E aconteceu aquilo. A chamada coincidência. Estava Alêu num forra-bucho, um arrasta-pé sem compromisso de hora, quando ele conhece dois cantadores de viola.
Alêu e a Sereia (XXXII)
AMUsadaMU+dança= Debaixo da ponte passa
algumas folhas flutuando e dava para ver o fundo de areia através da água
levemente enferrujada. Alêu, que observava a passagem das folhas
flutuantes, estava refugiado na aquática Belém-do-Pará. Abandonou
repentinamente a carreira policial e caiu, tanto quanto as folhas flutuantes,
no mundo da arribação. Tanto sacrifício para ficar morgando numa pensãozinha
paraense de quinta categoria. Ao redor dali ele estranha tudo. Salvador é uma
terra de pretos e mulatos. Belém é território da mestiçagem de branco com
índio. Mas a raça índia vence a parada. O caboclo domina. Então ele se vê
morando numa imensa tribo, onde os brancos de verdade parecem estrangeiros.
Logo ele descobre que sim. Com os pardos brasilíndios sendo maioria, há denominações
especiais, vindas da parte deles, para os vários tipos de brancos. Ou são os
turquinhos e turquinhas, ou são a alemãozada, ou são os gringos, denominação em
geral dada aos norte-americanos. Fora isso. Alêu estranha tanta água ao
derredor. É recurso aquático que não acaba mais. Um oceano em si que se impõe
com o subir e descer das águas. Onde os pequenos regatos chamam-se furos. Onde
os igarapés são rios pequenos que ligam grandes rios com temporárias lagoas.
Ademais existem as várzeas inundadas. Restos de enchentes. Águas empoçadas das
chuvas. Águas pretas de aluvião. Águas ferruginosas, estagnadas ou não. Em meio
à tudo aquilo, Alêu gosta de andar na beira do porto fluvial. Ele fica horas
zanzando no mercado do Ver-o-Pêso. Encontra ali uma grande variedade de frutas,
madeiras e peixes que o brasileiro comercializa com o mundo todo. Ali ele
conheceu de perto o pirarucu, o bacalhau brasileiro. Peixe demais de grande.
Com olhos mortiços numa cara de bagre. Ele logo fica fã das mangas, também
experimenta a pupunha. E entretém-se em provar as azedas bagas do guaraná. Mas
logo se cansa daquilo tudo. Quer outras novidades. E brevemente as abraça. Pois
até os seus santos de fé mudam. Troca a Iemanjá das praias da Bahia pela Mãe
Dandá, a Yara das águas chocas. E sua sorte está definitivamente lançada. Agora
é nas pedras do cais que o seu destino afia a lâmina de corte. Num remoer de
novidades. O estralado e lento desfile de fatos. Dando viços. Alêu e seu novo
reinado em Belém. Novidades destras e ambidestras.
Que isto já pertence ao texto do diário informante de Aleuzenev da Silva. No
rabiscar da caneta Bic. Anos sessenta para setenta. Justo no tempo em que Pedro Álvares Cabral estava
prá lá e prá cá impresso nas notas de mil cruzeiros. Ele foi, por breves três
meses, o rei das princesinhas da Praça da República. As turquinhas não falavam
de outra pessoa. É Alêu prá lá, Alêu prá cá. Esse danado do Alêu surgiu
acintoso para andar nos trinques. Besteirava em gafieira. Jogo de 21. Bilharécos.
Noitadas de samba quadradinho. Mas principalmente em festas nas baiúcas de
putaria, dotadas de rodadas de fumo e roleta. Deu de se divulgar travado no
copo. Um vício puxa outro. Alêu e o santo absinto. Nos conformes do
insubmisso. Assoviava mirando-se no seu espelhado sapato de verniz, e por
dentro do sucesso das rádios: “se alguém tocar seu corpo como eu, não diga
nada. Não vá dizer meu nome sem querer, à pessoa errada”. Vésperas de grandes
colheitas. Completamente embananado. Sussurrando tons ao léu, só na vadiagem.
Alêu, o mulato insoneiro. Ele servindo de guia para turquinhas desamparadas. As
quengas estagiadas em Belém-do-Pará. Putas importadas. Transcertas de luxo.
Aleu, ao fisgar. Madrugadeiro que era. Gamado na lengalenga que elas usavam:
“ei, gatô... Fáis festa prá iêu... You quer iêu?... Si, non ser bom?... Comer
iêu?”. Entretanto, no espaço do que é reservado. Ninguém mergulha no Rio Jordão
sem querer ser batizado. Estamos na atmosfera ideal e caliente da linha do
Equador. O perambulante Alêu nem dá conta. Que esta sua decantada e doce vida.
É inclusive um tanto circense. Depois de dois meses de farra. Ele resolve mesmo
que seu destino, o verdadeiro, tem de se cumprir. Afinal, não viera ele para
Belém na perseguição de Mangagaí? Pois os fatos coincidentes são claros como as
águas do Guamá. Alêu agora está mais para se tornar um protagonista da farsa do
Boto Tucuxi. De tanto acordar e dormir águas doces. E aconteceu aquilo. A
chamada coincidência. Estava Alêu num forra-bucho, um arrasta-pé sem
compromisso de hora, quando ele conhece dois cantadores de viola. Estes sendo
Santo e Padroeiro. Quando eles segredaram que tinham um compromisso de festa marcada
no Marajó. Onde iriam tocar no São João de um fazendeiro. É que uma morena
linda, de olhos verdes, sobrinha do homem, foi quem contratou a dupla. Isto lhe
disseram os cantadores. Alêu, que já estava correndo sobre as águas da surpresa, perguntou
se sabiam o nome dela. E Padroeiro, o manager da dupla, recordou-se direitinho:
“o nome da moça é Mangagaí”. Será que era verdade? Alêu quis até explodir por dentro de alegria. Olhou
para a baía iluminada pelas tochas e flutuou de verdade. Rumo ao Marajó. Andou
em seu pensamento, por sobre as águas, como se aquilo fosse terra batida. E já
se imaginava colocando Mangagaí em seus braços e se afundando em beijos de
língua, ao mirar aqueles olhos de esmeralda. Agora, com os pés de volta à festa
dos cantadores, ele combina com o Santo e o Padroeiro: “me ajeitem nessa
cantoria de São João... Tenho de ir a esta festa nem que seja dentro da mala de
vocês...”.
Beto Palaio
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