TEM AÇÚCAR,
CLARICE?
"Tem açúcar, Clarice?”, Clarice chegou
até o vão da porta aberta. “Mas... Outra vez?”. Do pórtico já se tinha uma vaga idéia de que seu apartamento estava selvagemente desarrumado, contudo, uma
invasão de privacidade, mesmo que equivocadamente supérflua, como neste caso,
tal estivesse eu perdido o juízo.
Com esmero, não obstante, insisti no meu pedido de empréstimo de uma xícara de
açúcar: “mas, Clarice, depois te dou metade do bolo que estou fazendo”. Ela
pareceu conformada, e desapareceu rapidamente—não sem antes resmungar algo
incompreensível—para retornar com uma velha xícara de porcelana repleta de
açúcar. “Chega de crime e castigo agora?”. Tudo em Clarice vinha à tona como
num celuloide literário. Em sua amada garganta de gestar lábios-palavras. “Depois se
vê”, respondi eu, ainda titubeante se deveria ou não tomar de vez aquela
xícara. Lentamente minha mão direita se dirigiu em direção ao açúcar oferecido,
nem tão gentilmente cedida, diga-se, por Clarice. Os segundos pareciam chacais
uivadores, gritadores, ladradores, mordiscantes, fervilhantes e, no entanto,
inferiores. “Vai pegar ou não vai?”, disse Clarice, com seu rosto ríspido,
impávido como um gorgorão acantonado na catedral de Notre Dame de Vie. Meus
dedos metamórficos tentavam se aproximar, ora em congeladas poses de pedras
lascadas, ora em medusas de pimpães medos. Isto é um fato consagrado. O homem é
o homem e suas circunstâncias. O frigir dos ovos em óleo de fervura. A invasão
da Normandia. A Heróica sendo executada pelo próprio exército de Napoleão.
Gradações de impertinências. A antigüidade, temida em tudo, atrai o papel
sulfite. Antífrase da doçura. Horror, cadafalso e calvário são gravados
lentamente, ao sopro divino do ink jet, na impressora HP. Excluir impossível
catártica sombria tragédia. “Vai pegar ou não vai?”, ela parecia mesmo nervosa.
Seu olhar, em chispas, parecia até repetir isto: “carregue este seu fardo de
açúcar, e desapareça!”. Evidentemente que dava razão à Clarice, pois ninguém
gosta de correr riscos. Aos enredados: confisca-se no porto todo carregamento
de açúcar que se levam em sacos de estopa. ”E então?”, disse ela já aumentando
a voz. O dia corre, entretanto, e ela calou-se. Apostei nisto. Querendo já
desistir de levar o açúcar para casa. Entretanto. Mão de lixa tem o tempo. A
arte segue a paixão, o ciúme e o ódio. Há uma réstia de refúgio e amparo aos
desesperados deste Rio de Janeiro. Faz calor na Tijuca. Voltam-se-lhes as
bênçãos. E os, agora inutilizáveis filtros dormentes findam em lagos quietos.
Tudo o que rasga o tempo é o que costura o tempo, e a História, a vitalícia, é
um assalto ardiloso da qual nos protegemos no que se sabe e no que não se sabe.
Assemelham-se. Tudo existe de novo debaixo do sol. O florir e o murchar são
fatos inevitáveis. Entretanto é isso que faz as flores se tornarem tão
irresistíveis. Pois Clarice adocicou a voz numa oferta irrecusável: “toma logo
esse açúcar... É de coração... Não o coração selvagem, entenda bem!”. Tomei da
xícara que estava ternamente acomodada nas mãos amigáveis de Clarice: “grato
por isto, depois te trago um pedaço do bolo”. Clarice sorriu com a solução do
impasse e depois entrou de volta para seu apartamento e fechou a porta
silenciosamente.
Beto Palaio
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