terça-feira, 17 de maio de 2016


DE COMO S. W. ESTELAR ENTREGA O TRUQUE DA ESCRITA.

No cinema do drive-in local estava passando um filme de cowboy. Mas ninguém esta ali no drive-in para assistir ao filme. Além disto, o sol do meio-dia nem permitiria mesmo que se assistisse qualquer filme que fosse naquela imensa tela branca. Há um corte desta cena e imediatamente abre-se outra cena dentro de um restaurante que mais parece uma espelunca de beira de estrada. Ali, refestelado numa cadeira, dentre as várias ali dentro, fazendo caretas, apenas com o uso da mente. Joe Buck mostra-se impaciente e visivelmente decepcionado, entortando colheres e garfos. Passava das medidas. Um faqueiro inteiro, mesmo que já gasto pelo uso, já tinha virado entulho. Quem entrasse no restaurante deparava-se com a cena. Talheres tortos espalhados por todo chão. Em função disto Joe Buck, evidentemente, foi despedido. A arte de entortar colheres e garfos fica bem na televisão, com o Uri Geller fazendo charme de que é único no ramo. Joe Buck multiplicou essa arte ao máximo. Tanto chamou a atenção do dono daquela espelunca que agora estava indo para Nova York. Seu trabalho de lavador de pratos naquele restaurante se acabara. “Passa daqui cachorrinho, tenho de admitir, agora é cada um por si e Deus para todos”. Joe Buck toma um banho demorado, enquanto os outros lavadores de prato no restaurante sentem falta de sua mão de obra. “Tenho mesmo que aceitar a verdade... Vou embora para Nova York, e isso não é pouca porcaria não”. Logo suas botas tomam toda tela do cinema enquanto uma música fala de muitas pessoas que falam dele, Joe Buck, e que não ouve nada do que eles dizem. Numa sucessão de passos de sua bota, a música de fundo deixa claro que ele, Joe Buck, vai saltar um oceano, se for preciso, para depois voar como uma pedra e pousar assim, atravessando a ala oeste como uma brisa de verão, e chegando finalmente lá, em Nova York. Uma cidade, um cowboy, um mendigo passando fome, muita disposição para fazer e acontecer. Tudo isto saiu da cabeça de um escritor. Um sujeito barbudo, cercado de fumaças de cigarros, mal pago, tendo que encarar o tec-tec da máquina de escrever Remington, tudo para depois entregar um calhamaço onde na primeira página está escrito em letras meio tortas e sujas de tinta, aqui e ali, em função de alguns tipos estarem completamente tomados pelo acúmulo de sujeira de tinta. Apesar do que foi descrito, escrever é uma arte que pode ser atingida por qualquer cidadão do mundo. “Para escrever, basta escrever”, diria S. W. Estelar, o maior vomitador de palavras que o mundo já conheceu, chegando a editar mais de duzentos romances de uma só estirpe: a estória da seqüência de um amor que nunca se realiza, e depende sempre de algo mirabolante que o casal imagina que salvará o casamento deles, sendo que a revelação deste ato se dará, necessariamente, no próximo volume. “Qualquer um pode ser escritor, vou ensinar isto para todo mundo, de graça”. Assim, com a intenção de repassar os nobres conhecimentos desse vomitador de palavras, tem início o conto que se denomina “O Escritor Entrega a Rapadura”, onde S. W. Estelar divide suas dicas em três pequenos capítulos, como seguem: “Apenas para constar nesta tese como capítulo um”, a conquista do ato de escrever contos, roteiros, ensaios é mérito de cada um. A inspiração comanda quando há música, estrondo de trovão e pressão econômica. Não mais. No entanto, há que se dizer toda a verdade. Não é bem assim que as coisas se afinam. Há caminhos e caminhos. Variantes, trinta ou quarenta. Roteiros, roteiros, roteiros. Do mesmo modo, quando o anjo protetor, essa Musa, nos alicia, corrompe e propõe sempre um caminho contrário ao pensamento do escritor. A inspiração é algo vinda desse anjo, o qual julgamos possuir um pequeno reino tiranizado pelo cruel Sabujo, o sem-idéias. A inspiração é o que no final determina tudo. Mas até isto se contesta: salvo raras exceções dentro da simbiose autor-musa. Houve o caso desse cidadão tcheco chamado Gregório, quando ele e seu anjo inspirador se transformaram em insetos repugnantes. Ambos se meteram embaixo de uma cama, e a estória propriamente dita não andava nem para frente, nem para trás. Para desatar esse nó de marinheiro, surge quem se atreveu a convencer o anjo inspirador de Gregório a desistir da idéia de ficar debaixo da cama e contar minimamente uma estória palpável. Esse bravo escritor que desafiou a livre tendência do anjo inspirador chama-se K., apenas K., um que  preferiu ficar no anonimato para não ferir definitivamente a sensibilidade do verdadeiro criador de contos, roteiros e ensaios, que é o anjo inspirador, ou a Musa. “Agora já estamos adentrando o capítulo dois desta tese”, que é quando a cultura, ou Cultura com C maiúsculo, toma conta de um coração inocente. Há que se informar. Quem não se comunica se trumbica. Convive-se com a Cultura em pinceladas curtas. Ela, a Cultura, é matrona, beberrona e falastrona. Amiúde leva-nos ao bordel, do bordel ao solar, do solar à perdição irrecuperável, da perdição irrecuperável ao prestígio da História. Que haja aqui uma diferenciação, pois no início se denominou o narrador como célula máter da Estória, com E, no entanto a Cultura, com seu aparente encanto conciliador, sempre quer levar o texto, mesmo os que trazemos com rédeas curtas, para a História com H. A maior parte dos pontos cruciais de uma narrativa está nas mãos da Cultura, que confabula com a Musa e finalmente contestam tudo o que o escritor pensar que seja definitivamente seu. Em geral, isso não é raro, o escritor desiste de brigar com essas duas comadres e deixa o texto na mão delas, confiante de obter assim um escrito memorável, com um bom enredo e um final feliz. “Com mais este arremate, chega-se ao capítulo três da rapadura, isto é, da escrita”, aqui a situação foge do controle definitivamente. Este capítulo três trata da conciliação do texto com a Literatura. Num verdadeiro ninho de mafagafes. Há um tratado das Tordesilhas neste andor. Separa-se a Literatura na origem, desde o primeiro berro da criança-texto na incubadora, da escrita do jornalista, das teses de formatura, das arengas de mãe aflita, dos chilreios de românticos incuráveis, das mesmices de dissertações em aula, dos textos chinfrins de eternos desocupados e, entre outros, também dos textos normativos dos oficiais de cartório. O autor convive aqui com essa face dura da realidade. Ele há de se perguntar sempre se o que escreve é “literatura”, isso é comum do autor fincar o pé e afirmar categoricamente que o texto dele, sempre prá lá de ótimo, é “literatura mesmo”. O escritor aqui se porta como um Sisifo ao carregar a Pedra Literatura para o alto do morro da conciliação, entretanto, num desatino dele, a pedra volta a rolar morro abaixo e ele tem de recomeçar tudo de novo. No entanto, a aranha vive do que tece. No escuro todo gato é pardo. O pote de tanto ir à fonte há de se quebrar. Mais vale um pássaro na mão que dois voando. Eis que o autor acaba por se aproximar da casa da perseguida Literatura.  Agora é o caso de falarmos diretamente com ela: “Ôi você... Não quer sentar um pouquinho aqui ao meu lado? Conta só para mim, quem realmente é você, Literatura? Está feliz em tentar agradar a escritores gregos e escritores troianos? Porque não segue seu destino verdadeiro de ser aventureira e eterna pedra que rola? Porque você se torna santa nas mãos dos que catalogam os chamados livros oficiais da elite literária?”. Contudo o que o autor, somado com a estória, mais a Cultura, mais a inspiração, devem fazer é não ligar muito para a volúvel Literatura. Uma hora dessas ela aparece, e vai ficar abanando o rabo na frente da casa do escritor. Basta que certa noite ele olhe para fora, isto numa noite trevosa, quando o texto dele estiver ali, feliz ou aflito, boiando em azuis e cinzas, desistindo quase de aparecer na ribalta do existir, na tela do computador, e o autor verá, definitivamente, entre um ou outro clarão de raios, ele notará sem muita certeza, lá fora, sozinha de dar dó, aquela cachorrinha doida, ela própria cheia de ilusões, dando giros e mais giros para capturar a própria cauda, doidinha para participar de seus textos, enfim, a Literatura. 

Beto Palaio 

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