PITCHULA NO QUARTO 443
Estamos
todos conscientes das altas formas angulares que se consorciam na arquitetura
de um hotel cinco estrelas. Os longos corredores criam labirintos apenas
amenizados pela presença de rubros tapetes que se alongam de uma fileira de
quartos para outras. O pastor Nelionelson, com o mescalito no bolso, caminha
determinado, indo ao encontro de Fragata, a caminhar silenciosamente sobre tapete
felpudos, cercado de meias-luzes por todos os lados. Somente um brilho de obscura
reverberação laranja parece seguir, às abóbadas, os que se dispõe a encontrar
seu quarto no Grande Hotel Calaveras. Um ar de sonho empesta o lugar, seu todo
enluarado pelos candelabros frios, a fazer da busca pelo quarto 443 uma procura
fora da realidade, com a chave na mão, já dando asas à uma imaginação
sanguinolenta, onde um vampiro ou um lobisomem sugerem que estão nos seguindo.
O pastor Nelionelson treme de pavor ao introduzir a chave onde a inscrição 443
combinou com o número 443 que estava inscrito, em bronze polido, à porta. Logo
ao adentrar, entretanto, tudo lhe pareceu dejavú, com o seu nicho de descansos
compartilhados, arrefecido pelo vapor vindo do banho, a mesmice em forma de
parafernália kitsch: uma mesinha de saleta, donde espelhos refletem o
recém-chegado pastor Nelionelson com camisa havaiana, o qual avista o pequeno
Frigobar sendo ladeado por duas cadeiras estofadas. Neste quarto aconchegante
rege a ambientação plena de uma cama com proporções escorregadiças—cetins e
tal—encimadas por dois monturos donde se adivinha travesseiros. Afora os
dispositivos elétricos de um inesgotável acender automático de luzes, sobrevive
ali um ruído de água em fervura de jatos onde, após Nelionelson ultrapassar uma
breve barreira de vapores, avista a sua linda Fragata dentro da Jacuzzi, meio pendente
de lado, usando uma toalha de banho como travesseiro, dormitando em plena
ducha.
-
Fragata, meu amor, acorde, chegou nossa hora...
Fragata
Violeta despertou com uma orquestra de sorrisos para seu amado...
-
Ah, meu Nelionelson querido... Finalmente poderemos brincar um pouco, fazer
amor longamente, e depois dormir...
-
Sim, mas a missão...
-
Que missão, amor?
-
Tem razão, Fragata, a missão que fique para depois...
Isto
disse Nelionelson já retirando as roupas e se ajeitando, algo pássaro no ninho,
na Jacuzzi com sua esfuziante Fragata...
-
Acorda amor, eu tive um pesadelo agora, sonhei que tinha gente lá fora, batendo
na porta de entrada, que aflição!...
Já
era de manhã no quarto 443. E realmente alguém batia à porta. O pastor
Nelionelson, incentivado por Fragata, se envolve em um dos lençóis para ver
quem bate, tão cedo, à porta do dormitório. Ali ele vê um dos serviçais do
Grande Hotel Calaveras, o qual dizia se chamar Don Genaro, e apresentava-se num
apertado uniforme azul escuro, tal um militar, dado a ombreira conter
ornamentos de estampa, em ofício de mensageiro do hotel, embora suas feições de
índio do Arizona traíssem completamente aquela função. Nelioneloson vê o
carrinho com iguarias para o desjejum e pede para Don Genaro entrar, enquanto
corre para a cama, ainda envolto em lençóis, para se aninhar ali junto com
Fragata Violeta. Don Genaro, a bem da verdade, encontra os dois pombinhos ainda
na cama. Com o propósito universal que somente a chama da ternura possibilita,
dando panos ao imaginário, Don Genaro apreciava ali, num jardim de lençóis
amarfanhados, duas rosas enlaçadas, a enfeitar o mesmo ramo, juntos, a corsa e
o gamo, a flor e o beija-flor, o arrebol e o pirilampo... O que mais poderíamos
exigir do amor?
- Chega de cama... Dormir cedo, levantar
cedo... Este é o lema dos engajados na tarefa do porvir...
Isto
disse calmamente o serviçal Don Genaro, como uma réplica branda e suave, a
quebrar a hegemonia de uma eventual cólera ou furor, pois as palavras duras
sempre exercitam a galhofa, o ressentimento e o rancor. Entretanto, mesmo os
sonolentos amantes podiam antever naquelas frases recortadas uma ponta de acinte,
algo um deboche ou uma fiúza qualquer deste quilate.
Beto Palaio
Arte: "Relatividade" de M. C. Escher
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