segunda-feira, 31 de outubro de 2011

nina3.jpg

VOCÊ PEDRA


Em tudo o fado promete

Pedras que te compõe

Músicas de nascimento

Morte, lume e lamento

Fatal desconhecimento

Silencia os fios sepulcrais

Ao longe a pedra te canta

Que és pedra em ultravida

Alento de cinzas ao acaso

Tudo pelo caminho mineral

A pedra, festa, dentro de ti

Você, festa, dentro da pedra.


(Beto Palaio)


Arte:Auto-retrato de Jimmi Durham como uma pedra.

domingo, 30 de outubro de 2011


Gustav Vigeland

LADY MADONNA

Necas de pitibiribas. Não aconteceu nadinha quando as crianças pediram por mais sopa. Uma historinha para começar e finalizar assim. Crianças pedindo e a chefe da sopa na assistência social negando.

- Nada de repetir o prato de sopa...

Somos. A raça humana sem desistir de multiplicar-se. A sábia mãe galinha ao acomodar suas crias sob suas asas quentinhas. Lady Madonna gastava horas com as crianças sem teto. Doava-lhes os próprios pés como travesseiro, assim como um zeloso padre abre as portas do templo para os fiéis.

- Todos somos iguaizinhos a meias furadas. A imoralidade humana e as impurezas são espinhos para o tecido de nossas almas.

Um dos filhos de Lady Madonna estava com um dente solto. Esse dente-de-leite estava cai, não cai. Ela apanhou um barbante bem fino e com ele laçou o dente. Depois o puxou de maneira engenhosa e solícita. Primeiro de forma lenta, para que o barbante fosse testado em sua extensão propícia. Depois deu um safanão, rápido, inesperado, instantâneo, e o dente saltou para fora da boca do garoto. Por fim ela deu conselhos para quem ainda possui dentes-de-leite:

- Os dentes já nascem escravos dos homens. Cuide do novo escravo que há de nascer. O próximo dente é um escravo em definitivo.

E quando chove deste lado da cidade fica tudo muito difícil. As crianças não podem ir brincar lá fora e tudo fica encharcado aqui dentro. Com a ausência do sol Lady Madonna tem de secar as meias dentro do forno. As crianças ficam ao redor para aproveitar o calorzinho que vem do forno. Sentindo do que os pequenos necessitam, ela se abraça com eles.

- Talvez eu saiba em algum lugar no fundo da minha alma que a caridade nunca dura. Nós teríamos que arranjar outros meios. Mas o difícil é fazer isso sozinha e tentando manter um mínimo de distância confortável... Eu sempre vivi assim...

Lady Madonna tem algum receio de comer aspargos. Ela lava as hortaliças evitando pensar nisto. Usa seus óculos de lentes rachadas e muita água da torneira. É que sua carne quer se entreter com carnes alheias. Aprecia saber que é feita de carnes e não de folhas de verdura. Sua vida inteira foi um subterfúgio da carne insatisfeita. Ela pensa isto completamente em paz, aquela serenidade, contudo, somente atingida no reino vegetal.

- Preciso dar de mamar para meu bebezinho... Ele nem chorou hoje pedindo meu peito... Tão lindinho!


Beto Palaio

(Inspirado em Lady Madonna – The Beatles)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011




TEMPO REI

Uma arrogância dura três anos,
Um cão sobrevive a três arrogâncias,
Um cavalo sobrevive a três cães,
Uma pessoa sobrevive a três cavalos,
Um tubarão sobrevive a três pessoas,
Um ganso selvagem sobrevive a três tubarões,
Um corvo sobrevive a três gansos selvagens,
Um cervo sobrevive a três corvos,
Uma pulga sobrevive a três cervos,
E uma Fênix sobrevive a três pulgas.

Um ditado Celta adaptado para os tempos de usura.

Beto Palaio


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O AMOR EM SINTAXE TURÍSTICA

“Domingo em que um coração naquela tarde chega aos golpes”. Será que dói no ouvido ler uma frase torta dessas? A frase foi dita por uma americana linda que conheci por acaso, num vernissage de um pintor de prestígio. “Alguma novidade se eu fosse pentear minha cabelo?”, ela se fechou no WC do restaurante. Ao beber água direto da torneira. Não se acanhava com nada. Quis desfrutar de um papelote que tirou da bolsa. Ela encantava-se com nossa gente. Gostava de brasileiros. “Mandei pouquinho só”, a americana falava isso quando dizia que “mandou ver na cocaína”. “Fiz borrar a rosto”, era assim que ela justificava seu último retoque da maquiagem. “Querer é ser amigo da soda misturada”, uma beleza de frase esta, que ela nunca traduzia para falar no momento certo, isto é, usava essa jóia aleatoriamente, ao seu jeito sensual de ser. “Pois é um presentinho”, minha amiga dizia isso gostosamente quando aceitava fazer amor comigo. “A mulher em cada estréia é ambulante”, frase bizarra que ouvi dela no café da manhã, depois de uma noitada maravilhosa. Quis que ela morasse de vez no meu apartamento. Entretanto ela estava, naquela manhã, com um folheto promocional de viagem para o México: “mediante sua cara, foi um bom quarto, mas preciso ir para conhecer esta cidade”, falou isso como se contasse a última grande novidade, apontando no mapa para a cidade de Nezahualcóyotl. Logo depois ela pousou em mim seus feiticeiros olhos verdes: “também você quer viajar o México, aceita?”. Não disse nem que aceitava, nem que não aceitava. Mas não estava interessado, de jeito nenhum, de conhecer Nezahualcóyotl. Entretanto respondi: “vou sim”. Naquela semana. Corri como um maluco para conseguir ajeitar o passaporte. Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta... Demorou cinco dias para acertar a papelada. Depois fomos juntos para Nezahualcóyotl...

Beto Palaio


quarta-feira, 26 de outubro de 2011


KRÉ
KRÉ
PEK
E
PTE
TUDO ISSO DEVERÁ  
SER ARRANJADO  
MUITO PRECISAMENTE  
NUMA SUCESSÃO  
FULMINANTE
PUC TE

PUK TE

LI LE

PEC TI LE

KRUK


Antonin Artaud

terça-feira, 25 de outubro de 2011



O ÚNICO ANIMAL


O homem é o único animal que acredita em Deus. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que acende o fogo. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que come sem ter fome. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que reconhece as próprias pegadas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que planta bananeiras. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que oferece a outra face. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que usa óculos. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que diz que o mundo é seu. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que usa pentes. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que coleciona palavras. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que canaliza as próprias fezes. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que ferve água. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que divide o cabelo. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que cria os outros animais. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que fabrica armas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que rege pelas leis que escreve. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que voa sem ter asas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que verseja. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que instala antenas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que planta arroz. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que conta as bananas que come. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que faz sexo apenas por diversão. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que voa sem ter asas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que comete pecados. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que escova os dentes. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que passa cremes para não envelhecer. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que vê figuras nas nuvens. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que se desculpa. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que abraça quem odeia. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que manda cartas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que recolhe lenhas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que roda as rodas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que extirpa o feto. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que lamenta ingratidões. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que se sente medíocre. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que tem orgulho. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que se divorcia. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que inventa religiões. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que conta estrelas. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que planeja cidades. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que desenha a si mesmo. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que fuma. O homem é o único animal cujo estilo é limitação. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que apedreja. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que se ensaboa. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que sofre à toa. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que sonha ser eterno. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que teme o inferno. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que escreve. O monge que escreveu isto passou a caneta de bambu para o outro monge a seu lado. O homem é o único animal que deixa de escrever quando lhe apetece.



Beto Palaio


segunda-feira, 24 de outubro de 2011


Minha Querida Sputinik - Haruki Murakami

A TEMPESTADE DO DESTINO

Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direção. Você pode mudar de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de você. Volta a mudar de direção, mas a tempestade se segue, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem ter nada a ver contigo. Esta tempestade é você mesmo. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta se deixar levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar. (...) E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica e simbólica.

Haruki Murakami, in 'Kafka à Beira-Mar'




Capa da NY Times Magazine

domingo, 23 de outubro de 2011

AS METAMORFOSES, DE OVÍDIO.

...Assim aquele deus, fosse qual fosse, a massa,

primeiro, dividiu em lotes e ordenou,

para que igual ficasse em toda a parte, dando

à terra a aparência de um imenso orbe.

Então o mar rompeu-se com os ventos rápidos

desandou a circundar os litorais da terra.

Reuniu pântanos, fontes e grandes lagoas,

por entre sinuosas margens cingiu rios,

que em parte se absorvem em vários locais,

em parte vão ao mar, e acolhidos no campo

de águas livres, em vez de margens, tocam praias.

Mandou dilatar campos, vales abaixar,

selvas cobrir de folha, erguer montes rochosos.

E, como há no céu duas zonas à direita

e outro tanto à esquerda e uma quinta mais tórrida,

assim um deus zeloso o globo dividiu

por igual, e outras tantas plagas tem a terra.

Por causa do calor, não se habita a mediana,

cobre duas a neve; entre ambas pôs as outras,

que, misturando fogo ao frio, temperou.

Cobre-as o ar, que tanto é mais leve que a terra

e a água, quanto mais pesado do que o fogo.

Lá as névoas, e lá as nuvens, pendurar

mandou, também trovões que aterram mente humana

e os ventos que, com raios, rabiscam relâmpagos.

O criador do mundo, entanto, não lhes deu

a posse do ar ao léu; a custo, agora, impede-os

- embora cada qual assopre em sua rota -

de o mundo varrer, pois grande é a rixa entre irmãos.

Euro se foi à Aurora, aos reinos nabateus,

à Pérsia e às montanhas sob luz matutina;

Vésper e as praias, mornas pelo sol poente,

de Zéfiro estão perto; a Cítia e o Setentrião

Bóreas frio invadiu; a região contrária

se umedece de chuva e assíduas nuvens de Austro.

Em cima pôs o éter límpido e sem peso,

que nenhuma impureza terrena contém...

(Trecho do Livro I)

Clique para o livro completo.

sábado, 22 de outubro de 2011

CHICO LÊ PESSOA

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

(Álvaro de Campos)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A MENINA DO BRINCO DE PÉROLAS

Camille - Video de Dan Hudson

Você vai sobreviver a mim,

menina esperta,

e com sua cabeça inclinada

perpetuará seu flerte

por breve momento

para os séculos de devotos

(vetados de chance)

a luz nos seus olhos

iguala-se à luz de sua pérola.


John Updike


Johannes Vermeer - 1665