Entretanto os excluídos possuem uma criatividade inquebrantável: cálice feito com lata de massa de tomate Elefante, canequinha de lata de leite Moça, canecão de lata de óleo Havoline, frigideira de lata de goiabada da Cica, caldeirão de lata de querosene Jacaré.
Alêu e a Sereia (XXXIII)
Égrão+Parádecáedelá=O carapanã pinica porque não
aprendeu a lamber. O boi baba porque dorme em pé. O homem sonha porque é extravagante. Quem julga caçar é
caçado. O homem é a única criatura que recusa ser o que é. Um tema leva ao
outro. Toicinho ou toucinho? Boró ou borogodó? É ao crédulo. Pau ou pedra. Do
retratado chapéu Ramenzoni ao humilde quepe feito de folha de jornal. A posse
só sobrevive com um prenúncio de desapropriação. A vida só se perdura nos
opostos. Privilégios nababescos para os reis do monopólio e denúncias vazias
para quem não tem nada de seu. Entretanto os excluídos possuem uma criatividade
inquebrantável: cálice feito com lata de massa de tomate Elefante, canequinha
de lata de leite Moça, canecão de lata de óleo Havoline, frigideira de lata de
goiabada da Cica, caldeirão de lata de querosene Jacaré. Na hora da onça beber
água, o roto sempre vai falar mal do rasgado. Pelo bem e pelo mal. O pão, mesmo
amanhecido, só se valoriza com manteiga Aviação. Tempos de vôos incertos estes.
Aonde os donos da cocada preta, gentes do governo, só andam na trilha dos
favorecimentos. É Coroné prá cá, Coroné prá lá. Os lambe-botas que vivem de
persistir nas migalhas oficializadas. Setembrinos. Os tropicalientes. Do
cartoriante aos advogadinhos de porta de cadeia. Nas marmeladas. Acautelai-vos.
Em casa de saci, uma calça serve para dois. Depois vede. O senador Cristóbal
Tarefeiro faleceu e emprestou seu nome para uma avenida no centro da cidade.
Claro está. Políticos nunca morrem, eles se eternizam nos abonos infindáveis,
mas também nos nomes das ruas ou praças do município. Os que não conseguem
placas de rua põem-se a imaginar outras regalias. Tudo para desandarem no bom
viver da frouxidão. Iguais nesse tanto. À erisipela em banha de muruca. A meta?
Fique feliz com pouco, mas deseje sempre mais. Entretanto. Na outra ponta da
linha. Com seu pé firme em Belém, não obstante seus anseios, de olho somente no
Marajó. Alêu fica só no resguardo, na espera das festas juninas para ir rever
Mangagaí. Por essa esperança ele fica sóbrio e com mais nada se amofina. Deu
até de fumar pouco. Trocou o Hollywood sem filtro por cigarros Minister. Passou
a agradecer os astros e beijar santinhos. Começou a ler romances na rede por
horas a fio. Estórias de cowboys maltratados que sempre se vingam, seja de uma
tribo inteira de índios, seja de um bando de renegados. Estórias de espionagem,
onde o espião sempre encontra um jeito de se livrar da bomba-relógio amarrada
na sua cintura. Estórias de mocinhas de bom parecer, iludidas com meninos ricos
e trapaceiros. Estas e outras estórias do mesmo calibre. Até o ponto de ele
repudiar de vez esse tipo de leitura. Alêu estava lendo por ler um outro desses
romances baratos, onde se contava a estória de duas amigas de infância que se encontram em
Londres depois de afastadas por muitos anos. Quando os filhos delas se conhecem
e passam a se relacionar, nota-se que, enquanto o filho de uma delas tem
atitudes modernas, a filha da outra é retrógrada, extremamente careta e está
sempre envolvida em conflitos de cunhos pessoais. Uma estória envolvente e
contextuada, digna de um premio Nobel da literatura. Mas Alêu desiste de
continuar a ler. Aquilo estava enervante demais. Puritanos a lamentar seus
achaques burgueses. Numa Londres permissiva e coerente. Alêu se compara aos
personagens fictícios. Numa realidade sempre amena para quem já pegou em armas
e viu um bocado de atrocidades pela frente. Forçoso que ele comece a comparar
cidade com cidade. Por exemplo, embora o contexto social de Belém fosse tão ou
mais precário que o de Salvador, Alêu se dá conta que por ali não existem
grupos políticos atuando tanto quanto na capital baiana. Nem a polícia agia por
ali com tanto desrespeito pelo cidadão. Até coisas aparentemente banais que ele
testemunhou, onde o rompimento dos valores sociais eram gritantes. Ele
lembra-se de que assistiu a ação da policia repressiva agindo até contra um
bando de hippies que viviam perambulando pelas praias de Salvador. Observou
quando um investigador separa do meio dos hippies uma garota que era muito
bonita, mas que aparentemente estava tocada pela maconha. Ele ouviu isso do
investigador: “só vamos levar a belezinha aqui... O resto pode continuar
pensando que é flor!... Numa boa!... Numa boa!”. Um pouco mais tarde aquela
jovem seria colocada na desrespeitável tarefa de chupar a bimba de três
policiais que ali estavam. Presumivelmente para arrancar dela confissões
inexistentes. Na qual tarefa eles falavam que se ela mordesse um deles iria
tomar bala de chumbaço no escutador de rock & roll. Isso Alêu testemunhava
sem ter poder ou mando para dar um basta naquilo. Por estas e outras é que Belém
lhe parecia providencial. Por um lado era uma cidade pacata, mas isenta dessas
insanidades. Ao operístico resumo. Ele ficava até agradecido por ter se
proporcionado essa mudança radical. Ao cabo do que. Por absurdo que lhe
parecesse. Havia um leve perfume tutti-frutti no ar. As lides da flora tropical
rejuvenesciam qualquer outro poder ou atavios das águas. Mas Alêu não estava de
todo alienado. Uma lição ele aprendera de todo tempo que passou no meio dos
caça-comunistas. E isso dizia respeito ao embate entre o que era real e o que o
governo militar estipulava como sendo real. Alêu pescou naquele turbilhão de
desencontros e mentiras até intuir, de si para si, que realmente existiam
diversos brasis num só Brasil. Como numa fieira de caranguejos essas enormidades
estavam atadas umas às outras: o brasil-caravana-da-alegria ligado ao
brasil-quadrilha, ao brasil-atoleiro, ao brasil-indisposição, ao
brasil-vaqueiro-sub-agrícola, ao brasil-regalia-dos-outros, ao
brasil-do-brilho-fácil, ao brasil-entreguista, ao brasil-pátria-mãe-gentil...
Beto Palaio
Nenhum comentário:
Postar um comentário