Sim, ele persegue sua mulher sorrateiramente. Pé ante pé. À solapa. Os sapatos de carne que cobrem os ossos lhe propiciam um andar macio e confortável por sobre o piso duro das calçadas.
SÚPLICA
Um
perfume inenarrável. Folhas antigas mortas pisadas por folhas recentemente
dispersas. Os passos beiraram o calçadão da praça. Filetes de areia dançavam ao
longo de um beiçal de gramas protegidas por lanços de ferro. Numa dessas
cidades que amanhecem desertas. Um embaraço acenou desde a rua da praia.
Inexistente pensar em acaso. Uma nudez aflita pedia socorro. A rua principal
era um traço borrado de chuva. Um conjunto de vozes partia da igreja e atingia
o lajeado da calçada fronteiriça. Eles, os cantores do ensaio, estavam usando
uma arma muito antiga e possivelmente necessária: a felicidade do entoar
natalino. Antigo altar de sacrifício religiosos. Isto o que a velha fachada
carcomida da igreja matriz lhe induzia a pensar. Como colmos de bambu por seu
interior vazio. Uma religião apenas mantida pela cegueira de asseclas e centuriões
deslavados. Embora ele apreciasse entrar
nesses vetustos templos para apreciar a arte ali guarnecida. Eram feitos por
pintores bem dotados, antes da chegada da fotografia. Isto lhe acalmava a ira
comunista de eliminar a religião dos fatos apenas históricos. Com estes
pensamentos ainda lhe arrefecendo. Ele quase esquece que está ali para seguir
sua mulher. Sim, ele persegue sua mulher sorrateiramente. Pé ante pé. À solapa.
Os sapatos de carne que cobrem os ossos lhe propiciam um andar macio e confortável
por sobre o piso duro das calçadas. Em outras palavras. Ele está descalço. E
segue sua mulher que se afasta rapidamente. Qual sombra dele mesmo. Ela passa
defronte ao maciço edifício da Biblioteca Nacional. Dobra a Carioca. Sobe a
Frei Caneca. "Querida, pare!", ele gritou em desespero. Mas ela não o
ouviu e continuou andando apressada. Ora no canteiro do centro da Avenida
Presidente Vargas. Ora no calçadão da Rio Branco. Ele desistiu de gritar e
apenas a seguia, veladamente. Como um detetive em busca de fatos para preencher
relatórios. Com a busca já encerrada. Ele a alcança no Largo do Rosário:
"Meu amor, agora vamos conversar?". Era a súplica que ele dirigia à
esposa. Mas quando a moça se livra de seus braços ele vê que seguiu a mulher
errada. Aquela moça ainda lhe olha com ranços de ódio, mas ele lhe pede
desculpas: "desculpe-me, pensei que seguia a minha esposa". Depois se
afastou dali. Entrando rapidamente na Estação Cinelândia do Metrô. Já dentro da
composição ele só fica pensando no seu destino: "São Francisco Xavier, São
Francisco Xavier, São Francisco Xavier...". Depois ele adormece e alguém o
acorda no final da linha: "Senhor, já chegamos à Estação Saens Peña".
Ele toma um susto. Estivera dormindo e sonhando desde a Estação Botafogo. Não
se lembrava o que exatamente estivera fazendo em Botafogo. Depois ele desce do
vagão e sobe as escadarias da Estação Saens Peña. Apressadamente...
Beto Palaio
Desenho de Max Klinger, 1881.
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