sexta-feira, 30 de setembro de 2011


VIDA NOVA PARA SEVERINA

Perder o senso. Certo que sim. Grandiosa é a esfera que nos sustenta a todos. O céu é feito de papel crepom. As estrelas são apenas furinhos ornamentais neste empapelado todo. E a Terra não se move. Nem poderia se mover. Não te parece lógico? Entretanto quando a vi. Soube da existência de uma criatura imensa. Azulando longitudes e latitudes. Exalando nuvens celestiais. Mais até. Branquinhas no demais. E a Terra polvilhando suas lonjuras. Saara acolá. Fincado na areia. Amazonas aqui, afogado na água doce. Ao planeta Terra azulejado. Mares em abissais cantorias. Uma entre outras tantas. Praias cantantes. Cartas em uníssono. Retornam ao remetente. E voltam, e voltam. Ao lado do paraíso. Planta de pé, bolhas na mão, mapa na cabeça. Um chapéu de palha e uma bússola improvisada, feita de rolha e alfinete imantado em repentinos esfregaços. Cargas, positivas e negativas, vindas, confusas, de outras lonjuras, nos encontrando. Andrômeda. Conversazinhas. Sendo-as, umas claras, de olhos azuis, lindas como a pirraça encomendada em sermão dominical. Um pianista tocando no saguão do Cine Ouro. Quando entramos no cinema, o filme estava na metade: Madame Anais: “Eu tive uma idéia. Você não gostaria que te chamasse de bela da tarde?”. Séverine Serizy: “Bela da tarde?”. Madame Anais: “Isto porque você só vem aqui no período da tarde...”. Séverine Serizy: “Se você acha bom me chamar assim, eu não me importo...”. Madame Anais: “Está combinado então, a partir de agora você é a bela da tarde...”. Ela lambeu a carta na dobra contendo cola. Despachou qualquer suspeita de continuar sendo a esposa ideal. Passou manteiga-de-cacau no lábio sensível, e ofereceu ao primeiro que entrou no seu novo quarto. O chofer de praça ainda não acreditava no que via. Severina, assim como a vida, era demasiadamente bela. “Meu carro está na garagem. Não temos nenhuma pressa. Mas fuja comigo”. O mundo caindo pelas tabelas e o taxista nem percebendo. Severina estava assustada. Ele era seu primeiro cliente, dava-lhe asco, mesmo assim beijou-lhe a boca. “Sobre o carro... Na garagem... Nenhuma pressa”. Ele quis outra vez. Adentrar-lhe a gruta rosada. “Você não existe, Severina”. Ela cederia a tudo o que ele pedisse. Estava aprendendo a arte de amar no avulso. Pronta entrega. Lava e usa. “Belezinha da Tarde, eu te adoro de verdade”, isto dito por um alfaiate. Barba por fazer. Ainda mascando o palito do almoço. Ele que tinha no corpo o perfume de xampus. “O senhor toma banho de xampu?”, Bela da Tarde lhe pergunta. “Sim, claro que tomo. É uma mania minha”. E todos têm mesmo certas manias. Tudo a leva para enredos e definições de improviso. Como num conto de fadas. Quando o peludo lobo mau. Deglutiu a vovozinha e pareceu mesmo insatisfeito. Na emenda de uma grande estória, dessas contadas em mil páginas de um Norman Mailer, trovadores afins, todas as páginas revestidas de frescor, opiniões condescendentes daqueles que nunca, jamais, davam opiniões erradas. Severina sentiu um jogo brutal nesta exigência generalizada. “De que o dia e a noite... Não existem de verdade.". Reafirmou isso a um caixeiro viajante, um homem até bonito. “Tu tens a boca mais linda que minha boca beijou”, disse-lhe o caixeiro, nem se importando sobre dias e noites. “Teu corpo é divino!”. Este deu de segui-la pelas ruas. No que ela disfarçava. Entrava em lojas que não precisaria entrar. Passava por desvãos de prédios que nem precisava passar. No dia seguinte o caixeiro estava lá. Pagando pelo tempo que teria ao lado de Severina. “Te trouxe um presentinho”, e lhe dava uma caixinha revestida de sedas e fitilhos rosas, “é apenas uma lembrançinha mesmo”. Severina abria a caixinha e se deslumbrava: “um anel de diamantes... Você enlouqueceu?”. Mas, saindo dali, ela jogou o anel no primeiro tambor de lixo que encontrou. No dia seguinte Bela da Tarde contou para Madame Anais do que fez com o anel. Esta contemporizou. Levou o assunto para o lado prático: “A mulher está massacrada por dois mil anos de culpa católica... Qual o problema de dar por dinheiro?”. Assim acabava com os argumentos de Bela da Tarde que estava descobrindo, no dia a dia, o lado nobre de fazer o que sempre quis, ao multiplicar-se nas trepadas inigualáveis, sempre doando tudo de si, à exaustão. “Ele, o amor, cresce infinitamente quando eu o divido com mais e mais homens...”. Os olhos que tudo vêem. O olhar da sabedoria e da conveniência. Esses invadiram o tal diagnóstico, cara a cara, da comparação desses homens todos com seu marido, que nem era mau para ela, nunca fora na verdade. O problema de Severina é outro. Ela nunca havia apreciado se doar. A vida com Ivan, seu marido, até que não ficara diferente do que era antes dela freqüentar a casa de Madame Anais, “Eu e meu marido somos dois dementes apaixonados. Sim... Eu amo meu marido... Apesar de pensarem o contrário disto”. Nos dias e noites sem fronteira, como acreditava Severina, um detalhe apenas era necessário que constasse, seu mote preferido, a desculpa perfeita para continuar sendo a Bela da Tarde: “O que há de errado em dar carinho para alguém que você não conhece?”.

Beto Palaio

(O conto acima foi livremente inspirado no tema Belle de Jour)


Sinopses dos filmes de Luis Buñuel.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom!!!
Agradou ... salvou a manhã ensolarada ... animou à tarde

parabéns!!!