sábado, 30 de julho de 2011

"Vós outros não me enojeis, que eu já matei um dos vossos e o comi".


Pintura: Túlio Tavares


Ao outro dia, que foi de Corpus-Christi, nos fomos mui de manhã á sua aldeia, onde ele havia dias que nos havia mandado fazer uma casita pequena, em meio dela, para dizer missa, e quando nos viu, assim ele como todas as mulheres da aldeia receberam tanta alegria, como se ressuscitáramos àquela hora, falando-nos palavras de muito amor, e foi-se logo á outra aldeia a convidar aos outros que viessem a beber á sua, onde lhes tinha grandes vinhos, e andando bebendo e bailando com grande festa, lhes disse que não queria que ninguém nos fizesse mal, nem falasse algumas palavra áspera, e não estorvassem as pazes que ele fazia com nós outros, que determinava de nos defender ainda que soubesse quebrar com eles, e a uns deles mais ruins disse: "Vós outros não me enojeis, que eu já matei um dos vossos e o comi", o qual dizia que um escravo dos Portugueses que era dos do Rio de Janeiro, que havia poucos dias que de cá fugira, e ele o havia morto e então mandou a uma de suas mulheres que tirasse uma canela da perna que tinha guardada, de que soem fazer flautas. Os outros vendo-a disseram: "Pois tu o mataste e comeste, comamos nós outros também", e pedindo farinha, um por uma banda e outro por outra, começaram a roer nela como perros; assim toda a cousa passou em festa e ficaram grandes amigos. Desta maneira lhes falavam também os outros em nosso favor, mas tudo aproveitara pouco se não tivera-mos outro maior guardador, porque é esta uma gente tão má, bestial e carniceira, que só por tomar um nome novo ou vingar-se de alguma cousa passada, não tivera em conta qualquer mancebo soberbo matar-nos, como é certo tinham muitos boa vontade de o fazer, talvez sabendo que por isso não havia de ser enforcado, e que todo o castigo passaria com dizer-lhes os outros: "És um ruim". Para prova do qual é de saber que neste mesmo tempo os do campo deram pela serra em uma fazenda de um homem, o qual, ainda que tínhamos mandado aviso por cartas, não se quis guardar, parecendo-lhe que, como soubessem que estavam muitos dos seus entre nós outros, já não lhe fariam mal; mas eles, não curando de nada, ainda que lhes disseram que tínhamos já feitas pazes, lhe puseram fogo á casa e a queimaram e mataram a ele e á sua mulher e fizeram logo em pedaços, e outra mulher meio queimada e ferida levaram viva e em sua aldeia a mataram com grandes festas e vinhos e cantares e junto com ela algumas escravas.


Texto: José de Anchieta


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