O RICO, O POBRE, O PAUPÉRRIMO, PORCO ASSIS.
Socialismo
no pórtico. Pessoas refinadas entrando juntas para assistirem Porco Assis pedir
concordata. Logo o sinergismo. “Te trouxe um peixe frito”, cantavam, sentados
na audiência do júri, os seus desafetos “e joguei fora, na sarjeta”. Tolo de
carteirinha, o juiz pensava que estaria fazendo um favor à comunidade de
prósperos negociantes da cidade. Quiçá soubesse. Porco Assis era vendilhão de
outros falidos. Corre a pena em miçangas de perdoar. Velhas dívidas de Porco
Assis. “Quando eu era menino, voltando da escola, passou por mim um jipe, cheio
de carnavalescos. Um dos foliões me atirou um frasco de lança-perfume. Cheirei
aquilo com sabor de quero mais. Fui e voltei e fui e voltei e fui e voltei.
Numa câmara de gás florida. Ao vento pairei. Encontrei uns anjos. De asas
quebradas. Quis voltar para meu travesseiro. Planando. Eu era uma paina.
Flutuando. Viciei-me em cheirar ópios. Tinha somente doze anos de idade. Menino
de tudo. Batia na porta de meus pais, ainda cria, apesar de tudo, nos meus
papais-noéis”. Quanto ao tempo. Esse rodo de soro. Leite de pato. Onde.
Conflitamos Hipócrates. A arte é xucra, a vida é leve; A sapiência é inútil, o
deslize é escorregadiço; As palavras são limitadas, o mutismo é aramado; A
ocasião é fugitiva, a malversação é atualizada; A experiência é enganosa, a
perspectiva é falaz; O ajuizamento é difícil, a extinção é controversa; O
trabalho é decretado, o amanhã é hipotético; A manhã é fonética, o pôr-do-sol é
mudo; O desplante é carnaval, o talento é bater de latas; A fatura é adiada, a
carestia é servida; A natureza é apátrida, a ignorância é estimada; O
descontrole é acalentado, a juventude é escorregadia; A poesia é fragilizada, o
entendimento é pulverizado; A ascensão é titubeante, a queda é compartilhada; O
vicio é aclamado, o saber é arquivado; O
amor é terreal, a ingratidão é caprichosa; O gosto é frívolo, a tentação é angelical;
O desprezo é instituído, a razão é fardo; A fonte é duvidosa, a honra é
desertificada; A certeza é quimérica, o gato é pardo; A luz é exígua, a
instância é suprema; A concordância é inútil, o fruto é moroso; A temporada é
canhestra, o hino é mavioso; A sarça é ardente, a semente é dilatável; A fé é
tolerável, a mula é manca; A aguardente é batizada, o sol é cavalar; O
temporário é ilimitado, a leveza é plúmbea; O apreço é líquido, a estupidez é
método; A fuga é apreciável, o engano é pífio; O discurso é mordaz, a fortuna é
quimérica; O lança-perfume é inebriante, as ofertas, são infindas. “Depois do
lança-perfume. Veio a cola-de-sapateiro”. Até que Porco Assis remoçou. Outra
vez. Na bossa nova. Topete na brilhantina. Noites descortinadas. Brisas que originam
fontes de permanente juventude. Ondas do calçadão de Copacabana. E a pedra do
Pão de Açúcar se espremeu para a passagem de um homem. Morto em vida. Fraco,
roto. Cheio de manias. “Depois que conversei com Setentrião Boréas, não consigo
nem morrer, nem ficar pobre”. Nos tapetes do vir a ser. “Imaginei-me abalroado
pelo suicídio inalcançável”. Fingimento de findar em galhos rijos de aroeira.
Um corpo dependurado na árvore. Fingimento de se jogar na frente do bondinho de
Santa Tereza. Uma pessoa dividida nos trilhos do bonde. Fingimento de saltar da
Pedra da Gávea. Ao todo um gosto de pedra. Vidro. Talhos. Subjacente no macho.
Uma vontade de ele ser rico. Quando jovem ainda. No tempo do primeiro lança-perfume.
Quando viu pela primeira vez. Dentro do seu quarto. O demônio Setentrião
Boréas. A gratuidade que este lhe oferecia. Na vermelhidão da cara do diabo. Da
vida eterna. Tempos emborcados na cartilha do aprendizado. Do brincar com fogo.
Ao dinheiro fácil. Poucos anos depois. Moças a seu serviço. Um castelo na praia
de Búzios. Infante avaliado pelo trato. Um balanço do que foi planejado.
Quando Porco Assis tinha apenas vinte e dois anos de idade. Foi estudar piano e
canto clássico em Nova York. Na Manhattam convertida numa ilha de prazeres. Os
sonhos de cada um que se realiza. Doces cartões postais num céu em metamorfoses
de nuvens. Number one. A grande cidade ameaçando chuva. O Bronx em perfil de
estátuas. A entrada do metrô toda charmosa. O vento de Julho arrastando folhas
pelas ruas vazias de Nova York. Ali, na imensa praça central. Number two. Com a
bicicleta encostada numa árvore. Porco Assis cheirava cocaína com sua namorada
americana. Nem mesmo para ela Porco revelaria seus segredos. De que enricava o
tempo todo à custa de um acordo que fez com o demo. Hábitos de pestanejar com o
cabrão. Fitilhos de bode preto. No ato de Porco Assis se entender com o Cujo. O
responsável pelo nome. Nele não era mais palpável. Number three. Era já, no
aqui agora, Porco estava passando um sinal na poeira. Seu nome escrito entre
rabiscos incompreensíveis, dentro de uma estrela de Davi, torta nas pontas.
Setentrião Boréas veio, perfumou enxofres, e assinou embaixo. O mal adoça
punhais. O mal decora vitrines de magarefes. O mal confeita dráculas. O mal
azeita traições. O mal dirige o fogo amigo. O mal caduca, mas nunca envelhece.
“Aceito sim”, Porco Assis estava cheirado de cocaína quando foi visitado por
Setentrião Boréas munido de um documento fatídico. “Aceito sim”, ele assinou
com a tinta retirada de um inseto negro que lhe sugara o sangue. “Aceito, claro
que sim”, comprometeu-se a fazer das tripas o coração. Massacraria, enredaria,
trairia, roubaria, governaria, delegaria. Depois, em aprumo, bússola no
tamborete, daquele fatídico bilhete, deixou-se ficar no núcleo da geladeira, a
par de que, tudo se abonou. Na chibata vital, retemperado. Porco Assis passava
confiança e determinação. Mordia as oportunidades como um cão faminto a seu
osso. Dormia com uma mulher e amanhecia com outras duas. Era como um bom
americano lhe descrevera: “um aço de primeira!”. Porco progrediu rapidamente. Tinha
equipes de trabalho nas principais cidades do mundo. Todos compravam e vendiam
de tudo em seu nome. Falcatruas, afiançadas pelo governo, eram a especialidade
de seu grupo em Brasília. Muitos acres de terra foram grilados e depois
vendidos de volta para o próprio governo brasileiro. As construções, e demais
atividades, seguiam o plano diretor de suas coligadas, sendo ao ligeiro,
empreiteiras, fábricas de papel, casa da moeda, mineradoras, distribuidoras de
petróleo, cassinos nas cidades históricas, passeio de fêmeas vendidas como
mercadoria utilizável em Copacabana ou no centro velho de São Paulo. Comprou
alguns Rolls-Royces de cores diversas, embora todos negros, um veículo para
cada uma das oito capitais diferentes no mundo onde mantinha seus escritórios.
Adquiriu na “bacia das almas” um jatinho Cessna Citation, um avião
turbinado com capacidade para transportar de cinco a sete passageiros com
relativo conforto em rotas interestaduais e internacionais de curtas e médias
distâncias. Tudo nos conforme do que se entendera com Setentrião Boréas. Assim
Porco Assis. Foi que foi. No rock and roll do Good Golly Miss Molly, rolando
como uma bola de ouro puro. Súbito. Doeu-lhe o dente numa noite. Uma madrugada
miserável que ele refestelou num hotel cinco estrelas em Porto Rico. Ele chamou
Setentrião Boréas às falas. Gritou-lhe pela presença, mas Setentrião Boréas não
apareceu. Com a dor de dente surgiu-lhe o papo. Um envelhecimento precoce o
levou a ter um papo mofino, com jeito de garganteio de zebu. Então ele se trancou
no hotel e somente aceitava a comida pelo abrir e fechar rápido das portas. Foi
assim que entrou no seu quarto um cão negro que o acompanharia como uma sombra.
Ele adivinhou ser Setentrião Boréas. E falava com o cão dia e noite: “pode me
ajeitar mais uns anos no bem bom?”, mas o cão só lhe mostrava os dentes.
Repetia: “pode me ajeitar mais uns anos no bem bom?”, mas o cão insistia em lhe
mostrar os dentes. Repetia: “pode me ajeitar mais uns anos no bem bom?”, mas o
cão só fazia mesmo mostrar-lhe os dentes. Repetia aquela ladainha, mas o cão
sempre lhe renegava. Até que ele agarrou aquele cão negro pelo pescoço e rolou
com ele pela sala do hotel Astúrias em Porto Rico. Ambos se mordiam como
verdadeiros animais que eram. Logo o cão mostrou-se, em catinga e presença, na
figura de Setentrião Boréas: “Ficou valente, hein, Sr. Porco?”. Foi isso
acontecer e Porco Assis cair na rogatória: “Mais uns anos no bem bom... Pode
ser?”. O demônio apenas lhe assinalou um adendo ao velho compromisso: “você
contrata, eu faço”. E novamente uma pá de documentos é assinada por Porco
Assis. Entretanto aquela dor de dente que sentiu—e o papo que lhe
surgira—fez dele um ser angustiado. Na mesma semana ele entrou no Cessna
Citation e foi para o Rio de Janeiro. Chamou para seu escritório na Barra um
advogado de porta de cadeia indicado pelo irmão do primo de um amigo da cunhada
do motorista de seu Rolls-Royce. Essas pessoas afiançavam que aquele era o
melhor advogado que havia no mundo. O causídico, um homem franzino, com o rosto
sempre enfarruscado pela pouca graça, ao combinar o preço de seu trabalho, lhe
revelou uma merreca de mil reais. “Mas só isto, doutor?”. O advogado fez que
sim, veementemente, com a cabeça e fecharam o negócio. A partir dali era com
esse advogado que Setentrião Boréas teria de se acertar. Tudo nas leis do
melhor proceder. Isso logo aconteceria. Setentrião Boréas sentou o rabo na
frente do advogado Dr. Sebastião Penha como se fosse a última pessoa importante
no mundo. Rangeu ali seus dentes. “Esse advogadinho está me enrolando... Vou
mandar para ele uma caravana de sete touros incendiários”, mas nada derrotava Dr.
Sebastião Penha, que beijava sempre a imagem de Nossa Senhora da Conceição
antes de começar a atender Setentrião Boréas. “Pode mandar, Sr. Setentrião... É
o Sr. quem tem a palavra... Mas não a razão!”. Por fim Setentrião Boréas
desistiu de cobrar a alma de Porco Assis, “mas não o dinheiro que ele ganhou
comigo... Ele perderá tudo, ficará na mais absoluta miséria!”. Foi assim que
Porco Assis perdeu toda sua fortuna e ficou endividado na praça a ponto de ser
encarcerado por falta de pagamento e outras dificuldades advindas no mesmo
botijão de azos. Deste modo, quando naquele julgamento por débito generalizado,
as pessoas lhe hostilizaram no tribunal, Porco Assis entendeu claramente a
oferta da cantoria vinda de seus desafetos: “Te trouxe um peixe frito... E
joguei fora, na sarjeta”. Mas Porco Assis foi humilde, olhou para seu advogado
Dr. Sebastião Penha e piscou um dos olhos, ao que acrescentou: “aceito esse
peixinho sim... Claro... Agora sou uma pessoa destituída de orgulhos!”.
Beto Palaio
Gravura: Claes Jansz Visscher (1635)
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