sábado, 28 de abril de 2012


...Quer que a gente lhe sofra? Quer que lhe aperte a alma com nosso alicate?


ALÊU E A SEREIA (XV)

OinferNOn+aTERra= Como pode a realidade intangível desandar numa miríade de fenômenos que se transformam neste mundo deveras palpável?  Onde tudo nasce, pedras e fetos. Ao toma lá, dá cá. Um dia tudo vem a fenecer. Fui, foste, foi, fomos, fostes, foram. Num palco onde se encena a vida que promete o reviver. Como um pêndulo que vai daqui para ali, e depois volta para retornar outra vez. Neste avançar e recuar de ondas. Um ditirambo inscrito pelas leis da atração gravitacional. A política em algo se assemelha ao bravo pêndulo. Vai-se também daqui para ali, num átimo, para depois recuar à mesma posição. Neste caso sem que nada disto servisse aos propósitos humanos. Assim, proscritos. À herança e à decrepitude, a população deve penitenciar-se. Se usufruem, é mágica. Se passam fome, é fastio. É que a democracia tem uma monstruosidade lógica. Todos, nós, o povo, somos de antemão culpados do nosso próprio destino. E é nesse avesso de fatos que o Estado Autoritário se esconde. Ali, num covil especialmente instrumentado em autoritarismo, há desprezo e deserção para seus liderados. Sofre nesse desterro o próprio cidadão, o indivíduo civil. Ocorre que. As civilizações vêm e vão por demais confiantes, e a cobiça à todos subordina. Eis que este miserável artifício alastra-se de norte a sul do Brasil. Onde o Estado Burguês é uma quimera, e o Estado Proletário uma vaga sugestão literária. Nesse ambiente controverso ditam-se regras de bom viver. Não se importando de que lado se rói a corda. Ela que estoure do lado mais frouxo. E de que lado estamos falando? Eis os fatos: Pedro Henrique Cabilé queria ser jornalista. Era ligado ao grêmio da escola onde o Alêu fazia um curso de supletivo para tentar entrar na universidade. O Pedro Cabilé quis porque quis escrever e editar um livreto de cordel onde ele esmiuçava o sofrimento de certa Vaca Democracia na mão de um peão de fazenda que, nesta referida estorieta, tinha um perfil parecidíssimo com o do Presidente da República. O Cabilé andou distribuindo o livreto por aí, gratuitamente, a quem quer que fosse e estava orgulhoso da sua literatura. Os estudantes riam dele, pois não entendiam nadinha da estória, que era enroladíssima, apenas achavam que era algo importante a partir da ilustração, já na capa, de uma vaca cheia de bernes sendo pisoteada por um jagunço que tinha a cara do Presidente da República. Inclusive o tal livreto passou a ser visto como estandarte da legitima prova de coragem do Cabilé. Ocorreu, inclusive, do livreto da Vaca Democracia ser fixado no mural do grêmio na escola como sinal de vitória da classe estudantil. E assim a tal Vaca Democracia ganhou pernas e se espalhou para além do universo ginasiano. Ocorre que, como todos na classe ganharam o tal livreto, o Alêu também ganhou o seu, mas não estava nem aí para aquela estória idiota de uma vaca imbecil sendo morta por um vaqueiro que usava um quepe de general do exército... O Alêu, muito prático, via o livreto apenas como um útil e reles pedaço de papel em que poderia desenhar seus corações apaixonados no qual anotava as palavras "Alêu e Mangagaí". Coraçõezinhos que ele cuidava de fazer atravessar por uma flecha desenhada com todo carinho. Neste enlevo. Alêu estava justamente desenhando corações no livreto, quando entrou na sala de aula um bando de policiais que foram como gaviões esfaimados para cima do Pedro Henrique Cabilé. Foi uma luta corporal bastante desigual, onde colocaram o Cabilé de rosto espremido contra os tacos de madeira da sala, depois deram chutes à vontade nele. Em seguida arrastaram-no porta afora com a boca sangrando e algemado. O Pedro Cabilé esperneou, mas foi agilmente arrebatado de dentro daquela sala de aula. Neste fuzuê, um jovem cabo da Polícia Militar, inspecionando entre as carteiras da classe, viu o Alêu com o livreto da Vaca Democracia. E assim arrematou: “você vem com a gente também... Sem chiar, tá... Vai falar com o Doutor Delegado... E me dá aqui esse livrinho que é a prova de que você também tem pouco juízo!”. Alêu não chegou a ser algemado, mas foi jogado dentro do camburão de polícia junto com o Pedro Henrique Cabilé. Ambos trancafiados como dois animais. E assim o rapto oficial dos dois tem início, com todas as sirenes ligadas como um sinal de júbilo para os “caçadores”. Deste modo, chegando à Delegacia, os mentores da lei estavam babando para iniciarem as interrogações. Um e todos falavam quase ao mesmo tempo. Ali estava também um Sargentão, coincidentemente o dono do cão Varuna, que morava na rua de Aleuzenev, e que milagrosamente partiu em defesa deste. Ao que disse para os outros que por aquele “menino” ele observaria. “Deixem ele em cela separada, esse aí eu conheço... É morador em nossa vizinhança... Não tem problema que eu respondo por ele...”. Então separaram os dois, sendo que Alêu foi trancado numa cela privativa no segundo andar, enquanto Pedro Henrique Cabilé foi arrastado para o porão. Lá cevaram o infeliz no interrogatório: o que você está olhando? Quer namorar com a gente? Quer cagüetar alguém? Você não é escritor? Não sabe tudo? Quer agora dar a sua opinião? Ou quer que lhe enfiemos o cassetete goela abaixo? Ou seria melhor... O cassetete enfiado no seu rabo? Quer falar? Não quer falar? Vai cooperar? Quer voltar a ver a vida lá fora? Vai cooperar? Então não vai falar? Quer que a gente lhe sofra? Quer que lhe aperte a alma com nosso alicate? Quer que lhe cutuquemos o miolo da sua unha? Quer que a gente lhe enrabe? Quer entregar mais alguém? Quem é seu chefe? Vai se abrir? Ah, só quer ficar quietinho? Olha, ou você fala, ou a gente, inclusive aquele negrão gigante ali, vamos todos te enrabar já, já! Não quer cooperar? Então vamos mostrar as lingüiças para ele minha gente!”. Em seguida um desses brutamontes deu um tapa na cara de Cabilé e este começou a chorar alto. Depois outro tapa. Logo estavam amarrando o prisioneiro num cano de ferro, onde foi dependurado para “melhor contar o que tivesse que contar”. Assim espremido e de ponta-cabeça, Cabilé vomitou até o que não comeu e entrou em desespero. Queria confessar coisas sabidas e inventadas. Iria contar o que eles quisessem. Mas queria sua mãe. Chamava sem parar por sua mãe. Nisto um dos torturadores, naquele local nefasto e nauseabundo—lugar especificamente criado pelo próprio capeta—envolveu sua cabeça com um saco plástico para fazê-lo sufocar e mostrar-lhe claramente quem mandava por ali. Ao meio de uma tortura absurda ouvia-se os gemidos de Cabilé ao longe. Em seguida um outro retirou o saco plástico para sugerir que enfiassem um ferro no rabo do interrogado. Cabilé definitivamente entregou os pontos, balbuciou que não era comunista de jeito nenhum e que, por curiosidade, comprara um livro de Marx. Que chegou a ler as orelhas deste livro O Capital, mas que não tinha lido nadinha do miolo. Disse também, entre um choro e outro, que não era filiado ao Partidão e nem tinha nada a ver com os atentados terroristas, pois era apenas um estudante. Não passava de um zé-ninguém. Que fossem conferir o que estava falando. Só tinha escrito aquele cordel por pura brincadeira. Não teve intenção nenhuma de causar mal a quem quer que fosse. Nisto um dos torturadores sentenciou aos berros: “cala a boca, seu perrengue filho-da-puta, ninguém aqui quer ouvir suas ladainhas... Comunista vagabundo tem é que se ferrar... Chupa que a cana é doce...”. Dizendo isto desferiu seu cassetete mirando as costas de Cabilé, mas calhou da pancada atingir em cheio a nuca do prisioneiro. Naquela ação covarde, Pedro Henrique Cabilé estava dependurado de ponta-cabeça, no cano do pau-de-arara, no justo ensejo de receber a tremenda cacetada. Então Cabilé desfaleceu...  

Beto Palaio


Arte: Rubem Grillo

Nenhum comentário: