sábado, 15 de outubro de 2011



O ENCONTRO DE XERIFE COM ROSINHA, NOSSA CANOA.

Tão capins de amizade. Estatelou-se na grama e ficou cheirando as folhas verdes e frias. Lá na frente havia uma ilha no rio. Ouvíamos dizer que lá moravam os leprosos. Gente como a gente, mas sem orelha, nariz, ou mesmo dedos. Tudo isso nos mantinha afastados da ilha. Ficávamos do lado de cá olhando a outra margem. Sem vontade de aportar na ilha. Até que um cachorrinho esperto chamado Xerife nadou até lá. Seu dono era um menino papagaio, o mais falante, de cabelos curtinhos, par e passo com o nome do vento, chamado por Alísio. Tudo ia muito bem naquela pescaria domingueira. Calhou então do Xerife, o cão de estimação do Alísio, nadar até a ilha dos leprosos e não saber mais como voltar. Aparentemente ele se metera numa confusão que não tinha outro jeito senão buscá-lo. Surge com isto a dificuldade natural entre os dois pontos. Isto fica claro quando se esmiúça. Nasceram de invenções diferentes as ilhas e os rios. São ocorrências que sugerem criadas por diferentes demiurgos, e sequer idealizadas ao mesmo momento. Pense nisto: deslizantes, frios e adversos são os rios. Extras para dormirem na distância, são as ilhas. No mais uma adequada parideira é essa grande mãe inventiva. A relevante Natureza. No que se reveste. De receios são feitos todos os temperamentos humanos. Como se não bastasse, Alísio chorava de um lado do rio e o Xerife, do outro lado, também chorava. “Xerife, aqui, Xerife, aqui, Xerife”. Era de cortar o coração ouvir esses dois chorando, pois possivelmente, vindo do lado de lá, os ganidos do cão significassem: “Alísio, aqui, Alísio, aqui, Alísio”. Comovidos pela separação. Demos de criar engenharias flutuantes. Planos de madeira balsa. Logo inventamos pirogas e barcos, até veleiros, submarinos de tambor, meninice em cima de bóias de pneus de caminhão. Historiávamos a primeira coisa quieta que se pensou. “Vamos gritar pelos leprosos, talvez eles venham ajudar”. Se os medos, de adoecer, ficar para sempre ali, crispassem, esses medos eram menores, que a perda, do Xerife. “Vamos buscar esse cachorro custe o que custar”, disse um de nós. “Vamos inventar um barco”, repetia outro. “Vamos perguntar para aquele homem que está pescando”, disse mais apropriadamente outro menino. Soma-se o que disse o pescador: “sou um homem sincero... Minha testemunha é de que vocês não iriam lá... Há o perigo da lepra... Mas não tenho barco... Desçam a margem do rio... Talvez achem alguma canoa encostada por aí”. Assim, o obedecemos. No meio do caminho de nossa busca. Um mundo de palmas, coqueiros, folhas flamejantes, capins pobres, capins ricos, passos de lama, pedras a desviar. Tudo isto na guantanamera tropical do rio abaixo. Mas éramos meninos e tínhamos um brilho nos olhos, frutos da crença, que eram cantigas de amanhecer, luz na escuridão dos bem aventurados. Despertos, entretanto. Logo nós, meninos escoteiros, descobrimos a choça de um indígena. E pedimos a ele um barco emprestado. No que agitou que sim com a cabeça. Esse índio conhecera pessoalmente, de conversar mesmo, ouvir estórias de rio, à um tal Zé Orocó. E sabia onde o Zé Orocó escondia sua canoa Rosinha. “Ela é feiticeira, essa canoa Rosinha”, o índio advertiu os meninos. “Quem é corajoso aqui?”, o velho índio perguntou. E todos, nós, crianças, ao mesmo tempo, levantamos os braços. “Pois somos corajosos, mesmo”. E o índio acreditou naquela parruda exibição e nos mostrou onde estava escondida a canoa do Zé Orocó. Aos momentos que nos revestem de descobertas frutíferas. Vínhamos montados em coragem. Enveredávamos por um secreto contentamento, xereta, curioso contentamento. Ao tudo perto, sentados ainda naquela choça. Observávamos as rugas daquele homem que falava sem nunca piscar os olhos. Como que, chispas, atendendo, caprichando em nos socorrer, um bando de moleques jagunços, ladrões de tempo e de perobas alheias. Mas este velho índio não se findou. Abriu as portas de sua cabana de par a par. “Pois, logo que usarem a canoa... Venham aqui em dedo de prosa para devolver a canoa Rosinha”. Depois, bússolas no prumo, ladeamos a margem do rio por um tempo. Afastamos cipós e desavenças e medos e descrenças e azedos e intolerâncias. Assim que chegamos ao local. Mais de quinhentos metros rio abaixo. Afastando capim-colonião. Chegaram-se todos. Perto de um portinho de areia, dizer seguro do indígena, de que existia de se pegar, escondidinha, ali mesmo, a canoa de um Zé Orocó, fugido do Mato Grosso para São Paulo. “Tem uma canoínha sim, a Rosinha, escondida no cipoal”. Ao que ninguém queria entrar lá. Umas taturanas que se temiam, aranhas caranguejeiras, mais até que a soma dessas, tataranhas, chegassem perto do pico de uma cobra jararacuçu. O dente dessa cobra que fura até bota. “Quanto mais a gente que está descalço”. Logo a coragem tomou vulto. Alísio na falta de Xerife. E nós todos, entregando nosso coração naquela curva de rio. E fomos. E vimos Rosinha. Um pingado logo se entretém com o bocadinho. Bobo com bobo, limpávamos já a canoa. E terminaram as espinheiras que grudaram farpas nas nossas roupas. Felizes. No agora. Cheiro de mato e murmúrio de rio. No que se aprende só se esperta. Ainda se lia o nome Rosinha, escrito em cor de pimenta. E regressamos todos dentro da canoa. Remando, completos. Rio acima. Por causa do amor. E também da firme determinação de salvarmos um cachorrinho chamado Xerife. Ali na perigosa ilha. Sentadinho, quieto que só, numa pedra. Bastou que o atraíssemos pelo nome. Ele, o Xerife, saltou também na canoa. E voltamos todos. Numa falta de vontade, barriga mais que barriguda, de devolver a Rosinha. Mas devolvemos sim. E esta estória, assim explicada, tanto nesta vida como em qualquer outra, terminou.

Beto Palaio


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