terça-feira, 8 de maio de 2012


Alêu apalpa-se. Ao nariz, o ar, rãnho de choro, fumaça, infâmia, sonambulismo e cidadania.


ALÊU E A SEREIA (XIX)

LaPAdoAQUIago+ra= Brinque, brinque, brinque. E esqueça, esqueça, esqueça. No Brasil tem tanta Lapa! É Lapa de Cima, Lapa de Baixo. Inclusive a Lapinha da Serra do Cipó. Ou a Lapinha do Canto de Oxóssi. Mas contemple a Lapa dos Arcos, carioca da gema, ou contente-se com a Lapa paulistana da Doze de Outubro. Sim, de norte a sul tem muita Lapa! Mas economize seu tempo e não leia mais nada sobre lapas. Porque a lapa real é um vazio sem nada dentro. Lapa  é buracão socavado na pedra. Lapa é abismo, lapa é escuridão. Inclusive tentaram salvar os desavisados dos perigos desta lapa. Tentaram dourar a pílula da lapa. Mas lapa que é lapa nunca muda. Valha-me Nossa Senhora da Lapa! Com lapa não se pode brincar. Mas esqueça, esqueça, esqueça. E brinque, brinque, brinque... Mas não agora... Que o xale do dia espalha seu tecido acalorado por toda cidade. Naquele momento. Alêu acorda direto de um sonho para um estremecimento. Confuso ao sentir que não há, para ele, nenhum sinal externo, só um brando esquecimento generalizado. Mãos na grade de ferro. Tudo é abandono. Patuá, costeleta, geração, vergonha, cadeia, notícias. A aldeia global, na Bahia, não passa de uma cicatriz do que não chegou a ser. Alêu penitencia-se. “Pelo menos estou salvo”. Ele agradece por não ter sido torturado. O sol que chega pela pequena janela o reconforta. Agora se satisfaz em esperar. Entregue ao seu dia de ouro. Desejos de prata. Destino de carvão. Alêu está misturando as coisas. Revê sua vida cercada de aparatos e de amores. Em seu antigo leito. Unidos pelos doces laços do desejo. Ela. Sua amante Nazaré. Momentos que se esvaíram. Tudo tombado como pinos de boliche. Cedo ou tarde nossas pernas fraquejam. Alêu vê agora seus bons momentos como porcos saltando para o mar. Ele fecha os olhos para lembrar da sua vida em liberdade. Coisas que julga agora serem indispensáveis: benção de mãe, sol quente, barracas na feira, ondas da maré, manga chupada no pé, caprichos de fada, carinho animal, beijos molhados. Enfim, até em criança ele se vê. Tem sede e fome. Quer novamente se aninhar no colo de Rigina, sua mãe. Ela em quem ele não pensa quase nunca. A prisão involuntária é um imã para reclamar úteros. Apagadão. Alêu enfraquece. Adormecido ou falecido, para ele parece ser a mesma coisa. Acredita que para sempre estará encarcerado. Pensa em Mangagaí, que não chegou sequer a possuir. Pensa em Nazaré, que também deseja agora, ali ao seu lado. Neste momento em que, carente nesta imensidade, coisas e loisas, no castigo, quer sexo ou abismos. Cadeião. Vida de horas últimas de, e sobre, informar. Alêu apalpa-se. Ao nariz, o ar, rãnho de choro, fumaça, infâmia, sonambulismo, cidadania. A catapulta que o lança para os abraços de Mangagaí é a mesma que o traz de volta. Maldição é não poder ser dono de si próprio. A cadeia nunca deixa de te desfigurar. Existirás, de Domingo a Segunda, não por algo que seja mundial. Entretanto. Lugar indevassável, comparação destoada, qual seja, a embalagem natural do abacaxi: a casca com seus gumos e espinhos. Algo idêntico ao que envolve seus dias e noites. Aleuzenev não tem mais documentos verossímeis. Tudo os cafajestes justiceiros tomaram dele: classe, identidade, substância, nobreza, fé, biografia, utilidade, brasilidade, laços sociais, nexo e sexo... Principalmente nexo e sexo. Pois a sua vida agora é bandoleira como a de Indalécio, Corisco, Lampião e Maria Bonita. A vida no recesso da liberdade é sertaneja e bruta. Com sua boca  vampira, tarada, torta, e mais lá, ao gozo dela, com ela mesma, para mais, doloridíssima. E foi nesse marasmo que ele vê entrar uma senhora de branco. A princípio apenas o vulto. De uma enfermeira, acompanhada de uma morena que, vendo de longe, na miragem, ele pensa ser Mangagaí. Elas vieram desde a última porta. Ao longo do corredor. E com tantos presos ali, Alêu já adivinhava que a visita seria para ele. Ao se aproximarem ele reconhece Miranda. Que lhe sorri ao sentir-se observada. Dentes alvos de uma paixão que ela carrega ainda consigo. E logo ela estende os braços para dentro das grades. Alêu se entrega como pode para Miranda e até lhe beija os lábios, sentindo a ponta da língua de Miranda tocando a sua. Ela lhe diz, bonitinha sendo, morenamente, um desabafo: “Alêu, veja só o que você fez com a gente... A Bahia toda fala de você como um bandido subversivo... Até no jornal apareceu sua estória... Nazaré nem teve coragem de vir... Mas eu venho sim, porque te gosto muito... E trouxe minha amiga que é enfermeira para ver sua saúde... O Sargento Dito Costa foi quem conseguiu esta visita... Ele não é um santo?...”. Alêu não esconde sua alegria. O mundo lá de fora finalmente lhe dá manifestação de seus doces tentáculos. Alcançaram-no, enfim. Eis a versatilidade do espírito humano. Ele ainda tem em quem confiar. Então Alêu fala pelos cotovelos. Para compensar uma quinzena sob pão, água e silêncio absoluto. Enquanto fala ele saboreia uma barra de chocolate que Miranda trouxera. Alêu conta toda experiência desde a sala de aula até a morte de Pedro Henrique Cabilé. “Uma merda isso aqui”, conclui finalmente e pede um favor para a Miranda, na ordem de algo muito especial mesmo, que ela conversasse firmemente com o Sargento Dito Costa para que o soltassem. Que não agüentava mais nem um minuto aquela provação. Miranda promete que sim e lhe deixa, além de mais quitutes, a edição do jornal do dia. Depois que as duas foram embora, Alêu procura aflito pelas notícias do caderno policial. Mas ali não se fala mais nada, nem dele, nem de Cabilé. A notícia principal agora, com o cabeçalho aos berros, ocupa-se de um outro dilatado facínora das lides políticas. Um ex-professor tido como exímio coordenador da luta armada e do terrorismo contra a tradição familiar e as bases cristãs. A imprensa agora só fala do temido e, portanto, divulgado, Adamastor Pastinha. Nas letras esborra-traços se afirma deste execrável cidadão haver sido, inclusive, heroicamente metralhado pelas forças da polícia militar baiana. Porém, da escrita oficial em diante, busca-se o preceito democrático para vasculhar a real estória de Adamastor Pastinha. Estória, aliás, malversada. Algo que se atribui à imprensa marrom, o acovardado procedimento “maria-vai-com-as-outras” do desvitaminado meio jornalístico. Mas, para o gáudio de Alêu, vamos tentar vasculhar o que foi camuflado pelas letras flutuantes da imprensa... 

Beto Palaio

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