LEILÃO
DO AR
Nos últimos tempos, vem
acontecendo leilões de navios e leilões de ilhas, não sei se de montanhas. O
leiloeiro, diante de um público restrito, mas de alto poder econômico (não há
por aí gente em condições de arrematar uma ilha ou um navio inteiro), faz se exatamente
como se se tratasse de um aparelho de chá ou de um lote de miudezas. Só que é
estranho ver uma ilha leiloada, com suas águas, plantas, bichos, minerais,
caminhos, casas e outras benfeitorias. Quem dá mais? Dou-lhe uma, dou-lhe
duas... De repente, ao entardecer, a ilha aparece no salão escuro, cercada de
dívida; emerge da papelada do espólio, ocupa a rua, caminhamos por ela através
dos lances do leilão, de gritos martelados.
Com o navio sucede a mesma
coisa. É um velho barco desmoralizado, mas como viajou! Se tardar um pouco o
leilão, ele se reduzirá a sucata. Vai afundando... mas tudo que foi susto ou
alegria de navegação vem a tona, e a sala se enche de gíria da marujada,
cabeludas histórias de bordo, ventos, tempestades, tatuagens, o diabo solto no
mar. Mesmo em ruínas, que nobre é o navio, inclusive os cargueiros!
Agora o leilão é outro: banal
na aparência: pequenos objetos, bolsa de viagem, cristais, saboneteiras, latas,
xícaras, taças de sorvete, poltronas. Muitas poltronas. Muitas poltronas, em
que os presentes podem sentar-se, testando-lhes a comodidade. No entanto, este
é também um leilão raro, o primeiro no gênero, de que tenho notícia no país: o
de uma empresa de aviação. Na loja da Avenida Graça Aranha, expõem-se os
tristes trastes da Panair do Brasil. Coisas que escaparam de acidentes aéreos,
para vir sofrer o desastre em terra, com o esfacelamento da companhia, que
serviu a tanta gente por tantos anos.
Eu não ia arrematar nada, mas
incorporei-me à multidão de licitantes. Pareceu-me ver um grande avião caído.
Com os destroços varejados pelos curiosos. Uns calculavam com frieza o valor
dos lotes. Outros olhavam, desinteressados. Algum raro pegava de uma peça.
Apalpava-a, mirava-a longamente. Todas as poltronas estavam ocupadas. Pelo que
dizia um cartaz, elas se adaptavam perfeitamente a um Volks, e serviam para
compor um living: estão em moda as poltronas geminadas. Eram todas de avião, e
só elas davam a ilusão de viagem. Mas a viagem era imóvel, paralítica. Não
havia aeromoça para trazer o lanche e gratificar os passageiros com aquele
sorriso circular que infunde coragem aos apavorados. Nenhum sinal de
tripulação.
Não se apertavam cintos,
ninguém sentia nada. As coisas amontoadas, etiquetadas, vencidas, falavam do
ar, mas num pretérito mais-que-perfeito, e ninguém as ouvia. Objetos
acostumados a voar estendiam-se pelo chão, dou-lhe uma; aguardavam um destino
de hotel barato ou de casa pequena burguesa, dou-lhe duas.
De tapetes voadores, as poltronas passavam a uma domesticidade
sedentária e pobre: dou-lhe três.
Assim acabava aquilo que foi
uma grande empresa nacional, cujo nome sonoro retinia por toda parte. Os aviões
já tinham passado a outros donos; as instalações serviam a outros fins; chegara
a vez das poltronas e dos açucareiros, das latas de comida, copos e cobertores,
da bugiganga que antes, integrada na máquina voadora, participava de suas
propriedades mágicas, pois o avião continua a ser mágico, à medida que a viagem
aérea se torna cada vez mais rotineira. E ninguém ali sentia nada de especial
diante do corpo derrotado na Panair, de seus intestinos à mostra. Quase todos
teriam usado suas linhas, comido seus jantares, lido seus jornais
brasileiros em Paris, mas a hora era de liquidação, e não de saudades. E o
leilão ficava mais lúgubre, quem dá mais? em meio à indiferença geral, que é
marca registrada de leilões. Dou-lhe três.
Em dado momento, senti que uma
das miniaturas de avião, que iam ser igualmente apregoadas, manifestava sinais
de inquietação. Positivamente, queria evadir-se, fugindo à sorte comum. Num
esforço de que não revelarei a fórmula, encolhi-me todo para caber dentro do
aparelho e, em silêncio, como fazem os aviões decaídos de sua glória, ele
rompeu as paredes do edifício, e alçou voo sobre o Rio de Janeiro levando-me consigo
para onde os aviões se tornam estrelas inacabáveis, sem remorso dos
homens.
Carlos
Drummond de Andrade, in Jornal do Brasil (2/10/69)
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