Resumo de acordos táticos onde o amor aparece como o mais nobre dos sentimentos. Instância maior do ser amado. O amor só nos traz alegrias e contentamento, enquanto a falta de amor nos causa sofrimento e dor. “Pega a bola lá, Agrinaldo!”, vozes que lhe imploravam o óbvio naquele jogo de vôlei na praia: sem bola não há jogo possível. Então Agrinaldo, sem muita vontade, se afastou alguns metros e se abaixou para tentar pegar a bola. Mas alguém se adiantou e pegou a bola antes dele, esse alguém viera também apanhar a bola, e era uma bela moça chamada Avisneuza. Eles se conheceram neste jogo de vôlei de praia quando, após apanhar a bola, Avisneuza olhou para ele sem piscar e detonou: “meu amigo, atire a bola mais alto desta vez... É que sua bola já bateu três vezes na rede”. Logo o jogo seria adiado para o dia seguinte, pois o sol se punha e muitos tinham desistido da partida e foram embora. Agrinaldo não viu mais Avisneuza naquele dia, e nem sequer pensou a respeito. Por absurdo que pareça. Acontecera algo inusitado durante a noite em Copacabana. Um tumulto para algo que seria notícia no mundo inteiro. Um ornitorrinco atravessou a Avenida Atlântica. Era algo aterrorizante, um tipo de jacaré gigante, munido de um ameaçador bico de pato, parou bem no meio da avenida. Alguém correu para socorrer uma criança que fora apanhada pelo ornitorrinco. Chegaram tarde, pois o animal havia engolido a criança em poucos segundos. Gritos da mãe da criança podiam ser ouvidos desde o areão da praia. O jogo de vôlei parou imediatamente. Todos nós, eventuais esportistas, corremos em direção aos gritos de desespero. O ornitorrinco ainda estava lá no meio da avenida. Surgiu um guarda civil que desferiu um tiro à queima-roupa na cabeça do animal. Alguém trouxe um punhal muito afiado e abriu a barriga do ornitorrinco. Dali foi retirada uma criança que não sofrera sequer um arranhão. Agrinaldo acorda em meio aos lençóis em desalinho. Tudo não passara de um sonho absurdo que ele teve. Ele nem quis contar esse sonho incoerente para seus amigos. A normalidade da existência logo o faria esquecer do ornitorrinco. Duas semanas adiante ele está indo para Niterói e vê uma linda mulher, acomodada na barca, entretida em ler uma revista Capricho. Agrinaldo a reconheceu, mas ela não tirava os olhos da revista. Ele achou oportuno e tomou iniciativa de falar com ela. “Você é a mesma do jogo de vôlei em Copacabana?”. Coincidentemente ela era a mesma pessoa. Entretanto Avisneuza nem demonstra tanta surpresa assim: "Ah, da próxima vez tente não acertar a bola na rede!". Eles riram e logo estavam conversando coisas mais sérias. Agrinaldo nem sabe porque começou a falar com ela sobre seu sonho com o ornitorrinco. Avisneuza, pela primeira vez desde que se conheceram, mostrou-se vivamente interessada por algo. Ela quis saber tudo a respeito daquele sonho. Depois ficou pensativa e falou para Agrinaldo: “isto me impressiona muito, pois eu também já sonhei com um ornitorrinco. Era um animal medonho que me seguia enquanto eu descia correndo por uma escadaria em espiral. Eu estava desesperada e ele me seguia de modo aterrorizante”. Agrinaldo não levou muito a sério o que a moça lhe falava, mesmo assim pergunta: “e como acabou seu sonho com o ornitorrinco?”, ela finalizou bastante pensativa: “terminou que a escadaria seguia até o porão e ali havia uma imensa lagoa feita de milhares de flores. Depois eu me afundei nas flores e não vi mais o ornitorrinco”. Ambos ficaram em silêncio  observando os limites da Baia da Guanabara sendo preenchido por grandes navios. Não falaram mais nada. Mas Avisneuza quebra o silêncio: “topa irmos a um cinema qualquer dia desses?”, Agrinaldo topou na hora: “claro que sim”. Uma quinzena depois. Agrinaldo e Avisneuza calharam de se apaixonar motivados por uma estranha coincidência, algo que se menciona de passagem e que eventualmente se desfaz na basílica oceânica do existir. Com este ato ou, melhor dizendo, com isto ou, melhor dizendo, desta maneira o casal abusou da regra de que o amar judicioso exige escolha moderada, intercedida por um namoro alongado, um noivado esticado, ou um casamento muitas vezes adiado. O fato é que eles acabaram por se casar em menos de um ano. Tudo para contrariar as regras estabelecidas do relacionamento seguro. Na verdade eles foram como que engolidos por um ornitorrinco chamado destino.


Beto Palaio

sábado, 16 de fevereiro de 2013



MAFUÁ CAVALHEIRO E AS FILHAS DE MARIA.

Sujo feito pau de galinheiro. Mesmo assim ele carregava andor em dia de procissão. Em fidelidade absoluta. Uma bereba purulenta nunca surge para alisar a cútis. Só a boa madeira aceita o prego sem rachar. Terrível era ter de agüentar as pavonices e manias de Mafuá Cavalheiro. Saísse ele com fulana ou sicrana ou beltrana. No dia seguinte a turminha do abafa se reunia no Salão Alvorada, como é conhecida a barbearia do Elias em Botafogo. Ali Mafuá não tinha freios na língua e deitava falação sobre usos e abusos que fazia, no escurinho, com uma eventual namorada. Atestava para os basbaques do Salão Alvorada que deflorara esta, ou que ensinara o boquete para aquela. No entanto. Nenhum destes abusos da decência ganharia adeptos, entretanto tinha ele uma seleta platéia de indecorosos. Mafuá era para estes um exemplo de orgulho, seguiam-no como se estivessem em esganiçada perseguição atrás de uma cadela no cio, aquela que surge pelas ruas da cidade sendo acossada pelos cães que buscam seu minuto de glória. Ao entendimento promíscuo. Há quem o defenda de jogar sujo como base segura para o futuro lustro político que Mafuá Cavalheiro iria adquirir. De fato Mafuá Cavalheiro andou um bocado de tempo se fingindo de besta, almejando a liderança do grêmio estudantil, apenas por desfilar diariamente com um livro de Nikita Kruschev embaixo do braço. Os militares estavam, por esta época, escondendo em cofres seguros à quem se atrevesse a promover as esquerdas. Um ato de heroísmo esse do Mafuá exibir que lia autores russos ao contento da galera geral. No entanto Mafuá nunca lera de fato o livro do Nikita Kruschev, assim como não lera o manual prático dos Sforzas, nem as máximas políticas em Maquiavel. Pois. Como tal. Ele era mesmo o rei da falsa brilhantina da cidade do Rio de Janeiro. Num chinfrim de não ter jeito. O máximo de uma carreira política, entretanto, Mafuá conquistou: a liderança estudantil, a vereança, o cargo de prefeito, a cadeira de deputado estadual, o posto de deputado federal e, finalmente, uma vaga no senado. Anos e anos ele movia palha para construir moinhos de vento. Uniu-se a um grupo de ocupação imobiliária para construir dentro dos domínios da Mata Atlântica. Um pente fino que ele passava na lavratura de documentos falsos para ocupar propriedades públicas. Com a experiência, Mafuá mandou desapropriar terras indígenas por toda Amazônia, tendo em vista os lenhos de mogno, cedro e peroba, para depois mandar passar tratores de arrasto, limpar a terra e jogar semente de grama para criar boi. Já por essa época Mafuá Cavalheiro só vistoriava suas posses vistas de cima, ao olho de águia, dentro de um de seus jatinhos particulares ou helicópteros. No entanto, para abuso geral das sacristias, Mafuá Cavalheiro não perdia uma só procissão organizada por ordem da Semana Santa. Ali ele desfilava de jaleco branco e rendado por sobre seus ternos de linho. Agora, passados tantos anos, estão todos se prestando a homenagear o passamento de Mafuá Cavalheiro. Durma-se com um barulho desses. Páginas e páginas de papel sulfite estão amassadas e jogadas no chão da redação. Adiado o prazo de entrega desta bendita homenagem para o Folhetim Carioca. Então ficamos ao telefone batendo um papo sobre a dita inspiração poética com o nobilíssimo escritor Tendão de Aquiles. Beleza colocada para dormir. Cantigas de ninar que se desdobra. O outro telefone da redação do jornal toca insistentemente. Uma prima nossa perguntou se era pertinente indagar a Santo Antonio se ela iria ou não se firmar em pacto de casamento. Ocorre que. Em santo dia de feriado, seja Corpus Cristi, Ladainha de São José ou Dia de São Sebastião do Rio de Janeiro, todos os anjos solteiros se sentem no direito de sonharem com um tapete vermelho que os entreguem do pórtico ao altar. Entretanto, respeitando a prima casamenteira e ao poeta Tendão de Aquiles, saltamos do tema da arenga literária para a obrigação jornalística de discorrer loas e broas sobre o cidadão pernóstico que foi Mafuá Cavalheiro. Mais uma folha de sulfite corre para girar no tambor da Remington. E o pensamento divaga numa improvável chamada de matéria: “pústula que não se debela com creolina não tem solução possível”. Mais uma folha de sulfite amassada é jogada ao chão. Acho que hoje não tem jeito. Não sou eu quem escreverá elogios ditos “de imprensa” em homenagem à Mafuá Cavalheiro.


Beto Palaio

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013



A CORVINA VIVE


O céu de grama molhada, silêncio de grudar, em objetar diretamente, os jovenzinhos olhares da alma. Quando o reflexo da luz da geladeira bateu no olho da corvina. Vi que estávamos errados. Toda raça humana. Palavras, bocas, gestos, leis. Quebrei o silêncio em favor da corvina: “perguntem para ela, olho no olho”. É bem possível que ela te diga sumas, coleções dela ser, hábil pensadora, de tempos que passou a sua infância e juventude sob as ondas. Ela sempre entretida nos compromissos abissais do H2O, onde o urbano aquático reside trezentos e sessenta graus, neste aglomerado de ser mar, sopa primordial. Ali as estações do ano se multiplicaram de dois em dois. E esta corvina aqui, aliás, todas as corvinas do mundo, são peixes de oito estações por ano. A primavera e a primaverinha; o verão e o veranico; o inverno e o degelo invernal; o outono e o vasto outono. Em verdade a única estação do ano que a corvina não acompanha em sua própria casa, cara a cara, é o vasto outono. Estando, como os demais, ao fluxus. Quando todos os seres frios se lançam em direção à Florida. Sobre essa mágica estação, se pudesse, a corvina diria: “o vasto outono é o período mais feliz de todos”. Este é o tempo de férias e diversão, quando, agrupados, os peixes saem de viagem, às ilhas que eles dão a volta, longamente, praias desabitadas para namorarem e depositarem ali os seus ovos. Tempo de amar e ser amado. Soube por uma velha Delta-Larousse que as corvinas são poli-amantes. Cada corvina fêmea ama desesperada e encantadamente, pelo menos, trinta machos ao longo da estação propícia. Agora segurava uma corvina nas mãos, diante da geladeira. Não pude deixar de imaginar se aquela corvina já vivera seu vasto outono. Ela parecia jovem ainda, “tão jovem e possivelmente nunca amara, talvez sequer tivesse ainda planejado a sua primeira migração para as ilhas tropicais, tendo trinta namorados à sua disposição”. Para ela eu balbuciava minhas insônias: “ser ou não ser feliz, corvina?”, evidente que ela queria ser feliz. Foi assim que meu barco aportou outras instâncias. Sabe-se que o tempo dá uma trégua de continuar indo para frente, à rodas dentadas, dele tempo ficar como que aposentado quando estamos mergulhados em cores de nosso interesse. Nesta específica madrugada. Eu com a geladeira aberta e uma corvina morta nas mãos. O tipo de peixe que, mesmo depois de morto, põe em nós um olho sonso. O olho deles é um ponto abotoado que sempre ganha da gente em matéria de hipnotismo. Hoje olhei fixamente para essa corvina pedindo desforra, quis ganhar dela em matéria de olho fixo. Depois peguei uma tigela vazia e coloquei a corvina dentro. Suas barbatanas dorsais e peitorais brilhavam, assim como suas milhares de escamas, em arco-íris. A corvina assim ganhava dignidades. Parecia mesmo um Tutancâmon em suas vestimentas reais de alabastro, ouro e lazúli. Num repente me ponho a lembrar que uma vez tive uma experiência estranha, ao ressuscitar, talvez por acaso, um pequeno peixe jogado na areia. Era um desses baiacus que incham na presença do perigo. Eu salvara o baiacu apenas pela insistência de vê-lo vencer as ondas, cara a cara, segurando-o nas mãos enquanto ele recebia o caldo das ondas na sua cara de peixe. O baiacu logo ganhou vida, saltitou da palma da minha mão para a avenida elétrica de viver novamente. Porque não tentar o mesmo com a corvina? Quem sabe? Se eu ressuscitei um peixe uma vez, poderia tentar novamente. Fiquei olhando a corvina esperando talvez que sua diminuta boca de guilhotina, dentes de navalha em cima e embaixo, me dissesse “sim, vamos tentar esse artifício de beijar ondas para tentar reviver”. Embrulhei a corvina num papel celofane e saí com ela às cinco da manhã em direção à praia. Ninguém na rua, onde caminhava somente eu e a corvina. Chegando perto da rebentação, explosões de energia aquática por todo lado. Coloquei na boca de serrote da corvina um comprimido de AAS infantil. Achava que aquilo poderia ser útil, sabe-se lá! E não perdi mais tempo. Corria com a corvina de onda em onda, deixando sua boca à disposição do que melhor lhe parecesse: “ou ficar trancada para sempre, ou tratar de beber água e depois viver—sim, viver!—e ir se juntar à turminha dela, rumo ao turismo aquático do vasto outono”. A corvina escolheu a segunda opção. Subitamente a corvina tossiu. Bebeu água o bastante para se livrar do AAS, que despontou em babas rosadas pelas suas guelras. Em seguida a corvina bateu intensamente suas barbatanas e zarpou, cortando águas em direção ao fundo. Neste momento percebi que a forte corrente marinha fazia cócegas na sola dos meus pés. O mar comia a areia que meu peso comprimia. O milagre da restituição da vida ocorria novamente. Desta vez voltei para casa feliz de verdade. Em algum lugar neste vasto mar uma corvina nadava firme em direção às praias caribenhas. Estava indo, quem sabe, à procura de seus trinta namorados.


Beto Palaio

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013



archivedotorg

VEM BELEZA EM MIM, FUSTIGAR O QUE É FEIO.

Balões vermelhos, azuis e cor-de-rosa ainda voejavam pelo jardim. A festa da noite anterior estava ali representada de forma alegre e colorida. O vento faz com que alguns balões fiquem enroscados ao alto dos galhos de uma árvore à muito ressequida. Dali eles não sairiam tão facilmente, pois o momento agora era de calmaria e não havia mais vento de espécie alguma. No muro lateral um desfile de cacos de garrafas multicoloridas cimentados no topo para evitar a entrada de ladrões e a bisbilhotice de algum vizinho incauto. No jardinzinho do fundo havia um pardal morto entre folhas secas acumuladas pelo outono propagador do frio que se avizinha. O pardal se mexia, isto era algo impossível de se acreditar, já que estava morto, mas observando bem, o que se movia era a quantidade de vermes que estava corroendo o pássaro por dentro. Aquilo era asqueroso de se ver, mas a aparente mobilidade de algo morto é sempre um atrativo de inevitável apreciação. O branco da cal aparecendo num item da paisagem além-túmulo. O tecelão chamado Tempo se detém diante de uma janela aberta com vista para o aqueduto da Lapa. Dispensadas as formalidades. É dia e é noite. A manhã nos revela um bordado de luxo: como no salão de baile da mais fina gala, a noite estrelada, ciprestes acolá e, além da colina, a vila ainda adormecida. Adalgisa era discreta em sua vontade de conquistar o mundo. Nascera pobre, entretanto. Um homem a descobriu numa seção de cinema em Botafogo. Esse homem a acompanhou discretamente até o apartamento que Adalgisa dividia com uma amiga no Centro, perto da Confeitaria Colombo. Um sebo. Lugar promíscuo que Adalgisa dividia com uma aspirante a vedete do teatro do rebolado na Urca. O homem que sorrateiramente a seguiu ficou na calçada e esperou até que Adalgiza subisse o elevador, entrasse em casa e acendesse a luz. Depois ele, ali da calçada, calculou o andar e a posição do apartamento e subiu até lá, pelas escadas, já que o elevador lhe seria moroso e, evidentemente, desnecessário. Esse homem deveras misterioso bateu então na porta de Adalgisa. “Mas quem será à estas horas?”, ela fica surpresa e assustada que alguém bata à porta do apartamento. Pensou em não abrir. Mas viu pelo olho mágico da porta de entrada que lá fora estava um moço bonito. Curiosa, Adalgisa abriu a porta. Como no cinema onde se contam estórias curtas, porém suficientemente alongadas para o efeito da arte em si. Já haviam passado três meses desde que Adalgisa conhecera Marlúcio de Andrade. Agora ele aprendeu o caminho daquele apartamento. Marlúcio aparece de vez em quando. Traz rosas sempre que pode. Ela escrevera uma de suas visitas em um diário que mantinha na gaveta de seu criado-mudo: “hoje ele me olhou com carinho e apenas suspirou. Depois transferiu seu olhar de minhas mãos diretamente para meus olhos. Abraçou-me como alguém que se despede. Seu perfume de homem adentrou minhas narinas. Ah, como ele já me conhece tão bem! Marlúcio me puxou com carinho. Abraçou delicadamente o meu vestido e o levantou até meus quadris”. Aquele seria, no entanto, o último dia em que se veriam. Acontece que Marlúcio era noivo de uma moça que morava em Copacabana. Adalgisa quis morrer de ciúme. Não era mais a mesma pessoa. Deu de fumar e beber além da conta. Envelheceu com isto. Um ano se passou e ela totalmente imersa em sua paixão por Marlúcio. Então ela comprou uma adaga de corte. Um punhal de fina estampa. Com cabo de madrepérola e corpo do aço mais luzidio. Fez porque fez. Descobriu Marianita, a noiva de Marlúcio, através de uma amiga que morava no Posto Quatro, em Copacabana. Adalgisa largou tudo para ficar de plantão em frente ao apartamento de Marianita. Num dia de vento na praia. Um dia especialmente hábil para encurtar uma estória. Dizem as lendas urbanas. Dessas que se contam entre uma baforada de cigarro e outra. Reporta-se, inclusive, a um vendedor de sorvetes que assistiu tudo. Outros, porém, aumentaram a estória do encontro entre Adalgisa e Marianita. Disseram, porém, sobre quem seria aquela moça. Uma que passa em meio aos carros em movimento. Uma que sobe e desce escadas. A carregar seu punhal de corte. Assim tão descuidada. Em treinamento constante. Como quem ceifasse rosas de um ramo primaveril. Aparentemente. Deixando, entretanto, cair as rosas ao chão, sem se importar com carinhosas colheitas. Numa manhã de Outono. Folhas que se espalham ao vento. Formando um imenso tapete. Num farfalhar de pés apressados. A caça. Ou o que passeia entre dois seres avulsos. Por pouco nem chegou. As estórias da praia de Copacabana se alongam em detalhes. Correram descrições mistas. Uma versão diz que Marianita trazia um revólver ao alcance da mão. E disseram que ela foi mais ligeira que Adalgisa. Umas pessoas diziam que sim. Outras diziam que não. Houve inclusive um casal de namorados. Os dois pombinhos estavam sentados num banco perto do coqueiro verde do Posto Um. Eles se beijavam quando ouviram um tiro. Logo se espantaram ao testemunharem dois corpos caírem juntos na areia. Aquilo constrangia aos passantes. Duas mulheres estavam em agonia. Entretanto. Um tanto abraçadas, como em amor ternamente compartilhado. Uma com um punhal enterrado no peito, a outra com um tiro que lhe atravessou a têmpora. Como entender uma loucura dessas? Ao lado de quem foi à seção de cinema naquele Domingo à tarde. Um senhor de cavanhaque comia pipocas junto com uma moça linda e também barulhenta ao se servir de pipocas. O filme nem tinha graça. O casal que se servia de pipocas nem entendeu. Se naquele filme, a moça que atirou era a vilã, ou se a moça do punhal era a bandida. Pois ambas apareceram muito rápido. E logo saíram da trama da fita.


Beto Palaio

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013




DARUNE E O CADASTRO DE ENDEREÇAMENTO POÉTICO.

I. Além disto. É um livro sobre poesia brasileira editado vinte anos antes. Além disto. Apresentava lanhos e marcas e incisões de procedências incertas. Além disto. Com laterais repletas de rasuras e cortes, acrescidas de algumas páginas amarelecidas pelo tempo. Além disto. Uma mancha horrorosa, algo escuro e informe, feita de café ou sangue ou urina, adornava assustadoramente o corpo do livro. II. Darune era o dono do livro. Por mais que se esforce, ele não lembra de ter deixado café ou sangue ou urina manchar assim, de forma alcantilada, aquele estimado livro. “Acredito que um poema deva agir como uma mancha num brim especialmente encomendado para uma festa de noivado, mas essa mancha num livro da própria poesia é contundente demais”, Darune filosofa sobre algo deveras inverossímil, à imaginar algum incauto que lhe pedisse emprestado aquele livro unicamente para manchá-lo de café ou sangue ou urina. III. Darune se digladiava, eventualmente, réu confesso, contra o fosso da ausência de poesia em seus escritos recentes. Sabedor de que um copo vazio está cheio de ar, ele se comportava, no entanto, como um otimista. Acreditava na poesia vinda das ruas—bocas de lobas gritando através de bocas de lobos—assim como era crédulo de que a novíssima poesia brasileira nasceria a partir do fervilhante bairro da Lapa. Lá, no vis-à-vis, Darune vistoriava pessoalmente o acervo lapiano que despejava epopéias no cotidiano carioca: as escadarias ladrilhadas, o esparramado aqueduto, as estreitas ruas, os grafites, o casario centenário, o ar soteropolitano da Lapa. IV. Na verdade Darune ia mais longe: imaginava a Lapa como célula máter e, no entorno, um absoluto porvir da cidade do Rio de Janeiro se transformar no centro mundial da poesia. Eis que, para ele, a Lapa era uma rainha entronada no solo palaciano do Rio, pátria das letras, centro mundial da rima, ventura de almas plácidas, palco de figuras mofinas, meladas, burguesas, comportadas, saradas, arteiras e, até, as eventualmente degradadas, fudidas, degringoladas, infames e bêbadas. V. Eis o adocicado e rude porvir da poesia imberbe, a surgir, quem sabe, das notações avulsas de um mendigo qualquer, anfitrião que fosse, meirinho do alegre juízo, na bendita Lapa. “Um novo Rimbaud pode estar, neste exato momento, ali na esquina catando latas”, isso disse Darune para um moreno sorridente que tinha por profissão ser fiscal da Prefeitura, e que aportou num dos diversos bares da Lapa para poder se espraiar no absinto da cerveja e no borogodó do samba. “É bom falar com alguém da Prefeitura”, disse o Darune para Dirceuzinho da Marília, o nome do moreno que é um fiscal da municipalidade, portador de ofício e carteirinha. “É bom falar contigo, pois eu tenho um projeto poético e porreta para esta nossa cidade”, continuou Darune, “veja bem, a intenção é a de revolucionar essa pasmaceira, ao injetar a febril poesia no cotidiano de uma cidade inteira”. VI. Eis que ele descrevia sua aspiração sem quase dar espaço para controvérsias. É um Darune determinado e contundente que continua a expor seus planos para Dirceuzinho da Marília: “com essa iniciativa pioneira, todas as ruas do Rio de Janeiro serão rebatizadas”, isto Darune concluiu, no arremate do “senão vejamos”, já dando exemplos versáteis, para o troca-troca, com pretensos e poetizados nomes: Rua da Pedra no Meio do Caminho, Rua do Sol na Banca de Revista, Praça do Losango Cáqui, Rua do Cão sem Plumas, Rua do Porquinho da Índia, Praça do Toque de Cetim, Rua do Afogado da Lagoa Rodrigo de Freitas, Avenida dos Pés Descalços, Praça dos Meninos Carvoeiros, Rua dos Degolados da Nuca Nua, Praça do Cancioneiro Martelado, Rua Nossa Senhora da Ternura, Travessa do Impossível Carinho, Avenida da Lua de Março, Rua das Lágrimas de Colombina, Travessa Silêncio do Amante, Rua do Xixi Angelical, Praça da Única Rosa...”, e assim Darune desfolhou uma quantidade enorme de nomes fantasiosos os quais sugeria serem trocados pelos atuais nomes impessoais, em gênero e grau, que povoam as placas de logradouros públicos no Rio de Janeiro. VII. Logo após, ainda atônito, mas com o fôlego do falar retomado, Dirceuzinho da Marília sugere que o projeto de Darune seja apresentado por escrito: “o Prefeito detesta projetos que não estejam grafados em papel vegetal e resguardados em envelope de fina lavratura”. Darune promete concluir e entregar o projeto. Em seguida ele propõe uma confraternização, com direito ao birinaite da saideira, ao Dirceuzinho da Marília. VIII. Na claquete do festejo, eis o marcante brinde, estilo osquindô-lê-lê, acompanhado com a abertura da “penúltima” garrafa de cerveja: “pela Lapa da poesia!”, comemorou Darune, “pela poesia da Lapa!”, festejou Dirceuzinho da Marília.

Beto Palaio

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013




MALINA

Há na distância um lenitivo brusco e aceito, barcos que não chegam, velas que buscam um vento que não há, vapores que passam apressados, marinheiros acovardados e preguiçosos, calor em demasia no porto do Rio de Janeiro. Malina levanta-se e coloca as mãos, ambas, às costas, queixa-se dos rins, tem uma salobra na boca, dormira mal, queixa-se à janela trancada à tramelas. Um marcar de passos até a torneira da cozinha, seu copo de latão, úmido ainda desde a última vez que tomou água, sua solidão escrita em objetos únicos, uma faca, um garfo, um prato. Seu homem marinheiro foi para o passeio, como ela chama, ou para a luta de mares, portos ocasionais e tropas rebeladas. Ele lhe descrevia o trivial de um navio como sendo uma tortura. Para Malina apenas cabia sonhar com uma vida aventureira e, de certo modo, proibitiva.

Sábado, 1 de janeiro. Malina escreveu três cartas que jamais seriam enviadas, em estilo floreado, equilibrado em cada vocábulo, com verbos escolhidos, advérbios raros, adjetivos concisos e substantivos em profusão. Malina colocou ainda nessas cartas, em números bem feitos, o volume de contas que estavam acumulando e que nunca foram pagas. O tempo lá fora está de moderado à seco. Malina foi até o quintal dos fundos e soltou sua única galinha para ciscar na areia suja. E nada mais para o primeiro dia do ano.  Segunda-feira, 3 janeiro. O tempo ameaçou de mudar hoje. Uma tempestade se formou ao longo da linha do mar. Malina esteve atarefada indo até o porto. Chegou cansada e foi direto para a cama. Quando acordou já era noite. Ela resolveu não levantar. Ficou pensando no cais e toda agitação que viu por ali. Quinta-feira, 13 de janeiro. Malina escreveu mais algumas cartas. Numa delas pedia fotografias para seu namorado Paulo Serrado, o marinheiro. Depois cobriu-se de um manto cor de terra, retirou do armário da sala um velho lampião à querosene que herdara de sua mãe. Passou grande parte da noite de 13 para 14 de janeiro abraçada ao lampião, no escuro, lembrando-se dos detalhes de sua vida quando morava com sua mãe. Terça-feira, 25 de janeiro. Foi um dia leve e agradável. Malina estava radiante de alegria. Notou que um pé de alface apodrecera na pia. Nem se importou com o vegetal em decomposição. Tomou daquele monturo fétido e jogou para a galinha que ciscava no quintalzinho dos fundos. Ali haviam alguns itens já enferrujados, muita palha de gramas secas, uma roda de carroça semi-enterrada na areia. Um jardinzinho deveras abandonado. Quarta-feira, 26 de janeiro. Um dia chuvisquento. Malina separou velhas fotos e alguns cartões postais. Numa das fotos amarelecidas haviam duas jovens da escola local. Reconhecia-se Malina abraçada com uma colega. Malina apenas balbuciou “coitada”, não sabendo se falou aquilo para a colega ou se para ela mesma. Quinta-feira, 27 janeiro. Malina não quis se levantar neste dia. Resolveu ficar na cama e relembrar quando dormiu, neste mesmo travesseiro, com Paulo Serrado. O dia lá fora estava lindo. Isso adivinhava Malina, observando a quantidade de luz que entrava pelas frestas da veneziana e também pelos muitos cantos de pássaros  a festejarem a vida.

Dentro de casa um lenitivo brusco e aceito, novidades que não chegam, roupas dependuradas que buscam um vento que não há, sentimentos covardes e preguiçosos, calor em demasia neste bairro do Rio de Janeiro. Malina levanta-se e coloca as mãos, ambas, no rosto, queixa-se de dor nos olhos, tem marcas de quem chorou muito, mas ela dormira bem, apesar disto, Malina queixa-se com a porta da frente aberta para uma rua vazia. Com um olhar sem pressa repassou as velhas casas da vizinhança, sua solidão acompanhada por rudimentos únicos, beirais de telhados, muros que ladeiam quintais arborizados, janelas fechadas da casa vizinha, postes que carregam um excesso de fios, um trecho de azul do céu muito limpo. Seu namorado Paulo Serrado uniu-se com uma tropa de guerra e foi para o mar. Depois ele iria para um lugar qualquer da Itália lutar contra os alemães. Ele esteve com Malina durante a noite passada. Paulo Serrado não estava otimista de sua missão. Descrevia o trivial de um navio de guerra como sendo uma tortura. Malina apenas se resignava em sonhar e esperar. Um longo esperar.


Beto Palaio 



Pintura: J. W. Waterhouse

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013




A ARTE DE PARAFUSAR COGUMELOS NO CHÃO ÚMIDO DA FLORESTA.

Fica esperto. O pedido já seguiu por fax. Vou ficar até mais tarde. Acho que perdemos dinheiro com as ações da Petrobrás. Podes crer que o mundo vai acabar na segunda-feira. Mas eu avisei antes, se for para aplicar na Bolsa procure uma corretora de valores. Pode falar sua idéia, fique tranqüilo aqui todo mundo é honesto. Se quiser café tem uma garrafa térmica ali atrás. Cabeças vão rolar, hoje tem reunião da diretoria. Veja se tem isso no almoxarifado. Marque um horário com a secretária. Amigos sim, mas os negócios são à parte. Possivelmente alguém vai assumir o controle geral por aqui. O cara é um poeta, não combina com esse trabalho. É dinheiro na mesa, não tem papo-furado. Se ela aceitar ficar até depois do expediente é porque quer transar comigo. Pode tirar a nota fiscal, pois o pedido já é nosso. O chefe está viajando e só volta na semana que vem. Espere lá fora. Veja se tem papel sulfite na bandeja. Aqui quem manda é o dinheiro. As pequenas oportunidades escondem grandes negócios. Um bom começo de negociações já é metade do empreendimento. Feche a porta e espere eu terminar essa ligação. Esse cara é pé-frio, não revele seus negócios perto dele. O caminhão de mudanças chega na Terça, vamos carregar primeiro os computadores. Sem um entendimento prévio não há negócio. Pode começar a obra, depois a gente se vira com a prefeitura. Nem sempre podemos entregar o que se promete, isso é parte de qualquer negócio. Todos os sistemas têm de estar interligados, mande chamar urgente o técnico de informática. Quanto mais bater nessa tecla é pior. Pode passar no banco que o cheque tem fundo. Compre na baixa e venda na alta, esse é o segredo. Sim, pode comprar essa mata nativa, o verde também é negócio. Nem precisa comprar terra, é só invadir a Amazônia e pronto. Depois da terra ocupada é só montar tocaia com jagunço. Quem se aproximar leva chumbo. Estamos vendendo as outras fazendas a preço de banana. Praticamente estamos doando as fazendas para um fundo de caridade. As árvores centenárias serão poupadas. Tem uma equipe que corta as árvores, outra que limpa os troncos, e outra que entrega as toras para exportação no Pará. Pode deixar como está, não temos pressa em plantar eucalipto. Cogumelo não dá lucro, isso é besteira. Só entramos numa floresta até a metade, depois disso estamos saindo. Há tanta umidade por aqui que os cogumelos tomaram conta de tudo. Meu avô falava que cogumelo é praga que dá azar. Quem gosta de cogumelo só pode ser ruim da cabeça. Para plantar o cogumelo é preciso respeitar o chão da floresta: quanto menos mexer, melhor. O cogumelo cresce, pode deixar, em cinqüenta anos o cogumelo cresce de novo. Dizem que o cogumelo é um cérebro em miniatura. Será que a floresta pensa através desses cerebrozinhos atôas?


Beto Palaio

sábado, 9 de fevereiro de 2013


Foto: Corra,Corra aproveite em quanto ainda tem suas pernas!!

~thamy

ELDIKA DECIDE VIVER.


“sei lá se fornicação é pecado”, isto disse Eldika, uma mão no volante de seu Fiat Premium e outra no câmbio, justamente passando da quarta para a quinta marcha. “há tantas regras para tão pouca alegria”, ela está neste  jogo desde que saiu de casa: colocava as questões que respondia para si mesma. Eldika concordou em ir até a casa de seu ex-marido naquele dia. apesar da separação eles continuaram amigos, inclusive é para ela que Elluardo pede ajuda no caso de uma emergência qualquer. “ele continua morando sozinho, mas é o rei da masturbação”, Eldika fala isso sarcasticamente, sorrindo, imaginando Elluardo tendo de fechar os olhos e pensar nela enquanto se entretém no velho jogo do auto-entretenimento, “bem feito, quem deu motivos para ficar só foi ele mesmo... esse cabeça dura!”, Eldika também se culpa um pouquinho pela separação. ela agora tem pressa. e se arrepende de ter saído tão cedo para pegar esta estrada na montanha. onde. ela sente uma pontada de náuseas, ao meio das muitas curvas, ali tudo lhe parece tão igual. “uma fábrica de nuvens”, isto Eldika pensava que eram as montanhas e as serras distantes de sua infância. em meio à neblina ela dirige com pressa. pisando fundo no acelerador. tudo para chegar mais rápido. Elluardo não era seu inimigo, muito pelo contrário. ele era mais amigo dela do que qualquer outra pessoa. mas quem era ele? moravam na mesma cidade. ele era o filho do alfaiate mais famoso da região. Eldika se lembra dele também jovem, quando ainda nem eram namorados nem nada. Elluardo era magro e desengonçado. “um cara até, eu acho, um tanto feio”, ela sempre achou que Elluardo fosse uma pessoa com algo de desabitado dentro dele: “ele conversa tão pouco”. mas era um filho sensível. tanto que. quando seu pai morreu. Elluardo fez questão de colocar um poema na vitrine da alfaiataria: “quem era este ser? a quem todos os dias eu mantinha. um secreto ódio, uma mal-nutrida porfia?”. sob este poema Elluardo fez questão de enlaçar umas rosas muito negras, no entanto luzidias, as quais ficaram lá até secarem e desmancharem aos poucos. Eldika lhe falou à poucas horas. que sentia sua voz muito rouca e distante. “precisa de alguma ajuda, Elluardo?”, ele não respondeu à sua oferta. o fone ficou intermitentemente mudo. Eldika retirou seu carro da garagem e resoluta tomou a estrada. agora tudo ao redor da rodovia estava estranhamente azul. dava medo. mas era de um azul tão lindo. tudo se passava como se ela estivesse no fundo de um lago. onde a paisagem inteira se afogasse. impressionada Eldika força o acelerador ao máximo. por certo a estrada fica do lado de fora desta lagoa azul. tudo indica que sim. há um traçado que se apresenta de soslaio. além da mata fechada. galhos intrincados unidos. grudados em tom sobre tom de cinzas esmaecidos. imagens que correm sem parar. em ambos os lados para onde quer que Eldika dirija o seu carro. no meio de sua jornada, assim sem mais nem menos, Eldika passa a conhecer outras pessoas. são pessoas cujos nomes lhe eram bastante conhecidos. naqueles labirínticos corredores adornados por tapetes vermelhos, bastava ela bater de leve, numa porta qualquer, e um artista famoso vinha rapidamente abrir. personalidades que ela conhecia desde criança, um palhaço televisivo que ela julgava morto há mais de vinte anos, um poeta que lhe sorria, uma artista de cinema que lhe oferecia o chá da tarde. tudo isto no pano de fundo das mil e uma noites. como num passe de mágica. as pessoas notáveis se apresentavam à cada porta que se abria naquele inverossímil hotel. lá fora. entretanto. a paisagem tinha uma cor azulada muito estranha e, com todos os seres fantasmagóricos agora agrupados ao longo da rodovia, Eldika pisou no freio violentamente. para perder o controle. onde ruído de ferros retorcidos guinchavam terrivelmente. depois silêncio. um feixe estranho de luz, um miasma medonho, era para ela de nenhuma utilidade, apenas uma tonalidade estranha. ela tinha visto essa tonalidade antes, e tinha medo só de pensar o que poderia significar. momentos antes. Eldika havia visto seu próprio glóbulo ocular. uma visão surgida no espelho do carro, tudo era desagradável e frágil, mas uma dúzia de verões atrás ela foi feliz, tinha sido amada por Elluardo sobre o gramado do parque, conhecera o louco do seu marido na primavera, e mantinha o pensamento grácil sobre isto, ela tinha visto isso por um instante apenas, antes que o carro rodopiasse na estrada escorregadia, lembrou-se de sua avó, sua imagem quase esvaecida, como uma feiticeira vestindo negro, quando muitas manhãs lhe eram grátis, Eldika olhando para fora, o pequeno jardim, a correição da manhã contra a pequena janela gradeada daquele porão terrível, onde coisas sem nome, as que tinha acontecido para sua avó, ficavam estocadas. Eldika tinha na mão um crucifixo, detestava pensar que iria rezar, aquilo brilhou por um segundo, uma corrente úmida finalizada por uma imagem de marfim. ela gritou. ao redor do carro acidentado, a luz de vapor de sódio da rodovia, neblinas, passou por ela, como um arroto de cor que desmaia, um pálido raio incidia, certamente era a imaginação de Eldika que agia sem controle. uma fantasia mórbida e nada mais. quando o crepúsculo chegou ela vagamente desejou que algumas nuvens saíssem da frente do sol. tudo estava tão frio. Eldika tinha se arrastado para tentar voltar para a estrada. nada lhe obedecia. nem os passos que ouviu seguiam em sua direção. naquela paisagem gelada. tudo conspirava contra ela. no entanto. Eldika decidiu viver. ela viveria sim. e está decidido, e pronto! o fato é que. Eldika voltou. apenas por este motivo. será que a vimos de fato? no pórtico, ontem à noite, fugazmente? há algo irrecuperável, sobretudo. nas tintas novas. nem a velha casa é mais a mesma. mas a quem ela deveria procurar? Eldika decide viver. apenas por esse motivo. ela voltou.


Beto Palaio



Foto: MY Immortal

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013


 Volkswagen VW Hippie Flower Van Art Print Poster

PRECISA-SE...

PRECISA-SE DE ALGUÉM. Fazioli colocou esse anúncio no vidro traseiro de sua kombi. Embora não chamasse a atenção desse alguém que tanto procurava, nunca desanimou.  O PÃO NO FORNO. Um lembrete do dia que amanhece e perfuma a rua lateral da padaria. Fazioli estacionou sua kombi por ali enquanto se dirigia à porta principal para tomar café acompanhado de um pãozinho com manteiga.  MÚSICA AO LONGE. Ao piano o plim-plim de um pica-pau pimpão, um dejavú a mais para martelar cadências que permitam alcançar as larvas do besouro música. O momento apoteótico ardia em óleo de ferver violoncelos, marimbas, pianos, violinos e clarinetas. A QUEM INTERESSAR POSSA. Tchaikovsky tocava numa estação de rádio qualquer. Naquele momento o mundo parou para se espremer e passar pelo buraco de uma agulha. Fazioli era apenas uma criança e brincava no seu campinho de grama preferido. O som da Quinta Sinfonia de Tchaikovsky nunca mais deixaria de tocar na cabeça dele. NOCAUTE PELA ARTE. Assim como Julio Cortázar imagina que um conto é um texto que corre em poucas linhas e em alta narrativa capaz de nocautear o leitor pela energia altamente concentrada que possui, assim também acontece com a sinfonia de Tchaikovsky que faz com que o menino Fazioli imagine daquela música como sendo algo sagrado, um tipo de oração. TECLAS PARA LÁ, TECLAS PARA CÁ. Crescer não é necessariamente progredir. O progresso pressupõe fatores hereditários em uma nação que prestigia seu cidadão com chusmas de acenos lucrativos. Fazioli apenas cresceu, jamais progrediu. Esteve trabalhando como empregado em diversas empresas. Trabalhou na Steinway como separador de teclas de piano negras que eram enviadas a cada minuto para o setor de teclas brancas. Trabalhou na Fritz Dobbert como separador das teclas de piano brancas que eram enviadas a cada minuto para o setor de teclas negras. Trabalhou, finalmente, na Essenfelder onde sua tarefa era juntar as teclas negras e brancas para a manufatura de teclados completos para pianos. UMA KOMBI HIPPIE. Eis que Fazioli deixou de trabalhar para os fabricantes de piano. Ele andou um tempo de banda em banda: ia para a banda de lá, voltava para a banda de cá. Até que assumiu que os anos eram sessenta e ele tinha vinte anos de idade, algo mais que suficiente para ele comprar uma kombi e virar hippie. Os dias de folguedo e curtição estavam chegados. Manhãs de sol filtravam suas músicasdele e da brisaao agora gentil oceano e suas incansáveis marolas. Uma tarde, defronte da Candelária, ele apostou com Antenor Pastinha, um professor aposentado da UFRJ, de que ele, Fazioli, poderia passar um mês sem comer e ainda levantar dinheiro com isto. Depois ele iria atravessar a Cordilheira, rumo ao Chile, e moraria na kombi pelo resto de sua vida. O ARTISTA DA FOME. Isso ele aprendeu com K. um cidadão anônimo que ele conheceu lendo O Castelo. Passou fome por um mês inteiro. Ficou verde de fome. Depois se acostumou e se tornou um faquir. Deitou em cama de pregos, montou num burro brabo, comprou ações da Petrobras e, finalmente, com dinheiro bastante para milhares de cafezinhos acompanhados de pão com manteiga, ele rumou para a Cordilheira dos Andes. O DIABO NO MEIO DO REDEMOINHO. Fazioli foi para o Chile, mas não sem antes se despedir de Antenor Pastinha. O velho amigo Antenor, cabelo ralo e branco sobrando pelas abas do eterno chapéu de feltro, sabia tudo de vida encalacrada, sendo uma pessoa ajuizada, casada, alocada e carimbada. Antenor fez votos de que Fazioli deixasse de ser faquir e voltasse a ser o garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Mas veio um vento mais forte e levou embora a papelada que Antenor Pastinha carregava em sua pasta de couro negro. Antenor, o ex-professor da UFRJ, correu atrás da papelada e nem viu que no meio do imenso redemoinho que se formou na praça, um moço cabeludo entrara na kombi e zarpava para um outro espaço-tempo, rumo Cordilheira dos Andes. VARRE VARRE VASSOURINHA. Uma arrogância dura três anos. Um cão sobrevive a três arrogâncias. Um cavalo sobrevive a três cães. Uma pessoa sobrevive a três cavalos. Um tubarão sobrevive a três pessoas. Um ganso selvagem sobrevive a três tubarões. Um corvo sobrevive a três gansos selvagens. Um cervo sobrevive a três corvos. Uma pulga sobrevive a três cervos. Uma Fênix sobrevive a três pulgas. FILOSOFIA DA MONTANHA EM PÉ. O tempo é o passado somado ao presente, acrescido de um futuro apenas imaginado. O tempo para Fazioli não passava de jeito nenhum. De manhã à tarde o dia era sempre o mesmo. Até o ponto da exaustão. Quando um aldeão da fazenda de criação de chinchila que Fazioli comprou no norte da Argentina—sim, porque ele jamais atravessaria os Andes—esse aldeão lhe chamou atenção para uma questão crucial: uma montanha nasce de pé ou deitada? Parece incrível! Isso deixou Fazioli tão encucado que ele resolveu abandonar a vida campesina na Argentina—ao retirar sua velha kombi do galpão de feno—e voltar para o Brasil: “afinal, nasce ou não nasce em pé uma montanha?”. PRECISA-SE DE ALGUÉM. Fazioli colocou esse anúncio no vidro traseiro de sua kombi. Embora não chamasse a atenção desse alguém que tanto procurava, nunca desanimou....


Beto Palaio

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013



ADELÍCIA E O BEZERRO DE DUAS CABEÇAS


Adelícia. Uma das oito meninas. Ela teve uma vertigem. Segurou forte na mão de Linderléia. Em direção ao que surge. Uma conta de sinas ajuntadas. Fortunas catarinas, joaninas, luzianinas, dinheiro miúdo no pote, ou o pote vazio, ou pote nenhum. De barro. Quando se está descendo à cova. Um espaço por demais conhecido. Morta. Na idéia que tinha do pátio. Adelícia não faltava em nenhuma aula. Ia à pé. Naquele dia. Depois se detém. Diante da filmagem de um sol causticante. Queimando o filme da terra árida. Nenhuma cerca. Nenhuma jaula. Nenhuma porteira. Desde a estação do trem na cidadezinha, até a casa da avó Cândida. Essa sua avó que ficara doente. Coisa grave, claro. Por isto Adelícia deu-se ao trabalho. De tomar um lugar no trem que vinha para o sertão. Nem tanto como esposa. Mãe de filhos. Mas vindo como neta de Dona Cândida. Foi naquele lugar pobre. Numa nona sinfonia improvável. Som nenhum. Desafio para um músico surdo. A natureza silente do lugar. Só os grilos. Mas estes tinham um canto certo. O cricrilar monótono das noites quentes. Nesta visita Adelícia veio para velar por sua avó doente. Quando aproveitou para rever sua irmã Linderléia. Ela, Adelícia, já com quarenta e três anos de idade. Nunca mais as vira. Fazia já trinta anos que Adelícia havia ido embora. Agora como os pés se afundando na areia avermelhada. Chegando à velha casa de fazenda. Onde tudo retorna à infância. Aquele lugar. Enquanto isto. Ouvira vozes. Papagaios a matraquear, é o que parecia. A fala de quatro velhos sem pressa. Vinham pelo caminho do sítio. Cada um montado em sua própria bicicleta. Embora pedalassem sem ânimo. Portanto. Ao vê-la. Disseram quase ao mesmo tempo de onde vinham. E também para onde iam. Falaram que Dona Cândida pedira para eles cuidarem da papelada do enterro lá dela mesma. Por isso iam. Em direção ao tabelião que cuida do cemitério da comunidade. E o sol da manhã já ia alto. E disseram outros roteiros, determinados. Principalmente disseram à Adelícia que estiveram falando em separado, cada um dos velhos, com a avó Dona Cândida. “Ela é muito esperta. Passou o mesmo recado para cada um de nós. Assim não tem chance de haver erro na tarefa”. Eles pararam quando viram Adelícia vindo à pé. Sorriram para ela. Ponderaram sobre o estado de saúde de Dona Cândida. Mas não disseram mais nada sobre a tarefa de que estavam incumbidos. No entanto davam vaza a outras prosas. “Vossa avó vai escapar dessa. Está para nascer a doença que vai matar Dona Cândida”, isto disse um dos velhos, com um toco de cigarro nos lábios, quase em risco de se queimar. Adelícia ouve esta última frase e quer correr mais rápido ainda para ver a avó. Ela tem receio de que os homens lhe escondam algo. Reflete que o caso de saúde de sua avó Cândida talvez não seja algo passageiro. As muitas cartas que trocara com ela e com sua irmã Linderléia. Todos os roteiros do sítio eram repassados em letras guardadas. Mais de uma centena de cartas que ela guardava. Nessas letras escritas à caneta Bic. São madrugadas dentro dessa outra menina que morava dentro dela. O fruto que nunca amadurece é isto que se guarda para sempre com o gosto do sumo de cantos de galos, perfume da mata, cheiro de terra revolvida, murmurar de riachos, capins repletos de orvalho, abraço de tias cheirando sabonetes, presença de homens suados no alpendre, tudo ela lembra, entre tantos, a partir disto, em fim, esses e tantos outros cheiros identificáveis. Foi sua história pregressa, antes de ir para a cidade. Detalhes em desfile. A velha moringa de barro ao lado da imagem de São Francisco de Assis. O café de coador. Foi-se o tempo de guardar saudades. Agora Adelícia iria rever seu pedacinho de terra. Quando muito longe. Ainda morando no Rio de Janeiro. Seus próprios dois filhos na escola. O marido funcionário da Light. Sentada em seu quarto em Botafogo. Lembrava ali da cartomante que visitara uma semana antes. Quando aquela mulher recolhera os búzios que foram espalhados sobre um veludo surrado. “Qual saber! Tive muita cautela”. A mulher falando coisas pequenas. Injúrias, invejas, maledicências, motes, fingimentos e traições. Disse que seu marido cumpria a cama do bem bom com outra. Disse que seu futuro estaria perto. Disse que ela se tornaria uma ave de arribação. Disse que ela iria embora de vez. Disse que um dia ela teria duas cabeças. Mas qual o que? Como acreditar em disparates assim? Ela tão certinha em seu rondó. Tão mãe de família. Nem que acreditasse naquelas cascas de caramujo sendo traduzidas num propósito tão avassalador. Adelícia estava olhando fixamente a toalha de mesa xadrez. Não podia confiar que seu marido a traísse. Ele era tão bobão. Ela duvidava disto. Mas da viagem ela tinha certeza. Isto aconteceu para firmar compromisso. Pois duas semanas se passaram e chegou até ela uma carta suja de terra. Isto a trouxe para o sertão de Dona Cândida. Que agora a mirava por trás de uns óculos de miopia avançada. Sua avó tomou suas mãos e lhe segredou algo. Depois chegou a sua irmã Linderléia, uma meio-boba, que nunca saíra do sítio. Ela e a irmã se desdobravam pela avó. Dia a dia. A Dona Cândida ora confabulava com uma, a Linderléia. Ora confabulava com outra, a Adelícia. Passada uma semana, se tanto, e Dona Cândida morreu. Os povos dos gerais souberam e vieram todos. O cavalo de um visitante ficou amarrado no vão do cercado. Um pequeno ajuntamento cresceu no portão. Um distinto homem magro chorava. Uma mulher gorda lastimava. Um moço de alpargatas novas sorria seu dente de ouro. Um menino de tez morena brincava no quintal cheio de galinhas e pintos. Mas aquela casa ficou vazia no dia seguinte. Passou-se uma semana e nada aconteceu por ali. Passam seis meses e ainda nada havia acontecido. Passado um ano, entretanto, uma vaca parideira chorou muito na madrugada. Uns peões vieram assistir ao parto. Pela manhã, a novidade. Nascera ali um bezerro de duas cabeças. Todos gritaram de surpresa. Até o jornalzinho da cidade vizinha estampou lá: “Nasce um bezerro de duas cabeças no sítio de Dona Cândida”. Adelícia e Linderléia finalmente revelaram, uma para a outra, o segredo que Dona Cândida lhes confiara naqueles seus últimos dias: “O sitio será o arrimo de vocês duas. Estejam juntas como se fossem um bezerro de duas cabeças”. E assim foi. E assim ficaram.


Beto Palaio

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013




BANGU CONEXÃO ACAPULCO

Lábios que beijei. Mãos que afaguei. Numa noite de luar assim. Onde parecia tocar uma flauta indizível, marcando os passos daquela alma traída. O mar era de ressaca. Os vagalhões gostariam mesmo é de arrancar a amurada ao longo da praia. Os sentimentos de Vargas eram os mesmos. Pudesse se quisesse, quisesse se pudesse. Ele se jogaria ao meio daquele inferno aquático. “Morro por meu amor”, pensou ele se postando bem perto do arremesso último da arrebentação. Os respingos de água salgada agora lhe brindavam a roupa ensopada. O mar lambia já o calçadão sob seus pés. Para o horror geral da cidade. Porém, Vargas nem se importou quando a primeira onda avançou sobre a Avenida Atlântica. Tenteando. Ele desequilibrou-se e caiu. Em seguida o mar o puxou para si. O ruído dos estrondos era infernal. O certo é que Vargas se afogaria em meio à impossibilidade de sair, por si só, daquela sopa oceânica. Socorro para ele não haveria. Sua mulher deixara um bilhete colado com durex no espelho da penteadeira e um beijo de batom ao lado do bilhete. Ela estava indo embora para morar com outro homem. O bilhete era sucinto. Vargas não tinha mais o que fazer para salvar seu casamento. No meio-fio do calçadão juntou gente para ver o afogamento de Vargas em sua luta de morte contra as temíveis ondas. Ninguém esperava que Vargas sobrevivesse em meio a milhares de baixas que se tem notícia em situações semelhantes. Vargas, no entanto, milagrosamente, fora resgatado. Apenas 48 horas depois de dar entrada no hospital de base do exército—pois Vargas era tenente de comando no Rio de Janeiro—uma equipe cirúrgica de emergência ainda estava velando por ele ao lado da mesa de operação. Ocorre que, por ser Carnaval, o quadro médico oficial estava de licença e Vargas fora atendido por longínquos aspirantes ao cargo: soldados rasos que se desdobravam por ali como aplicados enfermeiros, mas que possuíam larga experiência em acompanhar o capitão-médico, ausente do plantão naquele momento. O pessoal da equipe de emergência usava roupas especiais e portavam máscaras cirúrgicas. A sala de cirurgia era básica, mas contava com um bom equipamento e boa iluminação. Contudo a esterilização não era perfeita, e o anestesista tinha menos experiência do que a exigida nos casos em que Vargas se encontrava. Eis que, novamente, Vargas enfrentava a morte, desta vez sendo assistido por enfermeiros capazes, mas que não tinham em conta o adverso de situações como aquela. Crê-se desde Diderot que a história da raça humana é uma história de erros. Alguns estudiosos acreditam que o fato de cometermos erros é o que decididamente nos torna humanos. Os erros já tiveram seu momento dúbio na sociedade, quando antigos filósofos os tinham como testemunho de imperfeições na alma humana. No entanto, para Vargas, um simples erro bastaria para que ele perdesse sua vida. Eis que Vargas acorda depois de uma semana e tem ao seu lado uma mulher lindíssima que aos poucos, na medida em que acordava, Vargas notou ser a sua própria mulher. Houve um tempo na vida do casal em que Vargas considerava a mulher, no geral, como sendo um ser inferior. Ele fora criado em Bangu por uma tia preconceituosa que vira seu namoro com Violante como algo inadmissível: “como é que um imbecil como você não consegue namorar uma moça de respeito... Uma moça de família?”. Violante de Sá, no entanto, apesar de seu passado nebuloso, jamais vira a companhia de homens libertinos como algo pecaminoso, e era bastante sonhadora e imaginativa ao preterir seu possível casamento com Vargas como uma forma de se estabelecer na sociedade carioca, onde passariam a morar, inclusive, no bairro nobre da Tijuca. Para sermos precisos a situação social de Violante de Sá não tinha precedentes seguros nem na Bíblia onde se afirma que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e nele moldou seu espírito, enquanto a mulher não receberia alma por ter sido apenas concebida de uma das costelas de Adão, portanto sendo-lhe submissa hierarquicamente. No entanto foi de forma submissa que Vargas acordou de seu estado crítico de saúde pós-operatório. “Se sair dessa, Violante, te levo para passear no México... Levo-te para a terra do bolero e do maxixe”. Violante sorria enquanto fumava um cigarro, apesar da proibição de se fumar dentro daquele quarto hospitalar. Ocorre que Vargas nem ligou para a fumaça de cigarro ser jogada por ela, de propósito, no seu rosto de convalescente: “ah... Que saudade do cheiro de seu cigarro!”. Violante não perdeu as medidas: “só do cheiro do cigarro?... Aposto que você tem saudade de outras coisas também!”. Claro que Vargas tinha a sua mulher em alta conta. Inclusive, como um derradeiro suicida, ele sentira falta dela. Agora, para retornar à paz do seu casamento, ele enfrentaria tudo para sua efetiva recuperação pós-operatória: “Violante, meu bem, se você voltar tudo vai ser diferente”. Claro que Violante voltou para Vargas, nem tanto pelo motivo de que o homem que escolhera para fugir daquele casamento era apenas um doidivanas que cheirava cocaína e lhe dava uma surra toda vez que faziam sexo. Nem tanto por isso. Acontece que Violante de Sá voltou para Vargas apenas para provar a si própria que era uma mulher de fibra e de valor: “vamos sim, para o México... Estou doida para tomar tequila diretamente da garrafa... Vi um filme com o Márlon Brando, em Acapulco, tomando tequila diretamente da garrafa... Nós vamos para Acapulco, não é meu amorzinho?”...


Beto Palaio