domingo, 18 de setembro de 2011

Patrick Leger Illustration
- Não saia agora, Literatura, espere eu ajeitar a gravata....

LITERATURA, ESSA CATIVA!

A literatura é como um bicho preso. Um homem que se debate—alegre ou triste, desesperado ou sereno—dentro de um cubículo. A literatura é uma fera cercada de arames farpados. Como aquele carneiro com os chifres presos entre os arbustos. A literatura é o fogo, visivelmente indomável, a devastar um capinzal, mas com um aceiro de terra que cerca e delimita. A literatura é...

- Entre muros se faz todo serviço, no isolado do beco...

Creio, não tenho muita certeza, que um cara disse isso num filme de gângster em 1957.

- Entre as duas capas desse livro existe um pássaro preso que só se liberta com seu olhar atento.

Apenas por sarro, imaginei a Fada Sininho dizendo isso para o Peter Pan, fazendo a cara mais esperta do mundo.

- Um dia a literatura será dos garis, ou daqueles que recolhem a xepa no fim da feira, ou dos que estão na fila do INSS esperando pela féria do mês.

Isto dito por um amigo socialista, que endoideceu e largou o mundo, mulher e filhos, para refazer o trajeto de Luiz Carlos Prestes. Agindo assim como um verdadeiro Quixote do século 21.

- Não toque nisto... É meio frágil...

Disse minha Tia Nininha ao saber de minha inclinação para o conto e a poesia.

- Porque você tem de enfiar a mão nesse penico?

Falou-me um advogado amigo, o Ortiz, com a cara mais séria do mundo quando lhe segredei que estava me tornando escritor.

- Desiste que ainda é tempo...

Entretanto. Apesar dos maus augúrios. Com todas as premissas contra a literatura me servir de arrimo. Numa manhã fria. Enfarruscada pacas. Estava andando na praia com meu walkie-man. Sem o que fazer. Chutando o final das ondas que se espichavam na areia. Súbito, como toda iluminação interior tem mesmo de ser. Ouvi ali uma música cantada pelo Gonzaguinha que fez eu querer me tornar escritor. A bem dizer um moleque disfarçado de letras me chamou intimamente para adentrar seu mundo de folguedos:

- E o menino com o brilho do sol, na menina dos olhos, sorri e estende a mão, entregando o seu coração, e eu entrego o meu coração. E eu entro na roda, e canto as antigas cantigas de amigo-irmão. As canções de amanhecer, lumiar a escuridão. E é como se eu despertasse de um sono que não me deixou viver. E a vida explodisse em meu peito com as cores que eu não sonhei. E é como se eu descobrisse que a força esteve o tempo todo em mim. E é como se então, de repente, eu chegasse ao fundo do fim, de volta ao começo...

Achava no meu inicio que a Literatura seria um menino irrequieto. Fiz-lhe os mimos. Dei-lhe pacotes e mais pacotes de goma de mascar. Doces dos mais variados, desde o vulgar e melado doce de padaria ao fino confeito árabe comprado nas escuras travessas da rua 25 de Março. O menino exigia. E eu dava. Pediu sorvete, saí madrugada afora atrás de uma sorveteria aberta. Pediu baba-de-moça, canjiquinha e cocada. Contratei uma doceira baiana para lhe fazer as vontades. Pediu, por fim, moça de carnes novas... Vi que meu menino havia crescido e mudei o cardápio... Fiz de tudo ainda para agradá-lo...

- Quero sim, uma moça que trepe no coqueiro como a Gabriela...

Depois passei a achar minha literatura algo sério, vinda das vilas dos confins, nascida em bafio agreste de rosa e sertão. Uma literatura pregada de tábuas de que se fazem canoas sestrosas pintadas no bojo com o nome de Rosinha. Brasileiríssima. Pendendo para andar de alpargatas, mesmo que esta se enchesse das areias da Ponta do Seixas, ou ficassem esquecidas ao sol de Ipanema.

- Ô, escritor... Liga um João Gilberto e solte a palavra... Esse é o segredo...

Logo a literatura pegou um entojo de bossas novas. Atreveu-se a ficar quieta. Quis resumos. Não causava nem criava efeitos. Minimalizou-se. Quis escrever monotonamente, como se o texto fosse um longo rugido que saísse do fundo de uma cocha ao pé do ouvido. Foi assim quieta que ela, a literatura, me abandonou. Minimamente protegida pelos seus ideais pósmodernos. Foi-se.

- A literatura é um bicho sem sal nem açúcar.

Dizia isso aos quatro ventos. Parei de escrever até. Passei a beber latinhas e mais latinhas de bebida energética. Ficava acendendo velas vermelhas para o guia do bom texto e velas pretas para o guia do texto safado. Mas nenhum me atendia os brados. Por fim, lembrei-me do Gonzaguinha, que veio novamente me socorrer:

- De volta ao começo, cara... De volta ao começo!

Ah, a literatura!... A literatura é como um bicho preso. Um homem que se debate—alegre ou triste, desesperado ou sereno—dentro de um cubículo. A literatura é uma fera cercada de arames farpados. Como aquele carneiro com os chifres presos entre os arbustos. A literatura é o fogo, visivelmente indomável, a devastar um capinzal, mas com um aceiro de terra que cerca e delimita. A literatura é...

Beto Palaio

Ilustrações de Patrick Leger.

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