quarta-feira, 2 de maio de 2012



O torturado qual cisne branco, num 78 rotações por minuto.

ALÊU E A SEREIA (XVII)

Naçãoluci+nação= Pensem nas vítimas da tortura qual rotas alteradas. Pensem nos chacinados como rosas cálidas. Há um pingo do fulgor da poesia na tragédia. O rio que passou agora é puro lodo. Os desconexos a receberão. O pastoreio da dita cuja. O jererê da morte. A promotora de descaminhos, onde o lúgubre se apresenta, sobretudo com danças, que é quando o cativo entretém-se com a luz e se adentra nas trevas como uma mariposa. No recinto dos cafundós, ao fundo de um escuro tacho. Em desmedida posse, Pedro Henrique Cabilé proclama-se a meio caminho entre os vivos e os mortos. Deserto cá, floresta lá. Ele não é mais governante de si mesmo. Como passageiro VIP da sala de tortura. Agora Cabilé foi mordido por uma imensa boca maldita que engole, faz que mata, mas cospe-o ainda desperto em algum ponto do universo paralelo. Lá onde um bugurundum de tambores toca. E com as alvíssaras dos atabaques surge um hino epidêmico, exaltando o Brasil, qual cisne branco, num 78 rotações por minuto. Passa-se um comboio de luzes entre o real e o irreal. Um hi-fi canta o “Ame-o ou Deixe-o”, numa pronúncia arrastada entre a Bahia e Lisboa. Cabilé, ao mesmo tempo, atingiu o devaneio, que surge no enredar, à ele mesmo, a receber os lençóis do sudário. Naquele local improvável, em lustros, mumificam-no. Canonizam-no. Enquanto uma tremenda gaturana loira, de olhos hirtos, entra a gemer seus ais. Cabilé quis que ela o abraçasse, pensou até que fosse uma enfermeira. Quis que seus dias devocioneiros chegassem a bom termo. Pois sentia uma dor generalizada em seu corpo e via as cenas de seu martírio em duplicata. Comvagar. Pausas para o que nunca existiu. Tanto que ali dentro. Ele viu, em sala e saleta, pessoas à muitos anos mortas e enterradas. Seu professor de Matemática, o Professor Lair, que morrera afogado na Praia Fórde. O finado Mestre Padrinho, capoeirista arretado, que surgiu numa luminosidade tacanha, naquele subterrâneo flutuando, entre o corredor e as ferramentas de tortura. Uma meninazinha que morrera tísica, quando Cabilé ainda era de colo, veio alegrezinha, em cafuné convocatório, acariciar seus cabelos. Naquele sórdido túnel. Fazia-se ouvir um todo de gritos abafados, assovios de vento longínquo e ranger de dentes. Ele agora não se vê mais dependurado nos ferros. Um povo de branco o depositara no chão e, especialmente para ele, desfilavam suas orações fúnebres. No mesmo instante, por ali surgiram, no correr do missal, alguns familiares durandeiros, já no plano espiritual, os quais ele conhecera apenas por fotografias. A devoção que sentem por Cabilé é o que une esses consorciados transparentes. Na inumação inadiável. Em paralelo, ao longe, através de uma janela corrediça, junto ao pátio da cadeia, uma chuva torrencial lavava distantes canaviais. Assim a categoria da visão se aprimora mais e mais, e foi quando lhe surgiu a Padroeira, a Nossa Senhora de Aparecida, autorizada para que suas sensibilidades aflorassem, em ferozes lições carniceiras sorvidas no meio da dor. A Santa lhe pedia constituir de agüentar quietinho. Sem chiar. Mas coitado do Cabilé, justo agora, quando aproveitava um orvalho doce que caia da Padroeira, surgiu-lhe, em vez, um anjinho diminuto, na ordem de um gnomo, talvez este lhe pudesse mesmo aplicar algum remédio, um ungüento qualquer, daí lhe pediu demoradamente, apontando suas dores. Na sala, agora voltada para a penumbra, parecia que chovia chumbo. Num silêncio cinza de nuvens rasteiras em que um macaquinho imberbe, com feições distorcidas, dançava-lhe um samba desengonçado. Cabilé quis até gargalhar daquilo que via. E o macaco, agora um ser em formato dragolíngeo, disse-lhe em segredo que “tudo passará. No agora e no sempre”. Porém, apesar das visões, as dores vinham cutucar suas carnes e não havia ninguém que surgisse para lhe aplicar cataplasmas ou sedativos. “Que culpa tive eu... Deus do céu?... Sim, a Vaca Democracia foi um erro... Mas, que faço agora?”. Agonia. Pardavascos sonetos misturam-se ao causo com razões mal-assombradas de viver. Militares orgulhosos ainda tinham a coragem de desfilar diante do cadáver de Cabilé. Eles esfregavam nas mãos o afamado “óleo de milico macho”, e todos lhe chutam da cabeça aos pés. Ao lado de fora da cadeia. Num chuá. Sonidos de cachoeira. E o mar mostra que não está tão afastado. Parece até que uma onda poderosa vem quebrar na soleira da porta. Assinalam-se por ele, Cabilé, outros contratos, de barões armados até os dentes. Uma sucessão de secos tiros e um navio repleto de magnatas e capitalistas, que enfrentara uma tremenda tempestade, surge-lhe repentinamente donde, da amurada, lhe atiram flechas flamejantes. E alguém, do lado de lá, uma moça de cabelos longos e negros, megera e linda, com cara de Miss Brasil, descreve o geral dos gerais: "a mim vês, observa na palma, da minha mão, o que se passa... Tu és agora o frio. Terás os teus três dias de sonâmbulo... Ah, Cabilézinho, nem o calor do sol te abençoará”. Eis, agora que ele se vê jogado no estrume e na urina formatados em lama. Ele, o menino que um dia quis ser padre, quis ser piloto de teco-teco, quis ser técnico da Petrobrás, quis ser datilógrafo, quis ser escritor e poeta... E agora quedou rechaçado por causa de sua brevíssima literatura. Seu sofrimento, entretanto, pede por mais martírios. E, exemplarmente, aves negras e ameaçadoras pousam na fiação eletrificada, ao longo de uma estrada de poeira esbranquiçada. Os belicosos lhe surgem como aves de rapina. Numa esplanada sem fim, parece mesmo que toda Bahia lhe assiste o cortejo. Cabilé tritura-se. Fez-se de incomunicável. Fingiu que não era mais torturado. Quis até correr em direção à praia de Itapuã. E lá sentar-se na areia morna e tomar uma água de coco bem gelada. Porém. Curvando-se entre insipientes. Os estudantes gozavam dele, através de uma pequena janela, que no caso era o vidro acortinado de seu carro funerário. E Cabilé vomitava bílis. Sua fatalidade, no formato de uma desprezível ratazana, reafirmando toda a sua sorte, lhe disse: “Pedro Cabilé está terminada sua curta vida, neste epílogo sofrido de herói cativo, mesmo assim, eu mesma sendo sua fortuna, não te deixarei padecer na Bahia. Levo-te para outros locais... Quem sabe à uma ensolarada praça de Espanha, ou a uma benzeção de monges na Cachemira?...”. E rataplã! Num desperdício de generosidade, surgiu, assim sem aviso, ao meio de uma claridade vivificante, uma boiada zebuína inteirada e branca, e boiando acima da zoada dos bois, estava um menino-guia, um deuzinho azul, da ordem de Krishna. Naquela arquitetada engenhosidade. Para um moribundo Cabilé surgia a salvação num melê de caras de anjos e semblantes bovinos. Depois aquele meninozinho azul abraçou o corpo do sentenciado, levantando-o bem ao alto, acima dos chifres pontudos da vacaria. E os bois assemelhavam gritar: “muuda, muuda, muuda”. Então o tropel cessou. Cabilé está novamente em liberdade. Silêncio reconfortante numa imensa pradaria. Revogou-se o sufôco e um belo dia vem surgindo na Bahia. Luzes no arrebol. Campos de grama acetinada logo cedem lugar a prados verdejantes com flores desproporcionais. Um soneto de céu azul arrebata o infinito inteiro e vem servir de alento à Pedro Henrique Cabilé. Ele. O escolhido pelos deuses do livre-arbítrio. Recém saído da classe estudantil. Eis a tremenda sorte do Cabilé. Aquele que passou por uma porta estreita, mas seguiu diretamente para o jardim do Éden...  

Beto Palaio

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