sábado, 19 de janeiro de 2013






Revejo o trajeto fatídico da faxineira para me entregar o envelope e levar de volta o sanduíche de presunto intocado.


DONA GLORINHA EM TRANSPARENTE. 

Qual nada. Ferviam invejas sobre mim. Eu coroado de lírios. Sendo tão respeitável quanto o caminho de Damasco à Paris. Tudo ótimo, até que surgiu a realidade para me prestar serviços com cartas anônimas. Uma após outra elas foram chegando. Gritos rascantes eram o que elas me inspiravam. Soluços ocultos que emitia enquanto urinava no vaso sanitário adornado por um tablete azul de desodorizante. Nem sabia mais da minha dormência burguesa. Guardava comigo as cartas como se guarda o final dos filmes. Procurava esquecer. Eis a trama. Dona Glorinha, minha mulher, andava me traindo. Se fosse eu enumerar as denúncias oferecidas pelas cartas anônimas, Dona Glorinha deveria possuir mais de vinte amantes. Ao que me proponho? O trajeto da faxineira, da cozinha à saleta de leitura, uma boa meia hora, apenas para me trazer um sanduíche de presunto. Eis que ela surgia prestativa, com um sanduíche e mais uma carta na bandeja: “o senhor recebe mais cartas que o Papai Noel na época do Natal”, disse a faxineira querendo brincar com um assunto que para mim era mortal. “Leve esse sanduíche daqui... Não lhe pedi nada!”. Quando a faxineira partiu com o pratinho envolto por um papel aluminizado, eu cometi uma atrocidade que somente um demente cometeria contra um reles envelope de carta. Rasguei com imenso ódio o envelope. Fazia, neste ato, remelexos de loucuras com os lábios em movimento repetitivo, dado que me afogava na cólera. Saibam estes pormenores. O combustível que me açoitava em chamas incendiaria uma floresta inteira. Revejo o trajeto fatídico da faxineira para me entregar o envelope e levar de volta o sanduíche de presunto intocado. Logo após, com aquela carta na mão, fazia-a girar em movimentos concêntricos. Queria começar a ler dos pés para a cabeça. De trás para frente. Procurava, com este afã, pelo nome de Dona Glorinha o qual acabava por encontrar sendo descrita apenas com a letra G, grafada ao modo de um rabisco, em maiúscula: “Atento homem, pois a G está se entretendo com o rapaz do andar de baixo”, “Fica esperto chifrudo, hoje eu vi a G beijando a boca de um moreno forte e atlético na praia”, “Onde você está com a cabeça que ainda não mandou G para o inferno?”, “G foi vista no final da tarde de ontem rodando a bolsa na avenida. Você sabia que nas horas incertas G se vende como uma prostituta?”. Coisas disparatadas dessa ordem. Questões deprimentes que me tornavam circunspeto, afrontado, indignado mesmo. Tantas foram essas cartas anônimas que deixei de me portar como o ser poético e distraído que sempre fora. Até que. Isso eu vi com meus próprios olhos. Vinha eu de mais uma seção de terapia com a Dra. Dalmácia, quando vi Dona Glorinha vindo da calçada para a rua. Linda e feminina dentro de um vestido branco quase transparente, ela segurava uma rosa vermelha e fazia sinal—com a própria rosa que agitava ao ar—para um táxi que passava. Ainda há pouco Dra. Dalmácia me afirmara que havia lido numa das epístolas de Freud que o momento de tomarmos uma importante decisão poderia surgir com um assovio fino e longo que se faria ouvir prontamente. Afirmo que minha psicóloga poderia agora divulgar este fato terapêutico como confirmado. Ouvi o tal assovio premonitório e tratei de apanhar o táxi que surgiu logo após ela haver entrado e partido no outro veículo: “siga aquele táxi”, disse eu ao motorista que riu e confessou se sentir figurante de um filme de ação. Hoje são passados alguns meses que este fato ocorreu. Mas lembro-me claramente das escadarias que Dona Glorinha subiu, tendo um homem loiro no alto desse lance de escadas a esperar por ela. Eles se beijaram apaixonados, de língua, longamente. Nada de ordinário me assaltou ao ver minha esposa nos braços daquele rufião. Um desfile de fatos insólitos apenas. Relembro somente isto. Mãos que me alcançam diariamente para um relato que conste como definitivo nos autos da defesa. Minha saúde emocional se tornou frágil e desmorona no vazio por qualquer sugestão de lembrança. Não me lembro mesmo do que ocorreu a seguir. O assovio premonitório eu o ouço ainda. Ele surge como um álibi, embora de modo vago, quando o descrevo nas visitas de orientadores penitenciários, assistentes sociais, terapeutas do Estado, advogados curiosos e de outros profissionais correlatos. Entretanto, Digníssimo Dr. Juiz, tudo que me lembro daquele dia—e note que estou absolutamente convicto disto—é que não causei nenhum mal à Dona Glorinha. Repito que não lhe infringi nenhum dano físico. Isto foi de grande valia para mim, já que ao final de tudo eu me tornei um homem modificado. Devo esta mudança a ela. Foi Dona Glorinha quem me modificou para melhor, muito embora ela jamais chegasse a tomar conhecimento disto.


Beto Palaio

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