sexta-feira, 20 de maio de 2016



VIDROS EMBAÇADOS

Faz de conta que está bom. Uma jaqueta de couro esquecida no canto do sofá. Houve uma confusão quando guardaram os LPs em capas erradas. Ray Coniff foi parar na capa do Rubber Soul. Johnny Rivers se ocultou na embalagem de Brenda Lee. Na outra sala. Coca-Cola com rum. Um jovem de quinze anos desmaiou e foi levado para o quarto. Deram amoníaco para ele cheirar. O moço acordou vomitando. O twist parou subitamente. Vamos dançar, disse a aniversariante, esquece esse bobo. Os jovens ficaram do lado de fora. Sob as árvores. Curiosidade matou o gato. Sem nenhum lugar especial para ir. Dentro do fusca. Em volta dali. Alguém bateu no vidro do carro que estava embaçado. Ela ouviu baterem no vidro. Pararam de se beijar. Eu ouvi tocarem uma música de sucesso. Quis descer do carro para ver quem batia no vidro. Mas ela me pediu para ficar. Logo tudo fica quieto novamente. Um grilo cantava lá fora. Bolas de fogo giravam longe dali. Estrelas no firmamento. Quis tocar em seus seios. Ela se ajeitou por um tempo. Depois foi sincera. Eu nem namoro com você. Não tome liberdades comigo. Abriu a porta do fusca e saiu.

Preferia não. Fizeram o que podiam. Cada um começou seu começo. Viver é um horror. Ali estávamos nós. Suando o bom suor. Sequer em separação pensávamos. Tudo o que sabemos, firulas ou estórias. Deixe que falem, ninguém se importa. Uma janela pregada com ripas. O tempo de se lembrar não chegava nunca. Nossa cama desperta para os corpos nus. Fronhas, loas, abricós, mágicas, lábios, pétalas, perfumes, calor, ódios, tolo amor. Aliás o que é um poema? Lufa-lufa de folhagens, você e eu, andamos aquela alameda, perdemos a rua de vista, na areia da praia, convite para abraços tímidos, bem dentro de nós, o momento perdurava, sempre olhando o mar, nossas mãos se tocaram, um ruído de trovão ao longe, na linha do horizonte, nossos olhares, ao descaso das palavras, nos beijamos loucamente, sem nenhuma pressa, por favor, ama-me.

Adeus. O tempo chegou para que disséssemos adeus. Nem imploramos por alterações de datas. O que é um contrato de casamento? Adeus, adeus. Faz lua nova lá fora. Isto não é tão importante assim. Ela não pertence mais ao meu mundo. Recomeçarei. Estivemos juntos por um milhão de anos. Disse-lhe amor. Pedi clemencia. Um beijo que nunca mais trocamos. Estrelas que se findam. Em resumo. Adeus. Os pentes e perfumes ficaram para trás. Verdade. Tudo é ilusão. Há música no ar. Piano, maracas, bolero, sons de seguir em frente. Descaso. Fizemos o que deveria ser feito. Adeus. Preferia não. Bonequinha linda. Cabelos de ouro. Pele de veludo. Fica. Diz que me quer. Diz que me quer como eu te adoro. Lábios que ela pinta. Um vermelho diabólico. A brisa dança na cortina de voal. Boneca de porcelana. Fria. Nem olhou para trás. Adeus.

Uma pequena coleção de cartas. Lidas agora como se fossem poemas. Alguns netos se importam. A única razão para lê-las era a troca de ofensas e palavras indecentes utilizadas pela avó. Para o equilíbrio do jarro de vidro que subiu as escadarias do sótão nas mãos do irmão mais novo. O que vocês querem fazer com essa poesia toda? Marina, morena bonita, perguntou sorridente. Acho que o avozinho nem se lembra mais dessas cartas. Perguntem para ele. Por esse tempo, religiosamente, não havia solução para a velhice que cansa e atrofia. Por alguma razão o futuro estava oculto na carapaça de um momento presente que não passava nunca. As crianças, seus netos, nunca envelheciam. Agora a porta da frente se abriu sozinha. Um vento bateu dentro de mim. Olhei para fora e avistei uma lua de prata no céu. Um tesouro que jamais alguém se importaria. Porque a vida é assim? Ainda nesta semana fomos todos ao túmulo da avó. Marina chorou ao depositar sobre a campa uma linda rosa vermelha. A imagem que se captura. Uma entrega aos pedaços. A rosa e a dor da saudade ficaram para trás. Faz muito frio no carro que nos leva de volta. Meus óculos de velho ficaram com as lentes embaçadas. Quem quer saber dessas coisas?


Beto Palaio

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