quinta-feira, 10 de janeiro de 2013




Sim, ele persegue sua mulher sorrateiramente. Pé ante pé. À solapa. Os sapatos de carne que cobrem os ossos lhe propiciam um andar macio e confortável por sobre o piso duro das calçadas. 

SÚPLICA

Um perfume inenarrável. Folhas antigas mortas pisadas por folhas recentemente dispersas. Os passos beiraram o calçadão da praça. Filetes de areia dançavam ao longo de um beiçal de gramas protegidas por lanços de ferro. Numa dessas cidades que amanhecem desertas. Um embaraço acenou desde a rua da praia. Inexistente pensar em acaso. Uma nudez aflita pedia socorro. A rua principal era um traço borrado de chuva. Um conjunto de vozes partia da igreja e atingia o lajeado da calçada fronteiriça. Eles, os cantores do ensaio, estavam usando uma arma muito antiga e possivelmente necessária: a felicidade do entoar natalino. Antigo altar de sacrifício religiosos. Isto o que a velha fachada carcomida da igreja matriz lhe induzia a pensar. Como colmos de bambu por seu interior vazio. Uma religião apenas mantida pela cegueira de asseclas e centuriões deslavados.  Embora ele apreciasse entrar nesses vetustos templos para apreciar a arte ali guarnecida. Eram feitos por pintores bem dotados, antes da chegada da fotografia. Isto lhe acalmava a ira comunista de eliminar a religião dos fatos apenas históricos. Com estes pensamentos ainda lhe arrefecendo. Ele quase esquece que está ali para seguir sua mulher. Sim, ele persegue sua mulher sorrateiramente. Pé ante pé. À solapa. Os sapatos de carne que cobrem os ossos lhe propiciam um andar macio e confortável por sobre o piso duro das calçadas. Em outras palavras. Ele está descalço. E segue sua mulher que se afasta rapidamente. Qual sombra dele mesmo. Ela passa defronte ao maciço edifício da Biblioteca Nacional. Dobra a Carioca. Sobe a Frei Caneca. "Querida, pare!", ele gritou em desespero. Mas ela não o ouviu e continuou andando apressada. Ora no canteiro do centro da Avenida Presidente Vargas. Ora no calçadão da Rio Branco. Ele desistiu de gritar e apenas a seguia, veladamente. Como um detetive em busca de fatos para preencher relatórios. Com a busca já encerrada. Ele a alcança no Largo do Rosário: "Meu amor, agora vamos conversar?". Era a súplica que ele dirigia à esposa. Mas quando a moça se livra de seus braços ele vê que seguiu a mulher errada. Aquela moça ainda lhe olha com ranços de ódio, mas ele lhe pede desculpas: "desculpe-me, pensei que seguia a minha esposa". Depois se afastou dali. Entrando rapidamente na Estação Cinelândia do Metrô. Já dentro da composição ele só fica pensando no seu destino: "São Francisco Xavier, São Francisco Xavier, São Francisco Xavier...". Depois ele adormece e alguém o acorda no final da linha: "Senhor, já chegamos à Estação Saens Peña". Ele toma um susto. Estivera dormindo e sonhando desde a Estação Botafogo. Não se lembrava o que exatamente estivera fazendo em Botafogo. Depois ele desce do vagão e sobe as escadarias da Estação Saens Peña. Apressadamente...

Beto Palaio

Desenho de Max Klinger, 1881.

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