VIDROS EMBAÇADOS
Faz de conta que está bom. Uma jaqueta
de couro esquecida no canto do sofá. Houve uma confusão quando guardaram os LPs
em capas erradas. Ray Coniff foi parar na capa do Rubber Soul. Johnny Rivers se
ocultou na embalagem de Brenda Lee. Na outra sala. Coca-Cola com rum. Um jovem
de quinze anos desmaiou e foi levado para o quarto. Deram amoníaco para ele
cheirar. O moço acordou vomitando. O twist parou subitamente. Vamos dançar,
disse a aniversariante, esquece esse bobo. Os jovens ficaram do lado de fora.
Sob as árvores. Curiosidade matou o gato. Sem nenhum lugar especial para ir.
Dentro do fusca. Em volta dali. Alguém bateu no vidro do carro que estava
embaçado. Ela ouviu baterem no vidro. Pararam de se beijar. Eu ouvi tocarem uma
música de sucesso. Quis descer do carro para ver quem batia no vidro. Mas ela
me pediu para ficar. Logo tudo fica quieto novamente. Um grilo cantava lá fora.
Bolas de fogo giravam longe dali. Estrelas no firmamento. Quis tocar em seus
seios. Ela se ajeitou por um tempo. Depois foi sincera. Eu nem namoro com você.
Não tome liberdades comigo. Abriu a porta do fusca e saiu.
Preferia não. Fizeram o que podiam. Cada
um começou seu começo. Viver é um horror. Ali estávamos nós. Suando o bom suor.
Sequer em separação pensávamos. Tudo o que sabemos, firulas ou estórias. Deixe
que falem, ninguém se importa. Uma janela pregada com ripas. O tempo de se
lembrar não chegava nunca. Nossa cama desperta para os corpos nus. Fronhas,
loas, abricós, mágicas, lábios, pétalas, perfumes, calor, ódios, tolo amor.
Aliás o que é um poema? Lufa-lufa de folhagens, você e eu, andamos aquela
alameda, perdemos a rua de vista, na areia da praia, convite para abraços
tímidos, bem dentro de nós, o momento perdurava, sempre olhando o mar, nossas
mãos se tocaram, um ruído de trovão ao longe, na linha do horizonte, nossos
olhares, ao descaso das palavras, nos beijamos loucamente, sem nenhuma pressa,
por favor, ama-me.
Adeus. O tempo chegou para que
disséssemos adeus. Nem imploramos por alterações de datas. O que é um contrato
de casamento? Adeus, adeus. Faz lua nova lá fora. Isto não é tão importante
assim. Ela não pertence mais ao meu mundo. Recomeçarei. Estivemos juntos por um
milhão de anos. Disse-lhe amor. Pedi clemencia. Um beijo que nunca mais
trocamos. Estrelas que se findam. Em resumo. Adeus. Os pentes e perfumes
ficaram para trás. Verdade. Tudo é ilusão. Há música no ar. Piano, maracas,
bolero, sons de seguir em frente. Descaso. Fizemos o que deveria ser feito.
Adeus. Preferia não. Bonequinha linda. Cabelos de ouro. Pele de veludo. Fica.
Diz que me quer. Diz que me quer como eu te adoro. Lábios que ela pinta. Um
vermelho diabólico. A brisa dança na cortina de voal. Boneca de porcelana.
Fria. Nem olhou para trás. Adeus.
Uma pequena coleção de cartas. Lidas
agora como se fossem poemas. Alguns netos se importam. A única razão para
lê-las era a troca de ofensas e palavras indecentes utilizadas pela avó. Para o
equilíbrio do jarro de vidro que subiu as escadarias do sótão nas mãos do irmão
mais novo. O que vocês querem fazer com essa poesia toda? Marina, morena
bonita, perguntou sorridente. Acho que o avozinho nem se lembra mais dessas
cartas. Perguntem para ele. Por esse tempo, religiosamente, não havia solução
para a velhice que cansa e atrofia. Por alguma razão o futuro estava oculto na
carapaça de um momento presente que não passava nunca. As crianças, seus netos,
nunca envelheciam. Agora a porta da frente se abriu sozinha. Um vento bateu
dentro de mim. Olhei para fora e avistei uma lua de prata no céu. Um tesouro que
jamais alguém se importaria. Porque a vida é assim? Ainda nesta semana fomos
todos ao túmulo da avó. Marina chorou ao depositar sobre a campa uma linda rosa
vermelha. A imagem que se captura. Uma entrega aos pedaços. A rosa e a dor da saudade ficaram para trás. Faz muito frio no carro que nos leva de volta. Meus óculos
de velho ficaram com as lentes embaçadas. Quem quer saber dessas coisas?
Beto Palaio
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