quinta-feira, 3 de janeiro de 2013



"Pretendi cantar mais alto que entre os verdes. E encantar. O meu sentir cansado. Naquele melhor sentir de quando era menina. Vontade de voltar às minhas fontes primeiras. De colocar meus mitos outra vez. Nos lugares antigos e sorrir". 



O DIA DE ENEIDA

“Nem que a vaca tussa!”... Isto decidiu Eneida sobre sua possível volta para os braços de JJ, o Caixeiro-Viajante... Ocorre que um dia é um pingo, uma semana é uma corredeira, um mês é um rio e um ano é um mar. Isto acarreta do tempo ser líquido e invisível ao emprestar minudências categóricas para fluir pelos beirais, calhas, meio- fios e boca-de-lobos. Num afogamento interminável. O tempo é aquele que submerge definitivamente os arrabaldes, as vilas e até megalópoles inteiras. Entretanto a cidade de Potirendaba, por esta época, no inicio dos anos trinta, nadava suas primeiras braçadas e constituía-se de germinar como um povoado paquiderme e pachorrento, ao vagar, se em dia de sol, a cuspir o pó da avenida principal não asfaltada e, se em dia de chuva, a enlamear tudo e todos que se atrevessem a pisar fora do meio-fio. Entretanto já havia em Potirendaba um cio de cidade que embarcava encantos e gramíneas. Havia, com este ínterim, gentes felizes passeando em sua única praça. Um footing sem pressa com o direito de um olhar mais demorado dos apaixonados em seus romances à distância. Os todos dali procuravam por algo novo que viesse por terra ou por ar. Um fato novo só chegava por estes rincões se assentado em dorso de mula ou vindo pela barcaça que fazia às vezes de uma balsa de traslado de um lado para outro do rio. Verdadeiramente. Uma pessoa de fora não se sentia em casa na Potirendaba dos anos 30. Acrescenta-se que a cidade não apresentava muita facilidade de acomodação para estrangeiros, sendo que, como exemplo distendido, um caixeiro-viajante não conseguiria sequer um hotel disponível. Neste vazio de ofertas. Para quem num repente surgiu na cidade carregando um baú de novidades. Sem travesseiro que o acomodasse, contudo. Isto JJ intuía de que a solução seria morar de favor na casa de algum morador um pouco mais dócil em relação à pessoas estranhas. Foi quando atravessou o Rio Macacos, vindo de Mirassolândia, e soube pelo barqueiro que sua filha Eneida era uma menina triste. Colaborava para isto sua solidão campestre. Suas feminilidades nebulosas em suas quatorze primaveras. Havia naquela doce menina. Encantamentos. Num existir poético. Ao resumido de. Seu seguir taciturno. Leituras de trechos como este de Hilda Hilst: “Entre cavalos e verdes pensei meu canto. Entre paredes, murais, lamentos, ais (Um cenário acanhado para o canto. É triste. Se o que dele se espera é até demais). Pretendi cantar mais alto que entre os verdes. E encantar. O meu sentir cansado. Naquele melhor sentir de quando era menina. Vontade de voltar às minhas fontes primeiras. De colocar meus mitos outra vez. Nos lugares antigos e sorrir. Como a ti te sorri, minha mãe, a vez primeira. Vontade de esquecer o que aprendi: Os castelos lendários são paisagens. Onde os homens se aquecem. Sós. Sumários. Porque da condição do homem, é o despojar-se”. Muito pelo contrário. Real como um pé que calçasse uma meia mais curta que outra. Ao se defrontar em sua casa com um homem mais velho até que seu pai. Tratando-a por “senhorita”. O JJ era mesmo especialmente sedutor. Trazia com esmero um bigode fino, alinhado acima dos lábios. E sorria por qualquer motivo. JJ chegou à Potirendaba num dia em que nuvens densas deslizavam rapidamente pelo céu da cidade. Aliás. Um prenúncio de tempestade das piores foi o que permitiu do baú de ofertas de JJ vir a ser o atrativo especial daquele final de tarde. Anoitecer no começo de abril. JJ foi acomodado dentro de um celeiro usado como oficina mecânica. Um celeiro em uma pequena cidade do interior. Está em ângulo inclinado. A parede de trás do celeiro avança para o fundo do palco e para a direita as grandes portas de entrada ficam nessa parede. Ao longo da parede da esquerda, uma bancada de trabalho com ferramentas de tratores espalhadas ao lado de algumas peças velhas, trapos e as tralhas todas de um mecânico. Uma prateleira acima da bancada onde há alicates, chaves de fenda, outras ferramentas. Na parede da esquerda, uma porta de tamanho normal que leva ao armazém da Central de Abastecimento, ao qual o celeiro está ligado. Uma rampa íngreme desce do batente dessa porta para o celeiro. Mais à esquerda, estendendo-se para a área externa, junto à parede, há pilhas de sacos de cimento. Na frente deles, vários barris novos de fertilizante. No fundo do celeiro, perto do centro, uma pequena estufa a lenha, agora acesa, brilhando vermelha. Sobre a bancada uma lâmpada pendurada. Há um grande macaco de mecânico no chão, vários barris de embalagem de pregos fazendo as vezes de bancos — dois junto à estufa. Um grande tambor de querosene apoiado em blocos, à direita, ao fundo. Perto dele, alguns galões espalhados. É um velho celeiro usado em parte como depósito, e principalmente como oficina mecânica de tratores e apetrechos. As vigas do teto têm uma cor quente de carvalho, sem colunas. As cores de madeira dominam a cena, bem como o cinza dos sacos de cimento. Ali, à um canto, reservadamente, JJ montou um pequeno catre onde pretendia dormir em sossego, pelo menos nesta primeira noite em Potirendaba, mas não foi isto o que aconteceu. Por um momento de imprecisão. JJ estava mesmo convencido que deveria dormir em cama fofa, na casa principal do barqueiro, o qual também mantinha esta oficina para concerto de tratores. Acontece que ele foi mordido por um olhar doce da filha do barqueiro assim que ele passou rente à casa. Foi quando ele parou e perguntou pelo nome da moça, que veio até o parapeito da janela e disse que se chamava Eneida. Depois JJ lhe estendeu a mão e cumprimentou-a todo sorrisos, no que foi retribuído prontamente, do mesmo modo, esfuziante. Agora JJ voltava àquela janela, era já prenuncio de madrugada. Ali ele bateu pausadamente, com os nós dos dedos, esperando pela resposta da moça. Eneida não tardou à abrir e ambos sussurraram algo muito determinante, pois JJ saltou para dentro daquele quarto e logo a janela fecharia por detrás deles. Agora, tantos anos depois, Eneida não quer mais a companhia de JJ. Ela está cansada e com quarenta e nove anos de idade. Ela se enfadou de aturar os passeios e manias de JJ. “Nem que a vaca tussa!”... Isto decidiu Eneida sobre sua possível volta para os braços de JJ, o Caixeiro-Viajante...


Beto Palaio


Pintura: Berthe Morisot

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