segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


 Para sua surpresa Aleu encontra em sua mochila um exemplar do cordel editado pelo finado Pedro Henrique Cabilé, a tal estórinha da Vaca Democracia.


Alêu e a Sereia (XXXI)

TheMyster+yTOur= No ônibus mambembe. Alêu se ajeita como pode e dorme se encolhendo no banco de aluguel. Quando acorda está raiando o dia, e o ônibus acaba de sair de Pernambuco e adentrar no Estado do Piauí. Ele estranha a presença de tanto verde, tanta folhagem. Alêu sente fome e cavouca a mochila a procura de um teco de pão ou de alguma barra de chocolate que ele guardou antes da viagem. Nisto ele acha, ao alcance da ponta dos dedos, um gibizinho. Uma revistinha no meio das tralhas dentro da mochila. Para sua surpresa é um exemplar do cordel editado pelo finado Pedro Henrique Cabilé, a tal estórinha da Vaca Democracia. E saibam que Alêu sequer havia lido aquele estrupício. Mas agora iria ler. Ele era um militar também. O medo de ser confundido com um comunista nem lhe arejou naquele momento. Mesmo assim ele olha, desconfiado, para os lados antes de começar a leitura. O velho Genivaldo está dormindo com o rosto encostado na janela do ônibus. Então Alêu se ajeita para ler a cartilha de Cabilé: “DE COMO O CAPATAZ EMYGDIO TASCOU MEDICINAS PURGATIVAS NA VACA DEMOCRACIA: À cata da própria pata traseira a vaca Democracia encolheu-se toda. Tentou amenizar a ferida e não teve meios de desmobilizar o berne que ali se alojara. Neste instante, nem o frio, nem a chuva, nem o corisco a incomodavam mais que aquele berne. “Ah, houvesse eu me livrado disto lá no pasto...”. Com dificuldade ela vem mancando em direção ao mangueiro. Chegando lá os povos animais se amontoavam e querem entrar no cercado, todos de uma só vez. A vaca Democracia espera com calma, pois na dor e no esforço que fez chegando até ali, só imaginava agora ficar num cantinho e dormir em paz. “Onde dormem três, dormem vinte, dormem cento e trinta...”. Ela entrou no curral e, por um escasso tempo, sonhou que se livrara do berne e que estava soltinha da silva e que se alimentava de uma grama verdinha em meio a um punhado de zebus lindos e saudáveis. Mas ela acorda e grita: “a dor não muuuda... Não muuuda... Não muuuda...”. Ela procurava explicar, aos berros, que o único jeito de acabar com a dor era chamar por aquele meninozinho mulato que já lhe tirou muito leite, mas que também sempre lhe deu carinhos. Queira que o vaqueirinho acordasse e cuidasse naquela dor que sentia na pata. Então a vaca Democracia berrou a noite toda e nem conseguiu dormir. Fantasiava ela que o menino mulato viria ajudá-la a qualquer momento. Com a imaginada solução, a vaca Democracia pensou até que o menino talvez lhe dissesse: "tu és minha vaca preferida... Democracia, não desista nunca!”. Depois, como ela viu que o negrinho não aparecia, desandou a correr de um lado e para o outro. Conclamando talvez por uma possível adesão daqueles bois sonolentos à sua causa. Acontece que num mangueiro compartilhado, o gado, um povo tido como estúpido, ficaria assustado e faria o que pudessem para escapulir. Os bois unidos vazariam por debaixo do arame, evidentemente arrombando a cerca. Um escarcéu que o ajuntamento dos bois criaria na fazenda. Entretanto, no novo sistema de curral, em pontos estratégicos, foram abertos corredores de madeira que se abrem automaticamente para sossegar os mais afoitos. E os aquartelados estão ali numa fuga jamais tentada. Mesmo agora quando ouvem a vaca Democracia choramingar, mas nada podem fazer por ela. Assim, no seguro cercado, a vaca pensa em seu único ato subversivo: continuar sem trégua a espalhar seus tristes mugidos. Entretanto, logo pela manhã, surge o capataz de tanger bois, um tal de Emygdio, um que raramente se revela, movido apenas pela condução de ordens impressas em cartilhas sebentas que recebe da matriz americana, e também contando com um sistema de currais asperamente dispostos para evitar rebeliões. Portanto o capataz Emygdio é apenas um testamenteiro da sentença de todos os manipuladores de bois desde os Estados Unidos da América. Sabe muito bem que para tocar um povo-boi basta acenar levemente uma guia com um agulhão na ponta. Assim, a toque de ferrão, a vaca Democracia foi conduzida ao longo do piquete, já repleta de adivinhações, pois estava marchando num corredor de putrefatos odores sanguinolentos. A vaca Democracia passou por um varal aterrorizante. Um esticado de comércio retalhista onde, anteriormente, o que fora um boi inteiro, agora se repartia em um boi despedaçado. E lá vem a vaca Democracia num extenso corredor onde só pode ir em frente, pisando numa gordura vermelha, na qual adivinhou a fatalidade da sua e da vida de seus iguais. Diz-se coisas terríveis desses matadouros onde o sacrificado não tem opções, morre através de uma martelada certeira no meio do cabeçal dos chifres. Então o peão Emygdio tratou de cumprir seu destino de carrasco, assim levantou e desceu a marreta na nuca da vaca, que amoleceu a língua, tonteou e amontoou no chão. A vaca Democracia sequer soube entender do seu pobre destino...”. Aleuzenev terminou a leitura e não contém seu aborrecimento: “mas que bosta! Como é que assassinaram o coitado do Cabilé por causa de um lixo desses? Tá certo que o nome do Presidente da República aparece disfarçado nesse imbróglio, mas isso não explica tanta violência contra o Cabilé... Ô terra de gente burra!”. Alêu rasgou o livreto em vários pedaços e depois jogou tudo para fora do ônibus. Naquele instante. Ao olhar para trás. Ele vê os papéis picados esvoaçando no meio da rodovia que cortava um trecho de mata fechada no Piauí. “Descansa em paz, Cabilé”, foi o que Alêu desejou definitivamente para o amigo...

Beto Palaio

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