terça-feira, 5 de fevereiro de 2013




BANGU CONEXÃO ACAPULCO

Lábios que beijei. Mãos que afaguei. Numa noite de luar assim. Onde parecia tocar uma flauta indizível, marcando os passos daquela alma traída. O mar era de ressaca. Os vagalhões gostariam mesmo é de arrancar a amurada ao longo da praia. Os sentimentos de Vargas eram os mesmos. Pudesse se quisesse, quisesse se pudesse. Ele se jogaria ao meio daquele inferno aquático. “Morro por meu amor”, pensou ele se postando bem perto do arremesso último da arrebentação. Os respingos de água salgada agora lhe brindavam a roupa ensopada. O mar lambia já o calçadão sob seus pés. Para o horror geral da cidade. Porém, Vargas nem se importou quando a primeira onda avançou sobre a Avenida Atlântica. Tenteando. Ele desequilibrou-se e caiu. Em seguida o mar o puxou para si. O ruído dos estrondos era infernal. O certo é que Vargas se afogaria em meio à impossibilidade de sair, por si só, daquela sopa oceânica. Socorro para ele não haveria. Sua mulher deixara um bilhete colado com durex no espelho da penteadeira e um beijo de batom ao lado do bilhete. Ela estava indo embora para morar com outro homem. O bilhete era sucinto. Vargas não tinha mais o que fazer para salvar seu casamento. No meio-fio do calçadão juntou gente para ver o afogamento de Vargas em sua luta de morte contra as temíveis ondas. Ninguém esperava que Vargas sobrevivesse em meio a milhares de baixas que se tem notícia em situações semelhantes. Vargas, no entanto, milagrosamente, fora resgatado. Apenas 48 horas depois de dar entrada no hospital de base do exército—pois Vargas era tenente de comando no Rio de Janeiro—uma equipe cirúrgica de emergência ainda estava velando por ele ao lado da mesa de operação. Ocorre que, por ser Carnaval, o quadro médico oficial estava de licença e Vargas fora atendido por longínquos aspirantes ao cargo: soldados rasos que se desdobravam por ali como aplicados enfermeiros, mas que possuíam larga experiência em acompanhar o capitão-médico, ausente do plantão naquele momento. O pessoal da equipe de emergência usava roupas especiais e portavam máscaras cirúrgicas. A sala de cirurgia era básica, mas contava com um bom equipamento e boa iluminação. Contudo a esterilização não era perfeita, e o anestesista tinha menos experiência do que a exigida nos casos em que Vargas se encontrava. Eis que, novamente, Vargas enfrentava a morte, desta vez sendo assistido por enfermeiros capazes, mas que não tinham em conta o adverso de situações como aquela. Crê-se desde Diderot que a história da raça humana é uma história de erros. Alguns estudiosos acreditam que o fato de cometermos erros é o que decididamente nos torna humanos. Os erros já tiveram seu momento dúbio na sociedade, quando antigos filósofos os tinham como testemunho de imperfeições na alma humana. No entanto, para Vargas, um simples erro bastaria para que ele perdesse sua vida. Eis que Vargas acorda depois de uma semana e tem ao seu lado uma mulher lindíssima que aos poucos, na medida em que acordava, Vargas notou ser a sua própria mulher. Houve um tempo na vida do casal em que Vargas considerava a mulher, no geral, como sendo um ser inferior. Ele fora criado em Bangu por uma tia preconceituosa que vira seu namoro com Violante como algo inadmissível: “como é que um imbecil como você não consegue namorar uma moça de respeito... Uma moça de família?”. Violante de Sá, no entanto, apesar de seu passado nebuloso, jamais vira a companhia de homens libertinos como algo pecaminoso, e era bastante sonhadora e imaginativa ao preterir seu possível casamento com Vargas como uma forma de se estabelecer na sociedade carioca, onde passariam a morar, inclusive, no bairro nobre da Tijuca. Para sermos precisos a situação social de Violante de Sá não tinha precedentes seguros nem na Bíblia onde se afirma que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e nele moldou seu espírito, enquanto a mulher não receberia alma por ter sido apenas concebida de uma das costelas de Adão, portanto sendo-lhe submissa hierarquicamente. No entanto foi de forma submissa que Vargas acordou de seu estado crítico de saúde pós-operatório. “Se sair dessa, Violante, te levo para passear no México... Levo-te para a terra do bolero e do maxixe”. Violante sorria enquanto fumava um cigarro, apesar da proibição de se fumar dentro daquele quarto hospitalar. Ocorre que Vargas nem ligou para a fumaça de cigarro ser jogada por ela, de propósito, no seu rosto de convalescente: “ah... Que saudade do cheiro de seu cigarro!”. Violante não perdeu as medidas: “só do cheiro do cigarro?... Aposto que você tem saudade de outras coisas também!”. Claro que Vargas tinha a sua mulher em alta conta. Inclusive, como um derradeiro suicida, ele sentira falta dela. Agora, para retornar à paz do seu casamento, ele enfrentaria tudo para sua efetiva recuperação pós-operatória: “Violante, meu bem, se você voltar tudo vai ser diferente”. Claro que Violante voltou para Vargas, nem tanto pelo motivo de que o homem que escolhera para fugir daquele casamento era apenas um doidivanas que cheirava cocaína e lhe dava uma surra toda vez que faziam sexo. Nem tanto por isso. Acontece que Violante de Sá voltou para Vargas apenas para provar a si própria que era uma mulher de fibra e de valor: “vamos sim, para o México... Estou doida para tomar tequila diretamente da garrafa... Vi um filme com o Márlon Brando, em Acapulco, tomando tequila diretamente da garrafa... Nós vamos para Acapulco, não é meu amorzinho?”...


Beto Palaio

Nenhum comentário: