quinta-feira, 31 de janeiro de 2013



UMA GUERNICA MAL-ASSOMBRADA

No madrigal de muitas horas. O abandono de objetos impessoais deixados para trás. Um punhado de gesso secou no canto da sala de estar. A grama cresceu nos vãos do assoalho outrora bem encerado. Três moedas sem valor estavam escondidas ao meio do excesso de pó no alpendre já destelhado. Alguns pregos enferrujados dormitavam sobre um pedaço de estopa cor de terra. Vários trechos de parede já caíram. Desta forma beijos de luar varrem um canto do quarto principal de dormir, onde agora repousam folhas secas acumuladas desde os últimos vinte anos. Aquela casa era mal-assombrada. Isto, sem peias, diziam os moradores daquela cidadezinha de Minas Gerais. “Não estou atrasada não, mamãe”, súbito aquela casa em ruínas ganha vida. O telhado se recompõe, as janelas e portas voltam aos seus lugares. Até o cortinado de voal se põe a esvoaçar com a mais leve brisa de verão. Apenas para observarmos fielmente o que se disse até aqui. Desde Agiotti, Callabrese e Martelleti. Sabia-se desses impasses em relação à uma estória instável e cambiante. Personagens que moram nos livros são como aves de arribação. No entanto, paradoxalmente, eles adoram ficar emparedados entre duas capas. Nós, leitores, somos quem os liberta deste tipo de crisálida. Entretanto são brevíssimos os estudos que tratam da liberdade de ir e vir do personagem em uma estória dita verídica. Os livros são suas casas, assim como também são os melhores amigos dos leitores. A quem então seriam fiéis os personagens? Ficariam eles devendo algum tipo de subordinação ao leitor, ou o autor é quem teria o privilégio de mando no destino exemplarmente submisso do personagem? Em geral, as pessoas que lêem trechos filosóficos e, diríamos, assustadores até, quando lidos em aeroportos, fila de lotações, metrôs lotados, sala de espera de dentistas, e locais afins, não se preocupam muito se o personagem deve ficar ou não restrito ao livro. Há alguma leviandade do leitor que aproveita o tempo para levar o personagem de alguém para passear junto com eles. Mal sabem esses incautos leitores da preferência do personagem por ficar dormitando ao lado de uma rede ou sobre um criado-mudo às espera de uma leitura responsável e pensada. Em resumo, reafirmamos que o livro pertence ao leitor enquanto o personagem não é dono de nada, além de ser leviano, irresponsável, chispante, sem emprego ou profissão definida. Eis que se joga novamente o laço na estória que foi até aqui pessimamente contada. Finalmente Dalila desceu as escadas para se despedir, à porta, de sua mãe aflita. Ambas sabiam que aquela seria a ultima visita ao banco feita por Dalila já que, com o falecimento do pai, tanto ela como a mãe resolveram deixar aquela casa e mudarem-se para o Canadá, onde Dalila tem uma promessa de casamento vinda de um magnata da família dos Rotondi, donos de uma empresa de gravações musicais na cidade de Montreal. Isto de fato ocorrera. Em menos de um mês Dalila estava casada com Estéfano Rotondi e nunca mais voltou para o Brasil. Vivendo no Canadá, a Sra Rotondi se esquecera completamente da velha casa no interior de Minas. Esta casa que foi aos poucos ficando decadente e se tornou uma ruína tida nos arredores como assombrada. Mas há quem desafie a idéia das tais visagens sobrenaturais. Hoje alguns corajosos meninos daquela cidadezinha mineira cismaram de visitar a casa mal-assombrada durante a noite. Eles se muniram de faroletes e invadiram a propriedade às nove e quarenta e cinco da noite. Os grilos cantavam ali, mais até do que em qualquer outro lugar na cidade. Havia também pirilampos ocasionais. De resto o vento zunia nos espaços abertos das paredes e isto fazia os meninos ficarem assustados. No mais, aquela casa sob as luzes dos faroletes parecia-se mesmo era com as ruínas da cidade espanhola de Guernica após os bombardeios de 1939. Mas tudo isto não passa de uma comparação metafórica vinda de um leitor pouco afeito à saltitante projeção de sombras quando alegremente vindas de uma dezena de faroletes, as quais dançam o tempo todo na mão de crianças um tiquinho só assustadas. Em resumo, personagens nenhuns. Então não há estória que se sustente muito tempo na ausência de personagens. Assim dá-se por adiado o descrever desse conto da Guernica assombrada.

Beto Palaio

Foto: Eugene Richards

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