quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Klee, Paul - New Harmony - Blaue Reiter - Oil on canvas - Abstract - Guggenheim Museum - New York, NY, USA
Paul Klee

UM BAND-AID COMO MARCADOR DE PÁGINAS.

“Legal, cansei um pouco”, disse isto para Adélia Prado, que riu. Achou mesmo muita graça. E depois voltou a dormir nas páginas de seu livro, enquanto eu busquei o travesseiro, apalpando-o, sentindo suas painas, me ajeitando, para dormir também. “Vou colocar esse band-aid como marcador de páginas”, pensei, já me arrependendo, tentando me redimir, “que fique claro que a Adélia Prado tem mais poderes de cura que um band-aid”. Logo depois outras arregimentações de desculpas para que uma hora dessas eu reinicie a escrita de meus textos abandonados há um ano que nunca mais escrevi uma gota sequer de tinta e deixei até todos os meus lápis Johann Faber Nº 5 sem ponta sem uma só intenção de voltar a apontá-los não que isso fosse um impedimento sério pois pode-se abrir um lápis até com um reles canivete e escrever somente com a mina de carvão que fica escondida lá dentro num sanduiche de madeira cheirosa a qual creio ser oriunda do cedro me ponho a aspirar a madeira que envolve a mina de grafite do lápis e lembro-me das serrarias as quais visitei desde a infância por um motivo ou por outro e ali numa especifica serraria descubro em meio a uma sugestão de imagens agora borradas pela má lembrança as quais mal definem uma pessoa querida que está ao fundo de um imenso galpão repleto de madeiras empilhadas e vagamente mostra meu próprio tio Alberto ajeitando um imenso tronco de cabriúva destinado ao extenso corte longitudinal ao redor do qual constatei que aquilo que sobra em uma serraria após o desbaste metódico redundando em largas taboas de um tronco de madeira é o que realmente me interessava pois as sobras que vulgarmente chamam de serragem é aquilo que inicialmente revelou este característico perfume que hoje sobrevive à minha curiosidade dentro de um lápis imaginando que seja o mesmo perfume de madeira rara que remete àquele pensamento kitsch indiano de que o sândalo perfuma o machado que o fere nisto por falar em ferida aberta lembrei da semana passada quando vi minha namorada nervosa pegando as chaves do carro e indo direto para a porta da rua batendo com força ao ir embora e eu acho que não tenho mais que me preocupar quem está certo ou errado pois não há ninguém para culpar mas aqui estou perdendo quem amo e ainda mantendo a calma lendo um livro na cama até tarde e me pondo a pensar em coisas que há muitos anos não pensava inclusive este se revelando agora como um bom motivo para eventualmente rabiscar a idéia de um conto onde creio na ressurreição vinda especificamente das letras quando me ocorreu isto de um samaritano que foi salvo por um bom cidadão judeu apenas porque lhe pediu apoio num dia péssimo para ele que estava na beira da estrada onde foi abandonado por bandidos estes sendo marginais judeus em delito mas acabaria por ser ajudado pelo rei dos reis que na época nem sabia disto por ser jovem e talentoso e caridoso e sociável e também um cidadão judeu diga-se porém ser este um jovem rei universal despido de vaidades que nunca lançara falsos testemunhos nem nunca desanimara de sua árdua tarefa muito menos perante qualquer dificuldade antiga inscritas premonitoriamente nas escrituras ou nas ações milagrosas à ele modernamente atribuídas como sintonia fina sendo a mesma a qual agora surge com o uso do vocábulo moderno para vir à baila exemplarmente e o qual fez muito estrago na concepção livre da obra de arte pois um escritor deveria somente escrever mas tem de pintar para explicar o que quis dizer com a escrita e fotografar para explicar o que quis dizer com a pintura e criar equações estratosféricas com palestras infindas para explicar o que quis dizer com as fotografias algo tão complicado em essência como fica também difícil mesmo para a Nasa explicar tim-tim por tim-tim que o Homem pisou realmente na Lua com fotos preto e branco nas quais a melhor sombra e direção do vento indicam que foram feitas na Terra e que ficariam bem mais confiáveis realmente do que se fossem feitas na Lua fato corriqueiro para quem tem Hollywood tão pertinho onde bastaria um breve sinal e um milhão de fotogramas mostrando um pé envolto por uma roupa de astronauta pisasse numa Lua qualquer que fosse entretanto isto nunca aconteceria pois o que eles fazem é complicar ainda mais ao enviarem na época uma equipe inteira de fotógrafos e produtores culturais para a Lua para poderem se posicionar antes que o primeiro astronauta ali descesse quando o curioso é que não há marca nenhuma de que alguém estivera no chão da Lua quando antes no entanto alguém se posta a uma distância razoável para poderem tirar fotos do que alegam ser a primeira real marca de sola deixada em chão extraterreno mas isto pouco importa, pois a única coisa que quis realmente era chamar o sono ao colocar o band-aid como marcador de página para que a autora pudesse dormir nas páginas de seu livro, enquanto eu buscava, sem pressa, o travesseiro, apalpando-o, sentindo suas painas, me ajeitando, para dormir também: “boa noite, Adélia Prado”, desejei eu depositando serenamente no criado-mudo o livro dessa autora incrível, enquanto ajeitava a coberta de retalhos para mais uma noite de sono reparador.

Beto Palaio


Um comentário:

gugala disse...

caracas, e com a vírgula chegando, só no sem pressa, para acalmar um pouca a alma. Demais , Betão