terça-feira, 29 de janeiro de 2013



TEM AÇÚCAR, CLARICE?


"Tem açúcar, Clarice?”, Clarice chegou até o vão da porta aberta. “Mas... Outra vez?”. Do pórtico já se tinha uma vaga idéia de que seu apartamento estava selvagemente desarrumado, contudo, uma invasão de privacidade, mesmo que equivocadamente supérflua, como neste caso, tal estivesse eu perdido o juízo. Com esmero, não obstante, insisti no meu pedido de empréstimo de uma xícara de açúcar: “mas, Clarice, depois te dou metade do bolo que estou fazendo”. Ela pareceu conformada, e desapareceu rapidamente—não sem antes resmungar algo incompreensível—para retornar com uma velha xícara de porcelana repleta de açúcar. “Chega de crime e castigo agora?”. Tudo em Clarice vinha à tona como num celuloide literário. Em sua amada garganta de gestar lábios-palavras. “Depois se vê”, respondi eu, ainda titubeante se deveria ou não tomar de vez aquela xícara. Lentamente minha mão direita se dirigiu em direção ao açúcar oferecido, nem tão gentilmente cedida, diga-se, por Clarice. Os segundos pareciam chacais uivadores, gritadores, ladradores, mordiscantes, fervilhantes e, no entanto, inferiores. “Vai pegar ou não vai?”, disse Clarice, com seu rosto ríspido, impávido como um gorgorão acantonado na catedral de Notre Dame de Vie. Meus dedos metamórficos tentavam se aproximar, ora em congeladas poses de pedras lascadas, ora em medusas de pimpães medos. Isto é um fato consagrado. O homem é o homem e suas circunstâncias. O frigir dos ovos em óleo de fervura. A invasão da Normandia. A Heróica sendo executada pelo próprio exército de Napoleão. Gradações de impertinências. A antigüidade, temida em tudo, atrai o papel sulfite. Antífrase da doçura. Horror, cadafalso e calvário são gravados lentamente, ao sopro divino do ink jet, na impressora HP. Excluir impossível catártica sombria tragédia. “Vai pegar ou não vai?”, ela parecia mesmo nervosa. Seu olhar, em chispas, parecia até repetir isto: “carregue este seu fardo de açúcar, e desapareça!”. Evidentemente que dava razão à Clarice, pois ninguém gosta de correr riscos. Aos enredados: confisca-se no porto todo carregamento de açúcar que se levam em sacos de estopa. ”E então?”, disse ela já aumentando a voz. O dia corre, entretanto, e ela calou-se. Apostei nisto. Querendo já desistir de levar o açúcar para casa. Entretanto. Mão de lixa tem o tempo. A arte segue a paixão, o ciúme e o ódio. Há uma réstia de refúgio e amparo aos desesperados deste Rio de Janeiro. Faz calor na Tijuca. Voltam-se-lhes as bênçãos. E os, agora inutilizáveis filtros dormentes findam em lagos quietos. Tudo o que rasga o tempo é o que costura o tempo, e a História, a vitalícia, é um assalto ardiloso da qual nos protegemos no que se sabe e no que não se sabe. Assemelham-se. Tudo existe de novo debaixo do sol. O florir e o murchar são fatos inevitáveis. Entretanto é isso que faz as flores se tornarem tão irresistíveis. Pois Clarice adocicou a voz numa oferta irrecusável: “toma logo esse açúcar... É de coração... Não o coração selvagem, entenda bem!”. Tomei da xícara que estava ternamente acomodada nas mãos amigáveis de Clarice: “grato por isto, depois te trago um pedaço do bolo”. Clarice sorriu com a solução do impasse e depois entrou de volta para seu apartamento e fechou a porta silenciosamente.


Beto Palaio

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