terça-feira, 11 de outubro de 2011



A CORVINA VIVE

O céu de grama molhada, silêncio de grudar, em objetar diretamente, os jovenzinhos olhares da alma. Quando o reflexo da luz da geladeira bateu no olho da corvina. Vi que estávamos errados. Toda raça humana. Palavras, bocas, gestos, leis. Quebrei o silêncio em favor da corvina: “perguntem para ela, olho no olho". É bem possível que ela te diga sumas, coleções dela ser, hábil pensadora, de tempos que passou a sua infância e juventude sob as ondas. Ela sempre entretida nos compromissos abissais de H2O, onde o urbano aquático reside trezentos e sessenta graus, afinado no aglomerado de ser mar, sopa primordial. Ali as estações do ano se multiplicaram de dois em dois. E esta corvina aqui, aliás, todas as corvinas do mundo, são peixes de oito estações por ano. A primavera e a primaverinha; o verão e o veranico; o inverno e o degelo invernal; o outono e o vasto outono. Em verdade a única estação do ano que a corvina não acompanha em sua própria casa, cara a cara, é o vasto outono. Estando, como os demais, ao fluxus. Quando todos os seres frios se lançam em direção à Florida. Sobre essa mágica estação, se pudesse, a corvina diria: “o vasto outono é o período mais feliz de todos”. Este é o tempo de férias e diversão, quando, agrupados, os peixes saem de viagem, às ilhas que eles dão a volta, longamente, praias desabitadas para namorarem e depositarem ali os seus ovos. Tempo de amar e ser amado. Soube por uma velha Delta-Larousse que as corvinas são poli-amantes. Cada corvina fêmea ama desesperada e encantadamente, pelo menos, trinta machos ao longo da estação propícia. Agora segurava uma corvina nas mãos, diante da geladeira. Não pude deixar de imaginar se aquela corvina já vivera seu vasto outono. Ela parecia jovem ainda, “tão jovem e possivelmente nunca amara, talvez sequer tivesse ainda planejado a sua primeira migração para as ilhas tropicais, tendo trinta namorados à sua disposição”. Para ela eu balbuciava minhas insônias: “ser ou não ser feliz, corvina?”, evidente que ela queria ser feliz. Foi assim que meu barco aportou outras instâncias. Sabe-se que o tempo dá uma trégua de continuar indo para frente, dele ficar como que aposentado quando estamos mergulhados em cores de nosso interesse. Nesta específica madrugada. Eu com a geladeira aberta e uma corvina morta nas mãos. O tipo de peixe que, mesmo depois de morto, põe em nós um olho sonso. O olho deles é um ponto abotoado que sempre ganha da gente em matéria de hipnotismo. Hoje olhei fixamente para essa corvina pedindo desforra, quis ganhar dela em matéria de olho fixo. Depois peguei uma tigela vazia e coloquei a corvina dentro. Suas barbatanas dorsais e peitorais brilhavam, assim como as suas milhares de escamas, em arco-íris. A corvina assim ganhava dignidades. Parecia mesmo um Tutancâmon em suas vestimentas reais de alabastro, ouro e lazúli. Num repente me ponho a lembrar que uma vez tive uma experiência estranha, ao ressuscitar, talvez por acaso, um pequeno peixe jogado na areia. Era um desses baiacus que incham na presença do perigo. Eu salvara o baiacu apenas pela insistência de vê-lo vencer as ondas, cara a cara, segurando-o nas mãos enquanto ele recebia o caldo das ondas na sua cara de peixe. O baiacu logo ganhou vida, saltitou da palma da minha mão para a avenida elétrica de viver novamente. Porque não tentar o mesmo com a corvina? Quem sabe? Se eu ressuscitei um peixe uma vez, poderia tentar novamente. Fiquei olhando a corvina esperando talvez que sua diminuta boca de guilhotina, dentes de navalha em cima e embaixo, me dissesse “sim, vamos tentar esse artifício de beijar ondas para tentar reviver”. Embrulhei a corvina num papel celofane e saí com ela às cinco da manhã em direção à praia. Ninguém na rua, onde caminhava somente eu e a corvina. Chegando perto da rebentação, explosões de energia aquática por todo lado. Coloquei na boca de serrote da corvina um comprimido de AAS infantil. Achava que aquilo poderia ser útil, sabe-se lá! E não perdi mais tempo. Corria com a corvina de onda em onda, deixando sua boca à disposição do que melhor lhe parecesse: “ou ficar trancada para sempre, ou tratar de beber água e depois viver—sim, viver!—e ir se juntar à turminha dela, rumo ao turismo aquático do vasto outono”. A corvina escolheu a segunda opção. Subitamente a corvina tossiu. Bebeu água o bastante para se livrar do AAS, que despontou em babas rosadas pelas guelras. Em seguida a corvina bateu forte suas barbatanas e zarpou, cortando águas em direção ao fundo. Neste momento percebi que a forte corrente marinha fazia cócegas na sola dos meus pés. O mar comia a areia que meu peso comprimia. O milagre da restituição da vida ocorria novamente. Desta vez voltei para casa feliz de verdade. Em algum lugar neste vasto mar uma corvina nadava firme em direção às praias caribenhas. Estava indo, quem sabe, à procura de seus trinta namorados.


Beto Palaio


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