segunda-feira, 29 de abril de 2013



AS MORTES DA MORTE EM VENEZA 

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Desta vez o corpo era de um milionário coreano que, até a pouco, estivera entre amigos jantando à luz de velas numa cantina próximo à um dos canais. Não obstante o registro deste jantar foi possível dado ao específico detalhamento de cada um dos depoimentos colhidos dos amigos e parentes do falecido Henri Songmiaul. No que se relata, amiúde. A discriminação que assola o sufrágio às minorias não é privilégio da América. Ali em Veneza a discriminação é um prato que se serve quente. Onde haja exterioridade. Henri Songmiaul, milionário coreano e Badan Feldab, investidor árabe, estavam degustando pappardelle ao sugo de cinghiale num restaurante a céu aberto, local em que as mesas chegavam próximo à mureta de contenção do molhe. A travessa fumegante deixava com que o perfume da carne moída, da sálvia e do aspargo, aspergidos ao molho de tomate com cogumelos, invadisse todo o recinto. Aquele exagero de tradição culinária se atracando, ao caldo fumegante, com o talharim de banda larga. Henri e Badan mal continham a gula. E nem se apercebiam. Que, lá fora, Veneza derretia em malvas, como nas pinturas impressionistas de Claude Monet. Um decálogo de tons bluezins ora vestia o pôr-do-sol. Em silêncios siderais. Não muito longe, à leste, o astro-rei se deitava entre colinas distantes. Por todo vale desmaiava, entre sombras geladas, o calvário do dia. Nesta natureza-decomposta, a lua vem e flutua, como um barco de prata, tímida ainda, surgida num lago de nuvens salpicadas, algo pálido e longínquo, do sol já enterrado e morto. As floreiras naquele restaurante a céu aberto exalavam madressilvas e um toque longínquo de violino deixava tudo em suspenso, entre a poesia de um desejo personificar um outro, em contraponto, na morte universal, no trocar das correntes marinhas e no apoquentar de um coração pulsante. Entretanto, nem Henri Songmiaul, nem Badan Feldab estavam atentos ao que se passava ao redor. Pois se puseram a degustar, entre um gole e outro, o Brunello di Montalcino, uma safra especial 1977 do melhor tinto italiano. Neste clima especial. É Badan quem recomeça o assunto que tratavam já desde a tarde:

- Henri... Veja que o problema não é somente de Nova York ou Paris... Já que se focaliza em negros e, particularmente, em hispânicos... Veja o caso dos sete ativistas de extrema direita... Sim... Os que foram recentemente metralhados... Os direitos civis pesam em ganhos políticos recentes... Mas isto causa recuos econômicos nas minorias... Nós é que pagamos pelo assalto generalizado da plebe... Você não entende assim?...

- Quer mais vinho, Badan?

- Sim... Um pouco mais... Quanto à situação...

- Eu concordo... Até que os movimentos civis de extrema direita sejam resolvidos... Pelo menos em teoria... O problema moral e constitucional deve ser reconhecido pelo racismo assoberbado...

Nisto uniram-se à dupla, embora bastante atrasados, os outros convidados para o jantar. Estes se aproximam da mesa, já puxando suas respectivas cadeiras, são: Cornélia Gide, investidora em commodities e apreciadora do turfe. Daniel Boateng, editor do caderno Échecs do jornal “A Folha de Bruxelas” e Raphael Larsen, pintor dinamarquês, filho de John Larsen, proprietário da maior fábrica de sardinhas enlatadas dos paises escandinavos. Eles se puseram a reclamar, entre sorrisos e gargalhadas, que Henri e Badan não esperaram por eles, e o que é pior, já estavam atacando o prato principal...

- Nada disto... Nada disto... Este não é o prato principal... Depois teremos o assado de cordeiro... Claro... Não havíamos combinado isto?

Assim falou, também sorrindo, Henri Songmiaul que deu boas vindas a todos e, com um discreto sinal, chamou o garçom para que este trouxesse mais duas garrafas de Brunello di Montalcino. Bastante animado com a presença dos recém-chegados, Henri aproveitou para também ordenar, exclusivamente para eles, aquele aguçado pappardelle ao sugo de cinghiale, agora relegado a um reles prato de abertura...

- Vamos... Completou Badan... Se aproximem que estamos falando da situação atual de aparente comando das forças de direita...

- Ah... Não... Querido Badan... Com essa lua tão linda... Esse ar puramente veneziano... Ouça, ao longe... Até um violino nós temos... Então... Não percamos nada deste raro momento... Deixe que os pobres cuidem dos próprios pobres...

Isto disse Cornélia Gide, agora aparteada por Daniel Boateng:

- A pobreza está em xeque... Não há saída... Mas vou querer experimentar esse vinho... De que safra é?... O que?... Mil novecentos e setenta e sete?... Nossa!... É a melhor safra dos Montalcinos...

Este diálogo no restaurante é um dos bizarros tópicos inseridos na ficha criminal posteriormente elaborada para a triste ocorrência de Henri Songmiaul. Ele que fora encontrado boiando nas águas putrefatas de um canal secundário, num trecho em que a aduana empilhava alguns containers de depósito oficioso, alinhados numa amurada onde foram precariamente instaladas algumas manilhas para lancetarem um recesso de esgoto residencial, refluxos estes tratados em caráter de improviso, sobretudo arcaico, numa invenção milenar dos antigos romanos, que era a dispersão de dejetos sobre tanques fundeados em lastro de areia.

Haja paciência descritiva neste concatenamento de insinuações investigativas, para afinal nos alarmarmos mais uma vez, pois Henri Songmiaul não seria o último cadáver a ser encontrado boiando nessa temporada de inverno em Veneza...


Beto Palaio


Trecho de uma série de mini-contos que fazem parte de um capítulo do livro (em progresso) que é Pitchula e os Paranóias, livremente inspirado na capa do LP Sargent Pepper´s dos Beatles.

Foto: lauren374

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