sexta-feira, 15 de junho de 2012


No script alguém grita “têje preso!”, porém ninguém é preso de verdade. No roteiro todos fogem para Cuba, menos o Capitão Lamarca...

ALÊU E A SEREIA (XXVI)

CambadaAREnis+ta=Meio bizarro e ilógico. Há que ter retalhos na medida. Estar afeito. Sendo ufano, ou devoto, ou incumbido. Parece até que lhes disse o Criador: “vá e fira e peque e seja formando o grande teor”. Generosidade que se arremata. A nós o mundo doma. É da alquimia reinante. A terra sustenta o fogo e a água repele o ar. O fixo se faz volátil e o volátil retorna ao fixo. Oceanos de oportunidades para a caça e o caçador. Assuntos rondam. Onde a jaca só despega quando está madura. Onde a mandioca brava solta sua peçonha depois de aplainada. Onde o galo de raça nunca foge da contenda. Onde o dia da colheita é enfeitado de considerações. Manhãs cunhãs. Perfeitas ao serem confundidas com ciclopes diuturnos. À distância. Numa cacimba de água remota. Quase entregue à seca. Há periquitos que insuflam gritos. Caminhos que se demoram com a cambada de armeiros vindo campear. Vadiagens e volteios com os rifles às costas. Vida inquieta. Alêu presta atenção numa moita de capim-barba-de-bode. Parece que se mexe. Ele pensa em atirar no capinzal. Quando, num pláft. Voa dali um carcará. O pássaro tem reflexos de ir para trás dos caçadores. Depois se arrepende e ruma ao contrário. Indo justo na direção a um cerrado de cagaiteiras. Alêu comanda: “sigam aquele carcará!”. E todos seguem. Obedecem a Alêu como a um bom guia. Com o dedo indicador dele no comando. O carcará atravessa um roçado de milho seco. Uma roça de há muito abandonada. E vai bem mais longe. Pousa num mourão antigo de uma porteira já inexistente. E voa novamente, dali passando por uma recente plantação de macaxeira. Depois plana. Suas asas retas pedindo pouso. Assim vai. Atravessando um cercado de madeiras apodrecidas. E pousa no alto de uma árvore frondosa. Uma baraúna. Era de tardinha, era de manhã. Nem mais importava as horas. Porque através das frinchas da cerca. O povo da guerra assistiu. Algo inesperado. Ali os militares caçadores de comunistas estão fazendo o cerco e percebem que o temido Capitão Carlos Lamarca está dormindo despreocupado, encostado no tronco da baraúna. Na sombra daquela árvore copada. Dois homens estão adormecidos. São eles Lamarca e Zéquinha. Exaustos repousam desatentos na pouca sombra que encontraram. É Setembro. Mangava o zunzum de uma abelha. O local arde no calor. Zumbem moscas. Umas borboletas brancas, diminutas, campeiam por néctar no mato ralo. Pois Ipupiara está pintada das florezinhas de ocasião. Quanto assim. Ao comando do Major Silvinho Dantas. Tudo é medido no silencioso. A mão dele vai atrás de seu cocuruto e volta. Só então um espetaculoso pipôco de tiros estoura. Pá-pá-pá. Num resumo de aclaramento. O caruru. O açucrado. O baião-de-dois.  A caatinga. O “sastisfeito”. O xaxado. O “inté”. O graúdo. O “breganhar”. O aperreio. O “pelingrino”. O “fióte”. Ra-tá-tá. Um exagero de vocábulos caem no açude do silêncio. O Zéquinha, mais esperto, ainda tenta de correr só um pouquinho. A foguetada de chumbo faz peneira com ele. Depois o Capitão Lamarca, mais do que ferido, insiste em apanhar sua arma no detrás da sua cintura. Um tiro acerta em sua barriga. Ele se ajoelha. E é frito no chumbo quente. Assim termina? O filme da vida? Dizem que nesse imenso cinema Olympia. O filme vital é como cachoeira. Bate para alisar a pedra. Então ele, o cabra, morto. No caso específico de Lamarca. Irá retornar vivinho da silva. No reabrir das cortinas. Uma visão que se impõe. Do tronco da árvore baraúna para cima. Um carcará acaba de pousar. Somos, todos na platéia. Audiência estupefata. Visão plena de Lamarca e seu escudeiro Zéquinha. E é Lamarca quem fala: “tem gente do outro lado da cerca. Será o Exército brasileiro?”. Encostado na árvore o Capitão Carlos Lamarca parece até admitir, tenteando a fome que passou, com o estômago cheio de capim. Ele tem visões do eminente colapso. Mas não tem tempo para mais nada. Lamarca ouve um assovio de balas e encolhe-se ao sentir sua carne pipocada. A seguir. Com excessos. Perdeu sua bruta vontade revolucionária e vaza lentamente de dentro de si o temido terrorista. Sua herança. Em seus diários. Anotou certa vez Carlos Lamarca: “confie, pois os ossos escoltam a carne...”. Frases como esta, contingentes como um certame, foram encontradas num caderno brochura sujo de terra. Seu inseparável diário escrito em ponta de lápis. Segundo historiadores houve até alguma transcrição destas jóias, datilografadas pelos militares, totalizando dezesseis páginas. Deste calhamaço amarelecido citaremos: “o paladar é também a porta de entrada do podre”, “depois dessa refrega, toda vida, junto com a paz, eu anseio”, “o idílio marxista é para quem não se enoja de ficar sem banho”, “ter boa pontaria é adestrar-se no absoluto”, “em naturezas diferentes, todos nós procuramos por sistemas renovadores”, “aprofundamos e depois concluiremos”, “sou portador de brinquedos que nenhuma criança merece possuir”, “geralmente pensamos, em último caso, na própria configuração”. Tem até este, o confidencial: “Yara foi para Pituba?”. Esta é a última anotação antes da desenfreada fuga sertão adentro. “A boa mira está relacionada à porção ideológica do corpo”, isto Lamarca também escreveu com sua letra amarrotada e, para compreensão do enredo, numa anotação mais antiga, ele cita alguém de nome Pereirinha, um que foi padeiro, sapateiro, puxador de fole, cordelista, bancário, saltimbanco, chaveiro e coordenador de pesquisas para o IBGE. Foi através de Pereirinha que Lamarca soube da comunidade na caatinga: “Lamarca, essa é a verdadeira terra prometida. Ali o cidadão come pelas beiradas, pois sua sopa nunca estará no ponto de fria”. E Lamarca foi para aquele lugar escoltado por sua limitada tropa. Exatamente dois anos depois ele seria fotografado com o couro cabeludo cheio de carrapatos e a boca comendo os próprios dentes. Hoje uma cabrita pasta onde caiu seu corpo. Lugar terrível. A realidade um dia passou por ali como um cocô atolado. Mas agora o percurso é cinematográfico. No script alguém grita “têje preso!”, porém ninguém é preso de verdade. No roteiro todos fogem para Cuba, menos o Lamarca... 


Beto Palaio

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Não há carne sem que tenha origem no pó do chão. Por quais trilhas. Aconteceu justo o inexplicado.


ALÊU E A SEREIA (XXV)


Florca+dáver= Nada existe. Que não seja provado na lupa do entendimento. Salvo algumas teorias tântricas sobre a origem da natureza humana. Isto deixa tudo claro, inclusive. Porque a vida em si é removida das moléculas adventícias da terra. Não há carne sem que tenha origem no pó do chão. Por quais trilhas. Aconteceu justo o inexplicado. Um fato isolado naquela guerra aos molambos do comunismo. Uma trégua aos infantes. Onde na delegacia de uma cidade setentrional pernambucana. O intendente conferia as últimas notícias de Salvador. Isto num telefone encardido e de cordão esfiapado. E replicou que o Delegado Tião Malasartes acabava de ser preso. A tropa legalista parou para tentar entender. Fone lá e fone cá. Quando o comandante geral da tropa, um tal Silvinho Dantas, reuniu todos para dar a notícia do encarceramento do Delegado Tião, mas que não era nada de problema político. Pois o Malasartes foi pego em artes de putaria dentro do necrotério de Salvador. Ele estava ali, naquele ambiente nefasto, comendo uma mulatinha defunta que era afilhada de um Coronel de respeito. Tempos depois tudo se saberia. Porque desde longe, ainda em São Paulo, o Delegado Tião Malasartes reinava em seu vício, impunemente. Seu codinome de azucrinação, em Sampa, era Borracha. Pois esse dito Borracha, o Malasartes, que viria a ser um muito respeitado Delegado de Polícia na Bahia. Ao de longe, entretanto, era dado ao borrão de um vício amargo. Assim no divulgado à boca-pequena. O Borracha viera de São Paulo em regime de afastamento. Ele fora expulso amigavelmente e sequer perdera o cargo na Polícia Militar em função desses descalabros, aliás, dos mais medonhos. É que ele era tarado por um fatídico costume. Prestava-se a visitar necrotérios na intenção de encontrar alguma menina-moça. Uma que fosse recentemente falecida, e então, tomado de ardores pelo anjo morto, perpetrava com ela um ato sexual completo, principalmente com o defloramento de sua vagina angelical. Esse era o vício de Borracha. Andava pela noite paulistana a espera de uma dessas oportunidades. Vampirescamente dado a um ato canibal e facínora. Gastava parte do seu numerário para esquentar a mão de quem estivesse de plantão no Instituto Médico Legal, isto quando havia em depósito ali algum corpo apetitoso. Este furunfo libidinoso era para o Borracha, aliás Tião Malasartes, um acontecimento único, sideral, incomensurável. Longe de lhe parecer um ato de horror, a posse de uma flor-cadáver era, para ele, revestida de vida, graça e novidade. Para o ato em si, escorriam-lhe apetites da alma tal uma fonte inesgotável. Até que, numa dessas pervertidas orgias, o Borracha topou com o corpo de Mila. Esta sendo uma cândida e formosa virgenzinha de dezesseis anos. A menina Mila era loira desde o pentelhos do púbis até os cachos de cabelos, os quais rodeavam seu rosto santificado como uma bela moldura. Pois, à vista de tão arrematado pitéu, o Borracha tornou-se um devorador. Beijava sem cessar o corpo gelado de Mila e adentrou afoito e glutão a inflorescência mimosa da falecida. Ali ele ficou forçando o ato até que se satisfez integralmente. No que ele ouviu um delicado e distante “ai!”, e o corpo frágil da menina escorregou-lhe das mãos. Ato contínuo ele vê os olhos de Mila, meio-a-meio, se abrirem em estertor e depositarem nele um mirar de lascívia, com um sorriso maroto e um último engasgar, donde de sua boca escorria um algo líquido róseo. Borracha agilmente se vestiu e chamou pelo estafeta de plantão, para juntos depositarem o corpo de Mila na gaveta refrigerada do necrotério. E foi quando a menina agarrou-se a ambos e pedia numa última convulsão: “outra vez... outra vez...”. Assim ambos, Borracha e o estafeta, fugiram do necrotério, dando de encontro à outros funcionários que logo descobriram Mila estatelada no chão e vieram a desvendar aquele crime que foi animalescamente praticado pelo Borracha. Assim, após um rumoroso processo, com muitas idas e vindas, Borracha, um criminoso folgazão, mas com as costas quentes, acabou por ser transferido de maneira impune para Salvador. Nesta cidade ele ficou discreto por um tempo. Escondia com zelo a sua mórbida preferência sexual. Mas vício é vício e cedo ou tarde se manifesta. Com isto Borracha logo passa a freqüentar o necrotério de Salvador. Sempre à título de estar procurando por algum indigente meliante. Pois ninguém experimenta uma devassidão com liberdade de escolha de enjeitá-la. Assim Tião Malasartes, o Borracha, voltou à suas atividades de canalha e comedor de anjinhas mortas, até que se defrontou com o corpinho da afilhada de um Coronel. Fato este nos conformes dos autos, agora compartilhado pelo Comandante Silvinho Dantas aos seus comandados. A tropa, aquartelada no sertão pernambucano, dividia opiniões: uns achavam que ele era um filho da puta e outros que se entreter com menina-cadáver era algo até aceitável. Só Alêu não participa da algazarra que se tornou o pretenso julgamento de Tião Malasartes, afinal aquele homem foi seu libertador, e mais que isto, foi mantenedor de seus primeiros aluguéis na pensão e mentor nos dias de seu engajamento aos bons propósitos policiais e direitistas... 

Beto Palaio