domingo, 11 de março de 2012

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LIMONADA TUDO ERA TÃO INFINITO.

Sopa de pão com café com leite. Cachimbo com fumo barato. Rambrã está na sombra do quintal. Entre árvores e arbustos. Ao claro-escuro. E os sinos da catedral batem a toada da meia-noite. Com Rambrã. A estória. Surge franzina, honesta e familiar. Com certeza. Quando lhe apetece que assim seja. Ou a estória lhe é contada de forma untuosa, perigosa e canibal. Então ele vira o bicho. Esquenta a moringa por bobagem. Arruma um jeito de encrencar com quem estiver por perto. Adrenalina não é macho. Adrenalina é hermafrodita. Tudo na medida para grandes emoções. “Sobrevoa a cidade um clima de incerteza”. Rambrã, misto de burguês somado a algum andarilho descolado, na trama. Só o vitalício, na peça, tem direito a um discurso. Mesmo que a paixão não sobreviva. Um rochedo canta no meio da noite. Estamos agasalhados como grandes pássaros. Caminhamos encolhidos das pequeninas gotas que flutuam no ar. Sob abrigos negros. Rostos anônimos. “Quem sabe isto acontecerá contigo”. Palavras trocadas em segredo. Guarda-chuvas também negros. E a peça de teatro é desmoronamento. Reles apelos. Limonada tudo era tão infinito. Rambrã desceu as pedras limadas pelo uso. Vinha pelo pavimento que dá acesso para a entrada principal. Trazia na mão uma folha de papel. Amassada pela leitura nervosa. “Diz-me quando estará pronto”, dizia uma frase escrita com letras torneadas na carta, “ou não suportarei... e agirei da minha forma”. Tal como. Uma chave que se fecha num momento anunciado. Tudo para estar fora de si. Nervoso no justificável. Rambrã recebera uma carta da Senhorita Morte. Ela falava com ele, sem peias, diretamente proporcional, com a qualquer animal, ou vegetal, ou qualquer vida planetável, injetável, suportável. “Tantas coisas que gostaria de falar diretamente para você, Rambrã”. A vida pode ser longa ou curta. Acredita-se em fadas. Gnomos. Anjos da guarda. Um dia sonha-se com um coração eletrizado por lantejoulas. A sanguinária máfia não tem tanto poder de crime quanto um coração eletrizado por lantejoulas. Uma enciclopédia Delta-Larousse de vinte e quatro volumes não tem tanta razão quanto um coração eletrizado por lantejoulas. A última frase de Kafka—limonada tudo era tão infinito—não tem tanto poder de especulação filosófica quanto um coração eletrizado por lantejoulas. Um sol de verão num gramado cálido repleto de crianças felizes correndo e cada uma delas sendo feliz o quanto pode tendo ruas e avenidas e propósitos de liberdade não são tão livres quanto um coração eletrizado por lantejoulas. Um rapaz solteiro vivendo sozinho numa cidade grande e que escreve para sua prima algo como “pode dizer lá em casa que quase consegui emprego, são tantas ofertas de trabalho que eu nem sabia qual pegar primeiro”, não é tão esperançoso de conseguir algo como um coração eletrizado por lantejoulas. Não por acaso. O hoje é uma canoa singrando um mar desconhecido. Voltas e voltas que damos no lado breu do conhecimento não adquirido. Sentado no sofá da sala. Nem quis ligar a TV. Mas abriu um sorriso quando seu neto chegou. Rambrã, em geral, odiava crianças. Mas o seu neto Matiz veio lhe mostrar uma foto escolar onde ele aparece feliz ao lado de outros meninos. Já sentado no colo de Rambrã, o seu netinho Matiz revela quem estão na foto tirada por uma Polaróide. “Avozinho, esta é a minha turminha na escola... Este é Vangô, o menino de cabelos vermelhos... Esse menorzinho é o Tuluze... Esse de camisa colorida é o Derrã... O que está na escada de incêndio é o Delacruá... Esse outro de chapéu de palha é o Renuá... O menino com avental de confeiteiro é o Monê... Este outro, ao lado de uma menina índia, é o Gogã... A menina também está na nossa classe e se chama Taiti”. Rambrã gostou do que viu. “Quanta criança esperta... Traga esses meninos para conhecer o vovô qualquer hora... Pode trazer a Taiti também... Vamos fazer uma limonada muito doce nesse dia”. Matiz sabia da aversão do avô pelo barulho de crianças: “mas, avozinho, eles são barulhentos”. Neste exato momento um gato preto salta da escuridão para o meio da sala. O animal mais parecia uma pantera negra. Matiz ficou assustado com aquilo. Achou que o gato o atacasse, pelo motivo que fosse, a qualquer momento. Enfim o destino, na forma de um negro gato, repleto de fundamentada representação informal, poderia também ser chamado de pedra do mau agouro. Metamórfico esse gato, ora em atos de vir a ser, do mesmo modo, no comum do existir. Outras formas. Rambrã tratou de tranqüilizar o neto: “eu já vi este gato impertinente hoje... Mas ele me surgiu de outra maneira”, seu neto olhava para ele sem entender, “esse mesmo gato me apareceu palpitante, brilhante, sonhador, musical, infantil, retórico, confiante, alegre, apaixonado... Tudo no formato de um coração eletrizado por lantejoulas”.


Beto Palaio

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