terça-feira, 20 de setembro de 2011




ANJOS DE LOUÇA.

A realidade às vezes. É uma bordoada. Um imenso tacape. “Desce já dessa fruteira”, minha tia-avó ralhou comigo. “A comida está na mesa. Não sei até quando vou agüentar criar filho dos outros”, ela completou nervosa, “a comida está na mesa, já avisei!”. Tutu de feijão queimado, cinzas ao eterno. Para quem isso? “Durante a noite nunca dormia. Ouvia grilos. Gritos. Cães de vizinhos desconhecidos”. Quem já prestou atenção no pó do carvão caindo sobre o próprio pó de carvão? Cerco dentro de cerco. Sempre o real dentro do real. “A luz entrando pelas frinchas da janela cria um cinema feito de poeira flutuante”. Porque acordar? Tua lombada, tua carga, passa daqui ali. Homenagens de himaláias condensados. Ao raso do chão. “Minha tia esqueceu-se de colocar o sanduiche de goiabada na minha lancheira”. Tua vida, mãe-vida, rastafáris, sua, dela, no caldo de mil vulcões. Fotonovelas. Queimadas. “Minha primeira ação de querer incendiar o mundo foi ao deixar cair um fósforo na grama seca perto da escola”. Quando o negror é aviso. Bijus de carnes. Cheias. Avenidas. De gemas. De cortinas. Mãe amante. “Minha própria mãe no quarto ao lado com o moço que é ajudante do açougueiro aqui perto”. Eis asas. Asa de libélula. Asa de colibri. Asa de amor fugido. Asa do amor daqui. Pé-de-vento. Na lâmina do céu. O infinito é um rio. Lânguido ao interminável. Doce asa do ir e vir. Asa da xícara. Asa do beiral. Asa deste instante. Asa do nunca mais. Sensualidade nas asas de uma borboleta da cor do abajur lilás. “Meu próximo incêndio foi no fundo do quintal, onde queimei uma pilha de Revista do Rádio de minha tia-avó”. Seixo-de-rio. Voa de volta ao fluir. Em lance de saltitar. Águas para depois sossegar. Asas de espirais liquefeitos. Asa de querubim. Asa do anjo torto. Asa do velho pássaro empalhado. Asa do livre pensar. Amém. “Daí a queimar a Biblia Sagrada foi um passo”. Cordeiro-de-Deus. Damos asas ao Cordeiro. Para que tire os pecados. Do mundo e suas dores. Asas de cura e de paz. Na vida e obra em porcelana. O que há de vir. Mãe escrava. “Minha mãe era funcionária da fábrica de tecidos aqui perto. Lembro que ficava feliz ao ouvir o apito da fábrica anunciando o fim da jornada. Mas ela nunca vinha cedo para casa”. Áia feita de louça, disposta. Entre potes, essências, loções. Uma penteadeira bem arrumada. Teu ser à, ao (re) lento, craquelar. Viés, tal secular, nobreza. Exemplar donzela, posta em sossego. Mãe das mães. “Uma vez ela me levou ao cinema. Um filme do Gordo e o Magro onde ri para valer”. A casa é sempre sábado. Roupas secando no quarador. Um perfume de brancura nos lençóis dependurados. Anil, Omo, Confort e o doido amor. “Tentei colocar fogo nos lençóis, mas estavam muito molhados”. Um vidro de perfume deixado. Ao destampado do espelho. Seu crucifixo de ouro. Tão dedicado à fé, em repetições. Tudo abandonado para o nunca mais. Cinzas de crucifixos. “Um dia minha mãe não voltou mais”. Tim-tim no craquelar. A pequena áia de louça. Seu ovário oco, incompleto. Uma vida apenas superfície. Nem medusa, nem musa. Clara, luz, mesmice, cruz, ali perto. “Coloquei fogo nas fotos amarelecidas que ela deixou numa antiga caixa de sapatos”. Acertando o relógio. O meu com o dela. Mãe distante. A cautelosa delicadeza da hora. Um mal que palavra alguma. Gagueja, entremeia, solidifica. Para perturbar o bom augúrio. Da paz decalcada em porcelana. O tacape. “Deixa eu explicar o que é um tacape”. Até me fantasiei de índio, pura fantasia, ao tentar captar o momento mágico de um touro solto em uma loja de porcelanas. “A vida é botar para quebrar”, disse eu imitando a mulata do Sargentelli, ajeitando seu bustiêzinho. “O espetáculo dura enquanto durar as cortinas de veludo”, falei como falaria nas coxias o produtor shakesperiano George Camerlengo. “Vem sempre na contra-mão o martelo seguro para quebrar o inquebrável”, disse enigmático um chefe de obras, equilibrista, cowboy nos andaimes, apertando os parafusos das emendas, aço com aço, da estrutura de um futuro arranha-céu. “Cabeça, tronco e membros” disse eu acertando com um tacape uma bonequinha de louça que pertencera à minha mãe. “Um dia tudo acaba”, falou minha tia-avó serenamente, chuleando uma casa para um botão de madrepérola.

Beto Palaio

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