quarta-feira, 9 de janeiro de 2013




PITCHULA NO QUARTO 443

Estamos todos conscientes das altas formas angulares que se consorciam na arquitetura de um hotel cinco estrelas. Os longos corredores criam labirintos apenas amenizados pela presença de rubros tapetes que se alongam de uma fileira de quartos para outras. O pastor Nelionelson, com o mescalito no bolso, caminha determinado, indo ao encontro de Fragata, a caminhar silenciosamente sobre tapete felpudos, cercado de meias-luzes por todos os lados. Somente um brilho de obscura reverberação laranja parece seguir, às abóbadas, os que se dispõe a encontrar seu quarto no Grande Hotel Calaveras. Um ar de sonho empesta o lugar, seu todo enluarado pelos candelabros frios, a fazer da busca pelo quarto 443 uma procura fora da realidade, com a chave na mão, já dando asas à uma imaginação sanguinolenta, onde um vampiro ou um lobisomem sugerem que estão nos seguindo. O pastor Nelionelson treme de pavor ao introduzir a chave onde a inscrição 443 combinou com o número 443 que estava inscrito, em bronze polido, à porta. Logo ao adentrar, entretanto, tudo lhe pareceu dejavú, com o seu nicho de descansos compartilhados, arrefecido pelo vapor vindo do banho, a mesmice em forma de parafernália kitsch: uma mesinha de saleta, donde espelhos refletem o recém-chegado pastor Nelionelson com camisa havaiana, o qual avista o pequeno Frigobar sendo ladeado por duas cadeiras estofadas. Neste quarto aconchegante rege a ambientação plena de uma cama com proporções escorregadiças—cetins e tal—encimadas por dois monturos donde se adivinha travesseiros. Afora os dispositivos elétricos de um inesgotável acender automático de luzes, sobrevive ali um ruído de água em fervura de jatos onde, após Nelionelson ultrapassar uma breve barreira de vapores, avista a sua linda Fragata dentro da Jacuzzi, meio pendente de lado, usando uma toalha de banho como travesseiro, dormitando em plena ducha.

- Fragata, meu amor, acorde, chegou nossa hora...

Fragata Violeta despertou com uma orquestra de sorrisos para seu amado...

- Ah, meu Nelionelson querido... Finalmente poderemos brincar um pouco, fazer amor longamente, e depois dormir...

- Sim, mas a missão...

- Que missão, amor?

- Tem razão, Fragata, a missão que fique para depois...

Isto disse Nelionelson já retirando as roupas e se ajeitando, algo pássaro no ninho, na Jacuzzi com sua esfuziante Fragata...

- Acorda amor, eu tive um pesadelo agora, sonhei que tinha gente lá fora, batendo na porta de entrada, que aflição!...

Já era de manhã no quarto 443. E realmente alguém batia à porta. O pastor Nelionelson, incentivado por Fragata, se envolve em um dos lençóis para ver quem bate, tão cedo, à porta do dormitório. Ali ele vê um dos serviçais do Grande Hotel Calaveras, o qual dizia se chamar Don Genaro, e apresentava-se num apertado uniforme azul escuro, tal um militar, dado a ombreira conter ornamentos de estampa, em ofício de mensageiro do hotel, embora suas feições de índio do Arizona traíssem completamente aquela função. Nelioneloson vê o carrinho com iguarias para o desjejum e pede para Don Genaro entrar, enquanto corre para a cama, ainda envolto em lençóis, para se aninhar ali junto com Fragata Violeta. Don Genaro, a bem da verdade, encontra os dois pombinhos ainda na cama. Com o propósito universal que somente a chama da ternura possibilita, dando panos ao imaginário, Don Genaro apreciava ali, num jardim de lençóis amarfanhados, duas rosas enlaçadas, a enfeitar o mesmo ramo, juntos, a corsa e o gamo, a flor e o beija-flor, o arrebol e o pirilampo... O que mais poderíamos exigir do amor?

 - Chega de cama... Dormir cedo, levantar cedo... Este é o lema dos engajados na tarefa do porvir...

Isto disse calmamente o serviçal Don Genaro, como uma réplica branda e suave, a quebrar a hegemonia de uma eventual cólera ou furor, pois as palavras duras sempre exercitam a galhofa, o ressentimento e o rancor. Entretanto, mesmo os sonolentos amantes podiam antever naquelas frases recortadas uma ponta de acinte, algo um deboche ou uma fiúza qualquer deste quilate.


Beto Palaio


Arte: "Relatividade" de M. C. Escher

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