sexta-feira, 4 de novembro de 2011



O PÉ DE CHUCHU DE MINHA AVÓ E A REVOLUÇÃO DE 64.


Porque esse xis? Apague o xis. Ponha. Um pouco de cor lá. É tudo amarelo lá? Porque essa cor de palha? Tudo é feito de palha? Guardando o material de classe. Faltam dois minutos para darem o sinal de saída. Indo direto para o anexo da sacristia. Um catecismo para cumprir a primeira comunhão. “Só tu conduz. A graça, a luz”. O menino dormia até no ônibus urbano. Indo. Sempre de sono. Em sono. Sem perspectiva nenhuma. O povo é submisso. Correrias. Tudo para lá. Na volta. Tudo para cá. Na ida. E chega o final do dia. Abro o portão de casa. “Oi mãe, cheguei”, era assim que eu sempre entrava em casa. “Mãe, você acha que o mundo vai acabar mesmo em 1960?”. Perguntinhas que caíram no gosto popular em 1959. O desenho todo era caótico. Entretanto. Zefa garantiu que sim. “Uma beleza de rabisco no papel de embrulho”. Sonatas sobrenaturais para viver o corriqueiro da folhinha. Perda de tempo colorida. Perfume de bolo no forno. Picadinho de sabonete para fabricar detergente. “Não chateia, meu filho... E leva esse pedaço de bolo para sua avó”. Lá vou eu com um pratinho embrulhado em guardanapo de pano. “De mãe para mãe”. No correio do coração. Mãe é Zefa. Mãe é Maria. Mãe é Catita. Mãe é profundidade. “Pode melhorar a sombra desse abismo no desenho. Assim está sem profundidade”. Minha mãe ouvia novela no rádio. Intensa Magia. Lá fora, entretanto, surgiam as marcas, surpresas engatilhadas, dos anos sessenta. O pavão de Janeiro de 1960 mostrava suas belezas fugazes. Um fósforo Granada: minha namorada se chama Ana, eu lhe pedi Grana, ela disse que não tinha Nada. Por pouco. Ali perto. Assistimos ao adestramento de compasso do exército brasileiro. Perdidas ilusões. Comercial de TV com o Brasil de calças curtas. Cinema gratuito antes do filme principal. Uma chuva de granizo acabou com o chuchuzeiro da vovó. “Renascerá, em outros quintais. Este aqui. O meu chuchuzeiro, nunca mais”. Vidas que passam como luzes que se apagam. Mas enquanto viveram. Foram. Rosas por demais honrosas. Especialmente na palavra ternura. Votos de felicidade pelo novo ano. 1960. Irreconhecível, no diário, onde coisa alguma é besteira. “Esse menino não tem dono?”. Tal e qual. Cabelo e pés encardidos. Um pequeno hippie temporão. Eu ficava sentado do lado da máquina de costura de minha avó. Observando que ela costurava fardamentos verdes para o exército brasileiro. Depois minha avó juntava a produção da semana. Sábado era dia de féria. “Vamos ser úteis para a pátria... Ou você pensa que a vida é só brincadeira?”. Ia com minha avó Maria entregar a costura no quartel em Santana. Tanto pacote verde-azeitona saía daquele taxi! Vai ver que foi minha avó quem colaborou indiretamente para a Revolução de 1964: “se ela se recusasse a costurar para o exército brasileiro. Será que haveria aquele enxame de soldados na rua em Março de 1964?”. Livre pensar é só pensar. Imaginemos então que a tomada de poder pelos militares em 31 de Março de 1964 não tivesse dado certo. Logo surgiria o revide dos comunistas: “junte as coisas, vó... A contra-revolução vem aqui confiscar sua máquina de costura Singer”, e ela, luz no que estaria acontecendo, diria simplesmente, enquanto ainda, continuaria impávida e colossalmente, costurar uma calça verde-azeitona: “sou o tipo de mulher que não nasceu para ser caçada”. Quietamente. No quintal pobre. Lá fora, perto do muro. Uma muda de chuchu foi replantada. As folhas pequeninas despontam. Não há pressa. Logo, talvez em 1967, ou 1968, o chuchuzeiro da vovó estará novamente carregado de chuchus.



Beto Palaio


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