sábado, 17 de março de 2012



CAPITU EM DOIS CAPÍTULOS

I

Eis a bela Capitu. De souvenir em souvenir, por acidente ou erro, divulgando suas peripécias terrenas. Discretamente, diríamos até que pecadora, aos modos de submissa, contrariada e feminina ao extremo. Entretanto. Aqui poderíamos resumir seus interesses em um inventário essencial: beleza cultivada, perfumes dispendiosos, sexo arriscado, quitutes refinados, tendências da moda, dietas efêmeras e pôsteres de si mesma, geralmente nua, ampliados nas paredes de seu espaçoso apartamento.

Aval do mel, amém do céu. Assim o que era doce apenas tem início. Onde se revela uma aventura mais do que corriqueira. Em que a recapitulação é amante do tempo, e o tempo é tal espuma e bola de sabão, flutua e passa. Mas por vezes o tempo é teatro para a encenação do esquecimento. Pelo menos tentamos. E a menina Capitu, querendo esquecer tantas coisas, logo surge alegrezinha. Esse fato se deu um pouco antes dela passar a morar sozinha na capital paulistana. Quando uma esfuziante Capitu chegou de Ponte Aérea. E estava agora correndo para pegar o metrô. Se ocultando numa charutaria para fugir de uma súbita chuva de verão.

- Ô moço, me dá um maço de Minister... Não tem?... Ah, Hollywood serve... Mas tem de ser com filtro...

Capitu fica fumando num recesso da praça, enquanto a chuva persiste em castigar a cidade. Depois, já que ela não tem outra saída, decide almoçar sanduíche de lingüiça calabresa com molho tártaro no Largo do Tesouro. Local histórico. Por onde andaram outros alegres jovens. Um reduto exclusivo da chamada cainçalha poética. Estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Idéias verdes que findaram. Chamas de deuses que se extinguiram. Muito embora, enquanto Capitu almoça seu sanduíche, ela finge que nem vê um rapaz moreno, com ares de poeta, usando fartos bigodes e sobrancelha cerrada, que não cessa de olhar para ela. Paquera é o que não falta para Capitu. E até. Devido a suas saídas constantes. Todos em casa se intrometem com ela, fatos de que, da tia à mãe, antes de angústias, e iriam dormir melhor se, aquelas reprimendas, em nada eram adiadas, mal e mal, descascassem-na. Inclusive Capitu pensou em fazer uma loucura, para que fosse, assim, eternamente lembrada, tal como uma verdadeira vagabunda. Ímpetos que teve. Agir, aprontar e fugir depois. Ou quis morrer de tédio ao fitar pela enésima vez o seu ator favorito, num pôster de cor sépia, onde o mancebo privilegiado aparenta dar um trato numa bela loira, a qual demonstra prazer incontido. Capitu perguntou, não cabendo em si mesma, sem o menor arranhão, se valia a pena sofrer desses martírios de pagar pelo pecado da humanidade, e até, algo, constatava-se amiúde, sem nunca mesmo haver experimentado da queimante fruta de sua inclinação boêmia. Ao estado de pecado, em verdade, ardentemente, de ser uma doidivana, isso jamais. Para isto, um adjetivo bastava, e diga-se “admirável”. Seus algozes, contudo, entalhavam trocados. Sem o pretexto. Ela não se rebaixaria à história miúda. Esse o propósito verdadeiro. De Capitu, sem cuidar, porém, com malícias. Foi quando, descendo de elevador, na Rua Vinte Quatro de Maio, ao vir do Conselho Fiscal, no qual ela é amiga de meia dúzia de advogados, ao menos três deles, em desculpas, firmemente, contava ela nos dedos, são amigos de verdade. Quando lá dentro do elevador. Sendo que lá fora. São Paulo, em prantos, garoava. Estando ela com um de seus primos, na verdade, mais que isto, um companheiro de infância, do tempo em que seu pai possuíra uma fazendola na Baixada Fluminense, um que estava agora distraído, encostado na parede de lambris escovado, do elevador que descia. Capitu lembra-se. Que o perdoou numa noite, em criança, quando o mesmo varão, em nobre e suspirado brinquedo, ou de ofício, mas que lhe deram algum sentido, a propósito do ato do amor, momentos fugazes, lesma de lentos, severos, com carnes entontecidas, com o total glabro, de afetos sussurrados. Tudo isto ao além, num beco, num quintal, sob um arvoredo, cabana de folhas e paus, nem tanto, sem mimos de lençóis. Nesta lembrança. Naquela ocasião, ela reviu todas suas notas de empenho. Não seria oportuno se ela cobrasse do primo uma reapresentação daquele romance esgarçado em brincadeiras inocentes? Quis Capitu e, suspendendo o vôo do elevador, rumo alterado, botão de emergência, sob seus dedos alinhados, brancas carnes, finalizando em unhas esmaltadas de vermelho vivo. “Você se lembra?”, Capitu perguntou ao primo. E ele. Lembrando sim. Mas, ágil e prestes a correr do tema: “não... Eu não lembro disto, não...”. A memória não é mesmo um arquivo de negros carbonos? E Capitu contava já seus trinta anos. Nisto, Capitu corou. Desistiu de oferecer-se ao primo. Liberou o elevador e quando saíram à rua ainda chovia. Nesta rua do centro de São Paulo. Eles passaram a andar rente às portas das lojas. Para evitar a de se encharcarem. Passo ante passo. Ainda não havia anoitecido. Sobre o assunto. Assentou o acaso. Um homem desconhecido esbarrou em Capitu, entre a calçada apinhada de pessoas e a vitrine da Casa José Silva. O homem lhe sorriu e ela sorriu também. Um pouco e por causa do primo. Com a corda da lei familiar a levá-los. A natureza, entretanto, pediu urgências para Capitu. Ela olhou para trás e aquele homem, sorrindo, a espreitava. Ainda, subitamente feliz, disse mentindo ao primo: “siga você sozinho... Eu reencontrei um amigo que há tempos não via”. E Capitu à cata de alguma gratificação desregrada ou de angústias, ou soluços regulares de sobra, ou perseguindo mesmo a tal felicidade, voltou para falar com aquele estranho. Tudo nos conformes. Fatal que fosse, pois o citado moço lhe lembrava, de longe, ora o senhorio que cobrava os aluguéis da casa onde, por essa época, morava com sua mãe e sua tia, ora lembrava um ex-amante, o finado Bentinho. “E quem é que se importa?”. Dizem que o acaso entra pela porta da frente enquanto a certeza foge pelos fundos. E tudo aconteceu por motivos da má lembrança do primo dentro do elevador. O rigor da fuga agora a perseguia. E os luminosos refletiam alegremente, milhares de cores, na garoa empoçada, no chão lavado de chuva, da cidade de São Paulo...


Beto Palaio

Nenhum comentário: