quarta-feira, 18 de abril de 2012


Uma pausa para afastarmos a pedra do meio do caminho.

ALÊU E A SEREIA (XII)

DaVIdae+Damorte= Façamos o seguinte. Uma pausa. Para refletirmos sobre uma estrofe camoniana. Onde o mestre lisboeta deitou sabiamente, na mesma fina porcelana, a pusilânime morte que retrocede seus passos, flauteia com a vida e, por fim, troca de destinatário: “Um filho próprio mata, e logo acusa. De homicídio à Tomé, que era inocente. Dá falsas testemunhas, como se usa. Condenaram-no à morte brevemente. O santo que não vê melhor escusa. Quer apelar para o Padre onipotente. Quer, diante do rei e dos senhores. Que se faça um milagre urgentemente”. Diante desse jogo de consortes duplicados. No afinado ofício do toma lá, dá cá. Saímos desta maneira caçando luas vagas, amanhecendo dogmas e desfraldando bandeiras filosóficas. Tudo para afrontar a persistência do esfaimado diapasão, para o qual Platão, Kirkegaard ou Spinoza muito se esmeraram sobre o tópico. Assim, ó criatura devota das letras, algo de sopetão, pense e responda: a vida o que é? Ofício pagão de melhor dádiva? Uma pena do supra-mundo munida de tinta ilimitada? Um alto-relevo que produz uma flor soçobrada em claro e escuro? Um alvo cristal, pedra rara, a contemplar a luz diáfana da fortuna? Um verso que engasta uma rima e produz algo inesperado? Uma Deusa, angélica e inspirada, de ações multiplicadoras ad infinitum? Um adágio, uma centelha, um algo, um tudo, um universo acabado? Pense e responda: a morte o que é? O fim do ar que se respira? A mão ressequida da Fada Negra? Uma gilete na veia carótida? Ou algo como a lâmpada dos sonhos, que alcança píncaros inusitados, para depois descer aflita, desde o Palácio das Ilusões, das mãos do Criador, donde saltita, saltita e afinal descansa seu eterno paradeiro nas trevas? Pense e responda: a vida o que é? Formas alvas, brancas, angelicais e cristalinas? Formas impossíveis, ilimitadas, iluminadas por mil sóis ou mil luas, a refletir o branco da neve ou a mergulhar nos geradores recônditos das neblinas clorofiladas? A vida é tudo o que ocorre nessa miraculosa essência alquímica, ainda ao som do persistente troar do Big Bang? Pense e responda: a morte o que é? Seria a morte um desproporcional vazio? No vulgo, a discorrer, chamam-lhe inclusive Fatalidade, e de seu inquieto interesse, permanece a pungente escolha de decepar, anular, enguiçar, desprover ou minguar; a propor ainda o demônio no meio do redemoinho para engendrar suas trapaças? Pense e responda: a vida o que é? A vida é aquela que estica os prazos, assim como no forró se estica o fole? Não estaria ela, entretanto, bem ao longe, com suas manias prescritas, sendo sutil admiradora de navios de guerra, aviões de carreira, zepelins flamejantes e vingativos comboios militares? Pense e responda: a morte não seria uma bruxa faceira, de bela fala, que surgiu com pouca labuta, como dama de honra, à aniquilar traçados alheios? Não seria esta que em fantasmagórica visita, declamando versos de fidelidade, dos resolutos e inventados, a nos embalar por breves instantes, após o que trai, trapaceia e inverte seus desígnios ao nos apartar de nosso querido fado? Pense e responda: a vida é sempre o fulgor do inverossímil? Levada aos numerosos adversários, aos traidores, aos insanos, não seria ela, neste intento, apenas uma indelicada perfídia? Sendo má como o vinho que azeda o tonel, ou o vício que inviabiliza a disciplina, ou amaldiçoada qual o ái-me-acuda de um morre-não-morre infindo? Pense e responda: à morte sempre se reserva opróbrios de faces escarlates, línguas pérfidas, beiços rubros e estremecimentos repetidos por tortuosas trilhas? Sente-se acolá, a morte, que nem febre nem infecção grave havia, mesmo assim firmemente atua, a despeito de desalento ou carícia, neste caso, seus aconchegos doces, convencidos, estavam antecipadamente afeitos à ceia fatal? Pense e responda: a vida, ela própria, com metódicos suspiros de refazimentos, poderia agir somente pela sugestão do que quer que fosse, com uma constatação, diríamos, ao acaso? E não é que sempre acusamos a vida de ser viciada em aspirar tempo, em injetar tempo, em bebericar tempo? Pense e responda: a morte seria uma sádica, que se põe ao regalo, em gratificada lambança, por decepar alegres e vitais pulsações? E não foi algo providencial e súbito que, abrigado em disfarces, um frágil pombinho negro se apresente e bata insistentemente à nossa janela? Pense e responda: a vida não está a deslizar, em ritmada eloqüência, cheia de músicas saltitantes e peças da temporada, a dobrar-se como referida criada, como que fustigada, a viajar de palco em palco, incansavelmente? A vida fosse deste modo, estaria ela, sendo amaldiçoada, negada até, sendo pontuada, neste vil propósito, de arrependimentos? Pense e responda: a morte ronda e nos segue por horas a fio. Dias, noites. De sol-a-sol. E a aniquilação de milhões de criaturas, quando bem lhe aprouver, não lhe basta como motivo de contrição? Observem então este arremate: a danadinha da morte atravessou o povoado, sossegada, metida consigo mesma, a observar uma criança que o mar apartou da areia; ou mirando, sem pressa, uma inteira família, às curvas, dentro de um carro; ou admirando um meteoro a dirigir-se contra uma cidade distraída; e depois do frio, ou cio, saltita orgulhosa, ao regressar da lama, onde esgrimiu feérica, exaltada, à unha, com a descuidada vida? Coisas que os homens apenas supõem entender, mesmo os mais versados em barganhas aduaneiras, fustigações literárias e arrebatados projetos de administrar o hoje e o amanhã. Isto posto, imaginemos isto: será que não existiria entre elas, vida e morte, uma afeição, mesmo que seja a mais improvável? Após o que. Ao trampolim. Elas. Brincando, saltitantes, alforriadas, bem de perto, fiéis, enlaçadas, uma à outra, ao gosto? Tal o embate do mar com a areia? O bisturi atraído pela carne anestesiada? A mariposa entontecida pela luz? Um eterno duelo do lume com a sombra? Razoavelmente entregues uma à outra? A vida amasiada com a morte? De mãos dadas? Ardentemente? Apaixonadas, cada qual, com seu ofício?...

Beto Palaio

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