CATILÉIA E O FIM DO MUNDO
“Bem me quer, mal me
quer, bem me quer, mal me quer”... No jardinzinho de sua casa, Catiléia
desfolhava uma margarida. Perto dela, no caldo morno da manhã, uma borboleta
balança, dependurada numa rosa vermelhíssima. Catiléia, no entanto, está
distraída e nem isso vê: “Deus me livre, margarida... Não te desfolho mais... Ah,
como meu romance é barato!”, isto dito por uma aprendiz de enfermagem que em breve
estaria no ponto de ônibus, o que por hábito fazia, dia-sim, dia-não. Tudo para
visitar sua mãe na ala das prisioneiras da penitenciária local. Naquela
quarta-feira, enquanto esperava pelo bendito ônibus sob um sol de amolecer
asfaltos, Catiléia usava uma blusinha quase transparente e estava deveras irritada
por ter rompido o laço de uma de suas sandálias. Ainda chateada, Catiléia lembrou-se
da visita à sua mãe na vez anterior. Foi quando o carcereiro a tratou com
desdém. É que embaixo da mesa do carcereiro havia um gato esfomeado. Para
aquele gato Catiléia ofereceu um pedaço de bolo que trouxera para sua mãe.
Entretanto o carcereiro, bastante mal-humorado, recusou aquela oferta. O gato,
curiosamente, também lhe foi estranho e nem se mexeu à procura do petisco.
Parecia ele contrito e rígido na posição de sentado: magérrimo estava,
magérrimo permaneceu. “Nunca vi isto? Nem se pode fazer uma boa ação por aqui?”.
O carcereiro logo resmungaria algo sem tirar os olhos de um jornal encardido
que lia: “não vem posar de garçonete por aqui! Já não chega os advogados
safados que me prometem propinas?”. Catiléia não via relação nenhuma entre dar
algo de comer para o gato e os obséquios que lhe pediam os advogados em favor
de algum preso. “E o que eu tenho com isto?”, respondeu rispidamente Catiléia.
O carcereiro apenas abaixou o jornal, quedou a cabeça para o lado e soltou uma
cusparada no encardido chão daquela ante-sala ladeada por engradados de ferro:
“menina, vai cuidar do chantili do seu bolo... Não me chateia!”... Chega-se a
um empecilho neste conto onde às vezes um textinho faz o obséquio de não servir
a nenhum propósito revelado ou por se revelar no chamado “mundo cultural”. À
isso chamam “impasse da vanguarda literária”, ou mesmo de “inovação estilística
sem finalidade”. À mim, que insisto em continuar a escrever, só me ocorre um
sentimento de pânico por estar perdendo contato com minha personagem Catiléia,
a menina-flor. Por isso deixo de lado qualquer opróbrio oriundo dos incensais
literários e sigo em frente usando agora um tapa-olho—desses que se usam em
cavalos puxadores de carroças—para não afastar-me do priorado da estória que
poderia ser sobre uma senhora da alta sociedade carioca que gostaria de
emagrecer, mas que se empanturra de bolachas de milho com erva doce todas as
manhãs. Ou sobre o Rei Arthur que não conseguiu retirar a espada cravada na
pedra, ao invés disto ele urinou nas calças ao fazer muita força para
retirá-la. Ou a estória poderia até versar sobre um cálido romance entre uma
garota católica e um jovem protestante na Irlanda invadida por tropas inglesas
nos anos setenta. Ou mesmo sobre o episódio de um pequeno
pacote contendo uma poderosa arma de disseminação bacteriana que um terrorista
viria revelar, num simples sussurro, ao ouvido de uma escritora de sucesso,
quando disse para ela, ao lado de sua poltrona no cinema, que estava escondendo
aquela temível unidade propagadora em sua bolsa. Isso aconteceu do terrorista
falar enquanto ela estava bastante distraída vendo um filme na matinê da seção
da tarde. A escritora, diante daquela situação terrível em que agora estava
envolvida, passou a experimentar uma incontrolável taquicardia. Foi quando ela
grita por socorro e tiveram de interná-la às pressas, quando, entretanto,
apesar das dificuldades físicas, ela ainda tenta revelar que dentro da sua
bolsa havia aquele pequeno embrulho portador de uma maléfica arma de efeito
genético—a qual propagaria endorfinas atrofiadoras como lhe afirmara o
terrorista—algo que acabaria por fazer com que a humanidade inteira fosse
vítima de numa catástrofe sem limites de causa e efeito. Ocorre que, no
entanto, ninguém no hospital parecia ligar para isso e o pequeno pacote de cor
parda acabou indo para o lixo. A salvação da raça humana desta forma passou a
depender unicamente da sensibilidade da enfermeira da noite, a qual a escritora
algo sedada espera que chegue para que ela possa dar-lhe o aviso. Porém,
naquele exato momento, devido a seu estado crítico, a escritora não atina de
que maneira iria sinalizar para a enfermeira da noite sobre aquela ameaça de alastramento
atômico que agora se encontra no lixo. Mas logo a enfermeira, que se chama
Catiléia, entra em seu horário de trabalho noturno, isso por volta das vinte e
uma horas. Lá fora a catedral da Candelária bate o aprumo do horário nas badaladas
noturnas quando Catiléia toma o pulso da paciente e se assusta: a escritora que
passara mal dentro do cinema acabava de falecer. Com isto Catiléia toma as
medidas cabíveis dentro das circunstâncias de praxe. Ela aperta a campainha de
emergência e chama pela enfermeira-chefe. Ao chegar, aquela enfermeira responsável
pela equipe noturna observa alguns detalhes fora do comum na aparelhagem de
oxigênio, principalmente pelo tubo coletor haver sido arrancado desde o bocal
do filtro de ar, e também pelo escalpe coletor de soro estar igualmente
rompido. Só então ela nota que um pequeno pacote pardo estava sendo oculto, sob
a contrição de dez dedos, nas mãos enregeladas da falecida. Imediatamente a enfermeira-chefe
pediu ajuda à Catiléia para juntas poderem libertar aquele pequeno embrulho daquelas
mãos encrespadas. Querendo entender aquilo, logo em seguida, Catiléia abre o
pacotinho e, algo decepcionada, joga todo conteúdo fora, pois o que ela viu ali
não passava de um punhado de pó de café... Pelo menos era o que Catiléia
pensava quando jogou toda aquela massa enegrecida dentro do saco de lixo.
Beto Palaio
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