terça-feira, 4 de dezembro de 2012



Lata Antiga  De Goiabada Cascão - Irmãos Alves - Outros Objetos de Decoração
Entretanto os excluídos possuem uma criatividade inquebrantável: cálice feito com lata de massa de tomate Elefante, canequinha de lata de leite Moça, canecão de lata de óleo Havoline, frigideira de lata de goiabada da Cica, caldeirão de lata de querosene Jacaré. 

Alêu e a Sereia (XXXIII)

Égrão+Parádecáedelá=O carapanã pinica porque não aprendeu a lamber. O boi baba porque dorme em pé. O homem sonha porque é extravagante. Quem julga caçar é caçado. O homem é a única criatura que recusa ser o que é. Um tema leva ao outro. Toicinho ou toucinho? Boró ou borogodó? É ao crédulo. Pau ou pedra. Do retratado chapéu Ramenzoni ao humilde quepe feito de folha de jornal. A posse só sobrevive com um prenúncio de desapropriação. A vida só se perdura nos opostos. Privilégios nababescos para os reis do monopólio e denúncias vazias para quem não tem nada de seu. Entretanto os excluídos possuem uma criatividade inquebrantável: cálice feito com lata de massa de tomate Elefante, canequinha de lata de leite Moça, canecão de lata de óleo Havoline, frigideira de lata de goiabada da Cica, caldeirão de lata de querosene Jacaré. Na hora da onça beber água, o roto sempre vai falar mal do rasgado. Pelo bem e pelo mal. O pão, mesmo amanhecido, só se valoriza com manteiga Aviação. Tempos de vôos incertos estes. Aonde os donos da cocada preta, gentes do governo, só andam na trilha dos favorecimentos. É Coroné prá cá, Coroné prá lá. Os lambe-botas que vivem de persistir nas migalhas oficializadas. Setembrinos. Os tropicalientes. Do cartoriante aos advogadinhos de porta de cadeia. Nas marmeladas. Acautelai-vos. Em casa de saci, uma calça serve para dois. Depois vede. O senador Cristóbal Tarefeiro faleceu e emprestou seu nome para uma avenida no centro da cidade. Claro está. Políticos nunca morrem, eles se eternizam nos abonos infindáveis, mas também nos nomes das ruas ou praças do município. Os que não conseguem placas de rua põem-se a imaginar outras regalias. Tudo para desandarem no bom viver da frouxidão. Iguais nesse tanto. À erisipela em banha de muruca. A meta? Fique feliz com pouco, mas deseje sempre mais. Entretanto. Na outra ponta da linha. Com seu pé firme em Belém, não obstante seus anseios, de olho somente no Marajó. Alêu fica só no resguardo, na espera das festas juninas para ir rever Mangagaí. Por essa esperança ele fica sóbrio e com mais nada se amofina. Deu até de fumar pouco. Trocou o Hollywood sem filtro por cigarros Minister. Passou a agradecer os astros e beijar santinhos. Começou a ler romances na rede por horas a fio. Estórias de cowboys maltratados que sempre se vingam, seja de uma tribo inteira de índios, seja de um bando de renegados. Estórias de espionagem, onde o espião sempre encontra um jeito de se livrar da bomba-relógio amarrada na sua cintura. Estórias de mocinhas de bom parecer, iludidas com meninos ricos e trapaceiros. Estas e outras estórias do mesmo calibre. Até o ponto de ele repudiar de vez esse tipo de leitura. Alêu estava lendo por ler um outro desses romances baratos, onde se contava a estória de duas amigas de infância que se encontram em Londres depois de afastadas por muitos anos. Quando os filhos delas se conhecem e passam a se relacionar, nota-se que, enquanto o filho de uma delas tem atitudes modernas, a filha da outra é retrógrada, extremamente careta e está sempre envolvida em conflitos de cunhos pessoais. Uma estória envolvente e contextuada, digna de um premio Nobel da literatura. Mas Alêu desiste de continuar a ler. Aquilo estava enervante demais. Puritanos a lamentar seus achaques burgueses. Numa Londres permissiva e coerente. Alêu se compara aos personagens fictícios. Numa realidade sempre amena para quem já pegou em armas e viu um bocado de atrocidades pela frente. Forçoso que ele comece a comparar cidade com cidade. Por exemplo, embora o contexto social de Belém fosse tão ou mais precário que o de Salvador, Alêu se dá conta que por ali não existem grupos políticos atuando tanto quanto na capital baiana. Nem a polícia agia por ali com tanto desrespeito pelo cidadão. Até coisas aparentemente banais que ele testemunhou, onde o rompimento dos valores sociais eram gritantes. Ele lembra-se de que assistiu a ação da policia repressiva agindo até contra um bando de hippies que viviam perambulando pelas praias de Salvador. Observou quando um investigador separa do meio dos hippies uma garota que era muito bonita, mas que aparentemente estava tocada pela maconha. Ele ouviu isso do investigador: “só vamos levar a belezinha aqui... O resto pode continuar pensando que é flor!... Numa boa!... Numa boa!”. Um pouco mais tarde aquela jovem seria colocada na desrespeitável tarefa de chupar a bimba de três policiais que ali estavam. Presumivelmente para arrancar dela confissões inexistentes. Na qual tarefa eles falavam que se ela mordesse um deles iria tomar bala de chumbaço no escutador de rock & roll. Isso Alêu testemunhava sem ter poder ou mando para dar um basta naquilo. Por estas e outras é que Belém lhe parecia providencial. Por um lado era uma cidade pacata, mas isenta dessas insanidades. Ao operístico resumo. Ele ficava até agradecido por ter se proporcionado essa mudança radical. Ao cabo do que. Por absurdo que lhe parecesse. Havia um leve perfume tutti-frutti no ar. As lides da flora tropical rejuvenesciam qualquer outro poder ou atavios das águas. Mas Alêu não estava de todo alienado. Uma lição ele aprendera de todo tempo que passou no meio dos caça-comunistas. E isso dizia respeito ao embate entre o que era real e o que o governo militar estipulava como sendo real. Alêu pescou naquele turbilhão de desencontros e mentiras até intuir, de si para si, que realmente existiam diversos brasis num só Brasil. Como numa fieira de caranguejos essas enormidades estavam atadas umas às outras: o brasil-caravana-da-alegria ligado ao brasil-quadrilha, ao brasil-atoleiro, ao brasil-indisposição, ao brasil-vaqueiro-sub-agrícola, ao brasil-regalia-dos-outros, ao brasil-do-brilho-fácil, ao brasil-entreguista, ao brasil-pátria-mãe-gentil... 

Beto Palaio

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