terça-feira, 18 de outubro de 2011


CÓCCIX

Foi o que eu disse, ela não estava na beira do abismo coisa nenhuma. Um aval de psiquiatra é tão voluvel quanto a predisposição dela de se sentir doente. Mas logo dou razão ao psiquiatra. Qual o motivo de alguém decotar o vestido daquele jeito? Fui ao jantar com os ex-colegas de escola da classe de 1976, mas não vi minha ex-mulher por lá. Perto da borda da piscina encontrei a antiga professora de quimica. Ela continuava linda, o mesmo piteuzinho, uma loira de aparência jovial e, aliás, bastante encantadora. Foi a professora quem me reconheceu na hora. Depois da abertura da champanhe, nós dois fomos para um dos quartos da mansão. Ela ainda me chateou com essa estória de tabela periódica dos elementos. Só que dessa vez executava em mim um boquete divino. Mas a minha ex-professora parecia saber exatamente o que aconteceria a seguir. Alguém bateu na porta do quarto e era outro casal querendo usar as dependências. Eles praticamente nos convidaram a sair, mas não sem antes nos incluir numa partida de tênis, que ocorreria, “sem falta”, sábado próximo no clube da Prefeitura. O garanhão que ocupou o quarto disse que, na verdade, preferia caçar lebres no campus da faculdade. E ainda olhou-nos com um certo desdém pela fresta da porta antes que ela se fechasse. Eu e a professorinha fomos terminar o nosso affair dentro do meu carro, onde ficamos nus no banco de trás. Ali a puxei pelo cóccix enquanto estávamos encaixados num ir e vir especialmente sensual. Depois não nos vimos mais. Foi uma pena. Pois no fim de semana seguinte fui sozinho para o sítio. A solidão no campo parecia ser ainda maior. Há locais em que a natureza, queiramos ou não, nos transforma em filósofos contumases. Sempre imaginei que as pedrinhas se transformassem em pedras maiores, e as pedras maiores se transformassem em montanhas. As montanhas lançam uma sombra que é sempre acompanhada de mais frio que o natural. Vejo as atividades de meus vizinhos nessa casa de campo. Eles não podem me ver, pois estou numa posição que a cerca viva me encobre parcialmente. A mulher, bastante atraente por sinal, saiu para o gramado com alguns prendedores de roupa na boca e abraçada a duas ou três peças avulsas que, em seguida, dependurou num varalzinho improvisado no canto da casa. Seu marido a seguiu sem pressa e a enlaçou, como se fosse para abrandar alguma briga anterior. Por baixo de sua blusa de crochê ele apalpou seus seios fartos. Depois eles entraram na casa, já tirando as roupas. Só me cabia ficar imaginando. Ainda sobre as pequenas coisas que causam grandes contratempos. Uma avalanche na montanha pode começar com o rolar de uma pequena pedra. Uma coisa leva a outra, a qual, por sua vez, leva à outra completamente diferente da primeira ação. Acontece isto também no amor. Um pequeno ato pode levar à conseqüências inimagináveis. Então, mais para o meio da tarde, me ligou um oficial de polícia da cidadezinha mais próxima. Estranhei que ele possuísse meu número. Falei isso para ele. E ele repetiu novamente, desta vez pausadamente, que era da polícia. Depois ele relatou que um cão apareceu morto numa ravina perto de casa com os intestinos completamente para fora. Acrescentou ele que nada no cão fazia crer que isso seria ato de algum animal predador: um lobo, um puma, ou mesmo um urso. “Isso é coisa de débil mental”, acrescentou o policial. Logo depois teceu mais alguns comentários contra a loucura generalizada do planeta. Só então desligou. Fiquei sem saber, inclusive, o nome do policial que efetuara essa ligação telefônica, uma verdadeira chateação, sem dúvida, muito mais do que indiscreta. Mas não pude deixar de pensar no destino do pobre cão, subjugado por algum maníaco idiota que o esfaqueou sem dó nem piedade. Naquele mesmo dia quis pintar uma tela, como fizera várias vezes, nesta mesma casa de campo, em meu tempo de solteiro. Fui parar no sótão atrás da minha velha caixa de pintura. E consegui montar algo parecido a um atelier improvisado ao lado da piscina. Estava fazendo um belo pôr-do-sol, e logo a noite se avantajou e engoliu tudo com sua bocarra negra. Minha tela tinha a conveniência de estar me trazendo de volta o perfume do óleo de linhaça, algo que particularmente adorava. Nem pensava muito no tema que desejava pintar. Queria, quem sabe, retirar daquela paisagem caipira alguma imagem semelhante à que Van Gogh pintara em suas peregrinações noturnas. Mas não consegui nada disso. A falta de luminosidade me fez trocar a cor verde pelo vermelho, o vermelho pelo preto, e assim por diante. Quando dei a pintura por acabada fazia frio. Na luz do terraço pude aquilatar a balbúrdia informe que havia retirado de uma inocente paisagem estrelada. Deixei a pintura de lado, encostada em uma espreguiçadeira que pertencera ao meu avô. E fui tratar de tomar um banho quente, para depois, já insulado num cobertor, assistir a algum filme na TV. Esse era um luxo via satélite que me proporcionei ao comprar, desde o ano passado, a antena parabólica. O incrível é que aquele mesmo policial que ligara antes falando da tortura e morte do cachorro, me telefonou novamente. Desta vez ele ligou à meia-noite, e tinha a voz arrastada de quem bebera excessivamente. Seu telefonema era para tratar de um detalhe macabro, o que acrescentaria ainda mais enigma ao fato do relatado cão haver sido morto em circunstâncias misteriosas. Ele disse que uma autópsia profissional e minuciosa fora realizada no animal. Ainda sem saber o que dizer, eu apenas ouvia atentamente as suas arengas. “Só digo ao senhor que dentro do cão foi encontrado um pedaço de papel com uma só palavra escrita”, fiquei esperando que ele falasse mais, pois não tinha intenção de me comprometer com nada, menos ainda com uma possível discussão com o policial. Mas ele mesmo se adiantou para dizer a palavra que estava escrita naquele papel oculto dentro do cão assassinado: “CÓCCIX”. O policial repetiu que a palavra escrita naquele bilhete ensangüentado era “CÓCCIX”, depois desligou, mas antes me pediu permissão para dar uma busca no meu quintal, já que não tinha autorização do juiz local para adentrar minha casa. Respondi que estava à sua disposição. Depois me despedi cortesmente, dizendo que o aguardava logo pela manhã, e que lhe desejava uma boa noite.

Beto Palaio

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