sábado, 17 de março de 2012



CAPITU EM DOIS CAPÍTULOS

II

Reveillon nas areias da praia de Copacabana. Fim de festa para uns e começo de rituais para outros. Flores rolando nas ondas. Tudo isto procura por Iemanjá, a rainha do mar. Ali os orixás incorporam nas filhas-de-santo e participam da festa a rodopiar ao som de atabaques. Em tudo o imprimir da energia juvenil. Anos 60. O bicho está solto. No calçadão e mesas de lata. Discute-se a morte da bezerra, lê-se o Pasquim e temem-se os militares sublevados. Um comboio histórico vai passando. Ouve-se um pouco como são as coisas. Bicho grilos em Búzios. Bacanal no apê do Valtinho ou da Soninha. Invasão geral de domicílio com Fatos & Fotos. Aldeia global. Carnaval o ano inteiro. E no mais: tudo igual. A estória da menina que disse “sozinha, eu?”, tende a se desenrolar sem pressa nenhuma. Evidentemente precedida de um “porém, enquanto isso.”...

- Sei que é da febre...

O carro e a poeira contracenam. Ambos vindos com as trevas da noite. Isto a bela Capitu vê da janela e tenta relembrar como é que um passo em falso gerou aquele triste desfecho. Entretanto, contra o céu estrelado, surge aquela outra visão que só a febre, os faróis, a memória dos beijos e da cópula em corpos ardentes reafirmam. Solidão e lembranças. Tudo isso junto com outros acenos de um outro céu, este tingido de anil, com Capitu afortunada entre as amigas. Suas férias pisando as quentes areias, as sorridentes praias do Rio de Janeiro. Agora. Elas, as amigas, longe. E para bem longe também já se foram todas as aves de arribação que chegavam até a fazenda, estas sonhadoras, repletas de rumos, cheias de trajetos vividos com pousos e vôos acertados. Em seu destino, Capitu tão somente, chegando ao fim da quantidade de tal amor, percebera que a paixão avassaladora consiste em um prenúncio de um outro aspecto. Dela, paixão, ser coerente. Mensageira. Criando a fuga da fuga. Ao sol. Em meio ao verde de folhagens esfuziantes. O telhado da Casa Grande treme ao calor. Porém, deitada na cama Capitu não se cansa de ficar de bruços. A lamentar. E nisto atiçando em perigosos ninhos de vespas de papo amarelo...

- Não. Oh, não. Assim eu não sinto nada!

Ela dizendo para Bentinho, seu amante. Ambos pelados. No segredo da cópula. Ambos tentando novas posições. Da mesma forma que um iceberg flutua num oceano salgado, o fóssil dessa lembrança está boiando no mar da sua consciência. Ela suspeita agora que não vai mais sair do quarto. E até odeia aquela terra ensolarada e o povinho alegre, os trabalhadores da fazenda. Estes cantando e sorrindo o tempo todo. E ela, enjoada, arredia, emburrada, agindo como se um mundo melhor ainda estivesse para ser descoberto. Algo que lhe aconteça. Se não hoje, que fosse lá longe num futuro não tão distante. Capitu resumiu-se a uma prisão onde só havia um degrau de saída. O passo certeiro para historiar sua própria biografia. A prisioneira dessa vida ranzinza. Incomodava-se com todo o resto. Por isso, apareceu timidamente numa das janelas do casarão para ver porque os galináceos gritavam tanto. “Que escândalo! Tudo por causa de um ovo idiota!”. Ela murmurou revoltada com a algazarra das galinhas. Depois voltou a pensar somente em si mesma, quando passou a definir a felicidade segundo suas teorias:

- Será que o amor é para sempre num minuto e depois nunca mais? Será que é só isto?

Ela tinha vontade de sumir, de morrer, de vomitar. E tudo por culpa do tal Bentinho, motorista particular de seu pai. Um espertinho de boa lábia. Que veio cercando-a com fleuma. Olhando-a com vontades. Agindo com paciência. Sim, com muita paciência. Enredando-a. Trazendo sempre a melhor palavra. Portando-se como um cavalheiro. Mas que acabou por possuí-la. Por penetrá-la. Por enchê-la de concupiscência. Deliciando-se. Por espalhar calores dentro dela.

- Esse homem maravilhoso ensinou-me tudo sobre o amor... Tudo mesmo... Às vezes eu vou até ele novamente, só em pensamento...

Entretanto, tempos atrás, ali mesmo na fazenda, houve para Capitu a primeira lição de sexo. Quando ela vê um garanhão a montar feérico numa égua fogosa, penetrando-a com estocadas certeiras de um instrumento descomunal. Com isto o sexo animal a martiriza com acenos. E tanto faz para ela se comparar aos animais, bom mesmo é observar atentamente e um dia repetir aquele ato idolatrado. Isto, anos depois, o motorista Bentinho ensinou para ela. Nobres lições em momentos abrasadores. E o ato seria apenas para a multiplicação das espécies? Claro que não! Ele lhe instruiu em tudo. E tudo veio em prolongadas preleções. Persistentes ensinamentos que lhe atiçavam até quase perder os sentidos. Para Capitu não há mais o paraíso da inocência, agora ela é o sol ardente dos pecados encobertos. Momentos em que ela arfa e geme sentindo frêmitos. Ela e seu macho buliçoso. Tudo agora sendo rememorado parceladamente. Entretanto Capitu, presentemente, está imersa em lembranças desconexas. Já vivendo o próprio colo que incha com um bebê a manifestar-se. Ela agora tenta organizar-se e prever como serão os fatos. Seu dilema é esse, ao mesmo tempo em que acalenta a gestação, ela também quer que eles voltem a fazer sexo impetuosamente...

- O que? Gozou outra vez? Como é que pode? Está ficando safadinha, heim?

Queria ouvir a voz dele, rouca, de novo em seus ouvidos, quando Bentinho, em chamas, beijava de ponta de língua o lóbulo de sua orelha. Queria ele de novo sim. Com roupas, sem roupas. Nus no mato. Ali estaria ela. Transando com seu macho. Nus até dentro do rio. Mas, o ódio a corrói. Como pode? Sendo que até o relâmpago possui branduras, sendo sempre original em cada tempestade... Tê-lo de volta? Ela sabe que nunca mais terá. Seu primeiro e seu último homem. Isto arde dentro dela como uma fisgada. Alta traição. Mesmo sendo como. Uma serpente saindo da pia batismal. Esta lhe propõe lascívias. E ela. Deitada sozinha. Quer calamidades. Do pó ao seu inteiro ser. O fácil. Ganha suas entranhas. Ela homenageando-lhe o sestro latejante. Lembrando dele e correndo os dedos em sua flor de carne cor-de-rosa, real em si, mulher que soube gozar com seu homem. E também consegue agora, sozinha. Ela vê tudo num sussurro. As visões do tempo congelado. O suor das linhas derretidas. Da nuca às ancas. Ou nas profundidades. Como fogo de álcool que mesmo sendo transparente queima de verdade e certas pétalas dos jardins sombrios e dos crimes do coito sem magia. Masturbando-se e querendo que fosse tudo real. Na inteireza dele. Só dele.

- Bandido! Mil vezes bandido!

Ela quer sair. Amarra os cabelos, coloca uma calça jeans surrada, uma camisa branca com florzinhas bordadas, uma sandália da moda e vai pegar também uma espingarda... Então vai longe, pelos mesmos recantos onde ela e Bentinho andaram juntos. Com pensamentos ora alegres lhe acarinhando e ora terríveis lhe dilacerando. Ela sabe que seu macho nunca mais vai voltar para ela. E que seu pai vingou-se dele da pior maneira possível. Pensando naquele crime cometido pelos capangas de seu pai, Capitu vai andando pela margem onde segue o contrário da correnteza, e vai por ali, aflita, tropeçando em troncos e plantas.

- O meu amor se foi para sempre, e eu também vou... Logo, logo!

Decidida ela senta-se numa pedra que a água do rio cerca. Ali a ruína emprestou suas cores para o cataclismo. Ela pega a espingarda e faz como leu num romance qualquer: encosta o cano no céu da boca e vai procurando o gatilho com o dedão do pé... Procurando... Procurando lentamente até encontrá-lo. Encosta o dedão bem no encaixe do gatilho. E então... Então desistiu daquilo. Apanhou a espingarda e, num giro, jogou-a para dentro do rio. Depois veio lentamente fazendo o caminho de volta... E vindo apalpava seu ventre que já denunciava a existência de uma nova vida dentro dela...

- Um filho dele! Sim, eu vou ter esse filho dele!

O tempo é um passageiro que se oculta no trem da fatalidade. Tudo o que surge do amor é água de fervura, ungido no óleo do querer. E Capitu agora é uma devotada mulher, longe da loucura e do arrependimento, sentindo seu ventre que se agita como um intenso pulsar cósmico. Embora lentamente. Formando algo que será a sua riqueza. A felicidade promete que sua vida não será vazia para sempre. Apalpando seu tesouro ela perdeu a pressa. E fica procurando na correnteza do rio, por algo distante e invisível... Sentindo-se segura por estar neste jogo das águas que vêm e depois vão embora. Pois o passado sempre se entrega para o futuro... Sempre ao futuro... Sempre, sempre...



Beto Palaio

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