sábado, 27 de abril de 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA

2

Entretanto, longe do burburinho da imprensa, num dos canais laterais de Listra Vecchia, foi retirado das águas plúmbeas um cadáver de verdade, o qual foi depois reconhecido por testemunhas como sendo Ridvan Kamide... Mas... Quem seria o verdadeiro afogado?

Ridvan Kamide havia sido, em sua encurtada existência, proprietário de uma concorrida loja de máscaras votivas instalada na cidade de Mônaco, entretanto admitia-se em um ou dois inquéritos, que Ridvan falsificava metade das máscaras que comercializava. As autoridades monegascas, principalmente os incansáveis inspetores de polícia de Mônaco, descobriram que Ridvan falsificava cem por cento do que vendia. Com esta acusação Ridvan foi alocado aos calabouços reais, onde aguardava um julgamento continuamente protelado. No entanto, Benitta Bee Bell, uma bem sucedida fonoaudióloga irlandesa, em férias pelo sul da França, reuniu alguns simpatizantes do comerciante de máscaras, entre eles, Hermann Kennedy, velejador profissional, Krista Albright, herdeira da patente do Hexaclorofeno e Erin Montaag, editor e teórico do ficcionismo pósmoderno.

Tudo isto num esforço multi-cultural para juntos libertarem Ridvan Kamide. Inclusive, com o sucesso dos intervenientes. Algumas semanas são decorridas. Após esta experiência nada consagradora de ver-se à ferros, Ridvan mudou-se definitivamente, a convite dos financistas de sua alforria, para a Riviera Veneziana. Ocorre que Ridvan prometera, antes de sua prisão, em separado a cada um dos quatro beneméritos, a apresentação da raríssima máscara mortuária de um cão egípcio, que Ridvan garantiu haver pertencido à bisneta de Lord Carnavon, uma certa Lady Gabrielle di Sttele, outrora Gabrielle Smith Carnavon, proprietária em segredo daquela raríssima máscara, a qual fora descoberta entre os tesouros de Tutancamôn.

Acontece que Ridvan, como prova de autenticidade, fazia acompanhar o rude utensílio escavado em madeira senhorial, de um papiro, já um tanto ilegível onde, presumia o comerciante, que se mencionava do inconveniente de certo cão, citado no bizarro documento como sendo demoníaco, haver transmitido uma estranha doença para Tutancamôn, o menino herdeiro do trono egípcio. Para os interessados Ridvan Kamide também exibia fotos Polaroid mostrando a porta da frente e corredores do local, no Vale dos Reis, onde foi encontrado o tesouro de Tutancamôn e, entre eles, a tal máscara canina. Mais ainda, acrescentava ele, num exagero de erres e esses, que a legítima dona, Lady Gabrielle, inicialmente confiara a tal peça histórica para um jovem de seu relacionamento, mas não mencionava que ele tinha a aparência desleixada de um bon-vivant e que, em realidade, até onde se sabe, sem mais pormenores, era um rapazote um pouco mais que travesso nas relações íntimas com Lady Gabrielle. Este moço de barba temporã apresentava-se como Brady Morrow, um pretenso ator australiano, de sucesso incerto , que dizia residir em Murano, ilha vizinha de Veneza. Entretanto Brady Morrow, amigo de noitadas de Ridvan Kamide, morava por esta época, final dos anos sessenta, na vizinha cidade de Consigliore, diretamente banhada pelo Adriático, num pardieiro injustificado para tamanha regalia que ele dizia ter entre os nobres venezianos. Porém. Em se tratando de vender máscaras históricas, para Ridvan Kamide, tudo não passava de detalhes insignificantes, os quais oficialmente não seriam mencionados em nenhum prospecto editado sobre o assunto.

No geral, com vistas ao resumo da farta documentação reunida pela polícia italiana, acrescenta-se que a tal máscara egípcia hoje sobrevive, distante de historiógrafos de bibliotecas e arquivos, alijada a uma mansão vitoriana que a amável viúva Krista Albright, herdeira do truste do Hexaclorofeno, mandara construir nos arredores de Springfield, nas gélidas colinas do Maine. Entretanto, nem bem o corpo do afogado Ridvan Kamide fora depositado sob custódia nas geladeiras do necrotério veneziano—atentai a isto!—um outro corpo surgiria boiando na laguna. Para extremos das coincidências, jazia este novo corpo num nicho de miasmas e cascas de caranguejos, um horripilante recanto onde um crocodilo fora certa vez encontrado, em 1966, com sua cabeça arrancada. Neste mesmo local nauseante. Agora este outro cadáver, recém descoberto, jazia. Triste de se ver. Ao ir e vir das marés. Flutuando enroscado entre ferragens retorcidas e tranças de fios de cobre, esquecidos ali desde a Segunda Grande Guerra...


Beto Palaio


As Mortes da Morte em Veneza, é um capítulo do livro Pitchula e os Paranóias, livro em progresso livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles

Nenhum comentário: