quinta-feira, 24 de novembro de 2011


TRINTA E TRÊS INCLUSÕES AVULSAS DE DEUS


(Para Marguerite Yourcenar)


Deus está em tudo. Mas. Geralmente. Com os olhos semicerrados. Nos sentimos uns trastes quando acordamos. Mastins do sono que ainda nos perseguem. Um olhar torto para o céu que está revestido de nuvens escuras. O mar de manhã é, na friagem, tão inimigo de espalhar águas agradáveis. Talvez. Por estar oculto. Numa confraria de neblinas que teimam em esconder a beleza das águas que se espicham e voltam ao mesmo lugar de antes. O pensamento nos leva a outras umidades latentes. Como a certos nichos instalados na serrania acolá, também camuflada. Nestes recantos. O barulho das fontes nos rochedos rolando sobre paredes ígneas. Um milagre de ofertas tão diversas que nos ocorrem. Próprio do ventar permanente que açoita o mar em direção à uma pequena ilha. Ou aqui mesmo, neste jardim ocluso, uma abelha que procura por seu sustento de flor em flor. Alguns bancos de madeira já carcomidos pelo tempo. Uma praça pouco freqüentada, mesmo no verão. Pouco tempo antes. Dois meses para sermos exatos. Um cálido final de tarde. Mostrava um conjunto de pássaros que partiam para veranear no sul. Este vôo triangular dos cisnes parece que se repete nas nuvens que agora correm. Repleta de cordeirinhos recém-nascidos. Frios que se adivinham. Nas vozes que chegam desde galpões forrados de feno. No mugido doce da vaca, o qual não difere muito do selvagem touro. Ou do mugido paciente do boi. Todos lamentam pelo capim seco. Sonham com seus prados particulares. Quentes como o fogo vermelho no fogão. Ideal para as narinas cansadas do confinamento. O cheiro do capim novo brotando da terra. Quando os passarinhos de vôo curto surgem no meio dos tufos de grama. Também eles cultuam a terra boa. Os gorjeios que repetem a harmonia de uma peça musical milenar. Pacientes talvez. Como a garça que esperou toda noite, meio enregelada, e que vai matar sua fome ao nascer do sol. Frêmito de vida. Regida fielmente. Por um. Deus que existe. Mesmo no peixinho que desistiu de lutar, já agonizante no papo da garça. Um resumo que não agrada. Ao final feliz todos somos capacitados. Assim pensamos. Que a vida não passa de um capricho de algum louco quixotesco. O desmiolado que se apresenta para torcer nosso nariz quando pedimos carinho. Dele não planejamos dúvidas. Um toque de razão que acaba por nos tornar também ridículos. Quando nosso tato se revela. Mãos que entram em contato com o que existe. De frio, de tépido, de quente ou de afável. Nossa pele e toda superfície do corpo. O olhar que tudo abrange. As nove portas da percepção. Um corpo querido que revele algures. O torso feminino ao espelho. Som de beijos em acolhida. O farfalhar de roupas que se espalha no afã do amor. O som da respiração apressada. Ao passo de danças. Som de viola num repique. Som da flauta indígena prestigiando o vôo do condor. Um gole na aguardente que queima nossa alma. Um gole na água fria que corre entre pedras num riacho. O vinho à mesa. Ofertas. Do pão que sacia nossa fome. Mãos que se procuram. Passos por um caminho sombreado por árvores frutíferas. Súbito. A revelação de flores que nascem para cumprimentar a primavera. Um sonho tudo isto. Como um bom sono na cama. Nossa juventude preservada na aragem. Uma réstia de conhecimento que se afirma. Como um cego que canta sua canção decorada. Uma criança proibida de brincar com outros garotos. Mesmo na febre da enfermidade temporária. Adivinha que outros passos infantis brincam ali perto. Tal qual cavalos que correm em campo aberto. Frutos de nossa livre vida. A cadela sendo seguida por sua ninhada. O sol nascendo sobre um lago enregelado. Ou o relâmpago silencioso. Mesclando o céu de certezas. Um temporal que jamais irá se apresentar. Quando num repente. Um estrondo de trovão. E a conversa de dois amigos silencia. Aquela voz abrupta, gigantesca, que veio do leste, entra pela percepção de nossos ouvidos, e nos ensinam mais uma das músicas de Deus. A voz grave do relógio de prata de nosso Criador. Se a gente reparasse. Viveríamos a cada instante imersos na alegria de existir. Devolvendo para Deus a prata mesclada com o ouro dos nossos sentimentos.


Beto Palaio



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