quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013



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VEM BELEZA EM MIM, FUSTIGAR O QUE É FEIO.

Balões vermelhos, azuis e cor-de-rosa ainda voejavam pelo jardim. A festa da noite anterior estava ali representada de forma alegre e colorida. O vento faz com que alguns balões fiquem enroscados ao alto dos galhos de uma árvore à muito ressequida. Dali eles não sairiam tão facilmente, pois o momento agora era de calmaria e não havia mais vento de espécie alguma. No muro lateral um desfile de cacos de garrafas multicoloridas cimentados no topo para evitar a entrada de ladrões e a bisbilhotice de algum vizinho incauto. No jardinzinho do fundo havia um pardal morto entre folhas secas acumuladas pelo outono propagador do frio que se avizinha. O pardal se mexia, isto era algo impossível de se acreditar, já que estava morto, mas observando bem, o que se movia era a quantidade de vermes que estava corroendo o pássaro por dentro. Aquilo era asqueroso de se ver, mas a aparente mobilidade de algo morto é sempre um atrativo de inevitável apreciação. O branco da cal aparecendo num item da paisagem além-túmulo. O tecelão chamado Tempo se detém diante de uma janela aberta com vista para o aqueduto da Lapa. Dispensadas as formalidades. É dia e é noite. A manhã nos revela um bordado de luxo: como no salão de baile da mais fina gala, a noite estrelada, ciprestes acolá e, além da colina, a vila ainda adormecida. Adalgisa era discreta em sua vontade de conquistar o mundo. Nascera pobre, entretanto. Um homem a descobriu numa seção de cinema em Botafogo. Esse homem a acompanhou discretamente até o apartamento que Adalgisa dividia com uma amiga no Centro, perto da Confeitaria Colombo. Um sebo. Lugar promíscuo que Adalgisa dividia com uma aspirante a vedete do teatro do rebolado na Urca. O homem que sorrateiramente a seguiu ficou na calçada e esperou até que Adalgiza subisse o elevador, entrasse em casa e acendesse a luz. Depois ele, ali da calçada, calculou o andar e a posição do apartamento e subiu até lá, pelas escadas, já que o elevador lhe seria moroso e, evidentemente, desnecessário. Esse homem deveras misterioso bateu então na porta de Adalgisa. “Mas quem será à estas horas?”, ela fica surpresa e assustada que alguém bata à porta do apartamento. Pensou em não abrir. Mas viu pelo olho mágico da porta de entrada que lá fora estava um moço bonito. Curiosa, Adalgisa abriu a porta. Como no cinema onde se contam estórias curtas, porém suficientemente alongadas para o efeito da arte em si. Já haviam passado três meses desde que Adalgisa conhecera Marlúcio de Andrade. Agora ele aprendeu o caminho daquele apartamento. Marlúcio aparece de vez em quando. Traz rosas sempre que pode. Ela escrevera uma de suas visitas em um diário que mantinha na gaveta de seu criado-mudo: “hoje ele me olhou com carinho e apenas suspirou. Depois transferiu seu olhar de minhas mãos diretamente para meus olhos. Abraçou-me como alguém que se despede. Seu perfume de homem adentrou minhas narinas. Ah, como ele já me conhece tão bem! Marlúcio me puxou com carinho. Abraçou delicadamente o meu vestido e o levantou até meus quadris”. Aquele seria, no entanto, o último dia em que se veriam. Acontece que Marlúcio era noivo de uma moça que morava em Copacabana. Adalgisa quis morrer de ciúme. Não era mais a mesma pessoa. Deu de fumar e beber além da conta. Envelheceu com isto. Um ano se passou e ela totalmente imersa em sua paixão por Marlúcio. Então ela comprou uma adaga de corte. Um punhal de fina estampa. Com cabo de madrepérola e corpo do aço mais luzidio. Fez porque fez. Descobriu Marianita, a noiva de Marlúcio, através de uma amiga que morava no Posto Quatro, em Copacabana. Adalgisa largou tudo para ficar de plantão em frente ao apartamento de Marianita. Num dia de vento na praia. Um dia especialmente hábil para encurtar uma estória. Dizem as lendas urbanas. Dessas que se contam entre uma baforada de cigarro e outra. Reporta-se, inclusive, a um vendedor de sorvetes que assistiu tudo. Outros, porém, aumentaram a estória do encontro entre Adalgisa e Marianita. Disseram, porém, sobre quem seria aquela moça. Uma que passa em meio aos carros em movimento. Uma que sobe e desce escadas. A carregar seu punhal de corte. Assim tão descuidada. Em treinamento constante. Como quem ceifasse rosas de um ramo primaveril. Aparentemente. Deixando, entretanto, cair as rosas ao chão, sem se importar com carinhosas colheitas. Numa manhã de Outono. Folhas que se espalham ao vento. Formando um imenso tapete. Num farfalhar de pés apressados. A caça. Ou o que passeia entre dois seres avulsos. Por pouco nem chegou. As estórias da praia de Copacabana se alongam em detalhes. Correram descrições mistas. Uma versão diz que Marianita trazia um revólver ao alcance da mão. E disseram que ela foi mais ligeira que Adalgisa. Umas pessoas diziam que sim. Outras diziam que não. Houve inclusive um casal de namorados. Os dois pombinhos estavam sentados num banco perto do coqueiro verde do Posto Um. Eles se beijavam quando ouviram um tiro. Logo se espantaram ao testemunharem dois corpos caírem juntos na areia. Aquilo constrangia aos passantes. Duas mulheres estavam em agonia. Entretanto. Um tanto abraçadas, como em amor ternamente compartilhado. Uma com um punhal enterrado no peito, a outra com um tiro que lhe atravessou a têmpora. Como entender uma loucura dessas? Ao lado de quem foi à seção de cinema naquele Domingo à tarde. Um senhor de cavanhaque comia pipocas junto com uma moça linda e também barulhenta ao se servir de pipocas. O filme nem tinha graça. O casal que se servia de pipocas nem entendeu. Se naquele filme, a moça que atirou era a vilã, ou se a moça do punhal era a bandida. Pois ambas apareceram muito rápido. E logo saíram da trama da fita.


Beto Palaio

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