BANGU
CONEXÃO ACAPULCO
Lábios que beijei. Mãos que
afaguei. Numa noite de luar assim. Onde parecia tocar uma flauta indizível,
marcando os passos daquela alma traída. O mar era de ressaca. Os vagalhões
gostariam mesmo é de arrancar a amurada ao longo da praia. Os sentimentos de
Vargas eram os mesmos. Pudesse se quisesse, quisesse se pudesse. Ele se jogaria
ao meio daquele inferno aquático. “Morro por meu amor”, pensou ele se postando
bem perto do arremesso último da arrebentação. Os respingos de água salgada
agora lhe brindavam a roupa ensopada. O mar lambia já o calçadão sob seus pés.
Para o horror geral da cidade. Porém, Vargas nem se importou quando a primeira
onda avançou sobre a Avenida Atlântica. Tenteando. Ele desequilibrou-se e caiu.
Em seguida o mar o puxou para si. O ruído dos estrondos era infernal. O certo é
que Vargas se afogaria em meio à impossibilidade de sair, por si só, daquela
sopa oceânica. Socorro para ele não haveria. Sua mulher deixara um bilhete
colado com durex no espelho da penteadeira e um beijo de batom ao lado do
bilhete. Ela estava indo embora para morar com outro homem. O bilhete era
sucinto. Vargas não tinha mais o que fazer para salvar seu casamento. No meio-fio do calçadão juntou gente para ver o
afogamento de Vargas em sua luta de morte contra as
temíveis ondas. Ninguém esperava que Vargas sobrevivesse em meio a milhares de baixas que se tem
notícia em situações semelhantes. Vargas, no entanto, milagrosamente, fora resgatado. Apenas 48
horas depois de dar entrada no hospital de base do exército—pois Vargas era tenente de comando no Rio de Janeiro—uma equipe
cirúrgica de emergência ainda estava velando por ele ao lado da mesa de operação.
Ocorre que, por ser Carnaval, o quadro médico oficial estava de licença e Vargas fora atendido por longínquos aspirantes ao cargo:
soldados rasos que se desdobravam por ali como aplicados enfermeiros, mas que
possuíam larga experiência em acompanhar o capitão-médico, ausente do plantão
naquele momento. O pessoal da equipe de emergência usava roupas especiais e
portavam máscaras cirúrgicas. A sala de cirurgia era básica, mas contava com um
bom equipamento e boa iluminação. Contudo a esterilização não era perfeita, e o
anestesista tinha menos experiência do que a exigida nos casos em que Vargas se encontrava. Eis que, novamente, Vargas enfrentava a morte, desta vez sendo assistido por
enfermeiros capazes, mas que não tinham em conta o adverso de situações como
aquela. Crê-se desde Diderot que a história da raça humana é uma história de
erros. Alguns estudiosos acreditam que o fato de cometermos erros é o que
decididamente nos torna humanos. Os erros já tiveram seu momento dúbio na
sociedade, quando antigos filósofos os tinham como testemunho de imperfeições
na alma humana. No entanto, para Vargas, um simples erro bastaria para que ele perdesse sua
vida. Eis que Vargas acorda depois de uma semana e tem
ao seu lado uma mulher lindíssima que aos poucos, na medida em que acordava, Vargas notou ser a sua própria mulher. Houve um tempo na vida
do casal em que Vargas considerava a mulher, no geral,
como sendo um ser inferior. Ele fora criado em Bangu por uma tia preconceituosa
que vira seu namoro com Violante como algo inadmissível: “como é que um imbecil
como você não consegue namorar uma moça de respeito... Uma moça de família?”.
Violante de Sá, no entanto, apesar de seu passado nebuloso, jamais vira a
companhia de homens libertinos como algo pecaminoso, e era bastante sonhadora e
imaginativa ao preterir seu possível casamento com Vargas como uma forma de se estabelecer na sociedade carioca,
onde passariam a morar, inclusive, no bairro nobre da Tijuca. Para sermos
precisos a situação social de Violante de Sá não tinha precedentes seguros nem
na Bíblia onde se afirma que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e
nele moldou seu espírito, enquanto a mulher não receberia alma por ter sido
apenas concebida de uma das costelas de Adão, portanto sendo-lhe submissa hierarquicamente.
No entanto foi de forma submissa que Vargas acordou de seu estado crítico de saúde pós-operatório.
“Se sair dessa, Violante, te levo para passear no México... Levo-te para a
terra do bolero e do maxixe”. Violante sorria enquanto fumava um cigarro,
apesar da proibição de se fumar dentro daquele quarto hospitalar. Ocorre que Vargas nem ligou para a fumaça de cigarro ser jogada por ela,
de propósito, no seu rosto de convalescente: “ah... Que saudade do cheiro de
seu cigarro!”. Violante não perdeu as medidas: “só do cheiro do cigarro?...
Aposto que você tem saudade de outras coisas também!”. Claro que Vargas tinha a sua mulher em alta conta. Inclusive, como um
derradeiro suicida, ele sentira falta dela. Agora, para retornar à paz do seu
casamento, ele enfrentaria tudo para sua efetiva recuperação pós-operatória:
“Violante, meu bem, se você voltar tudo vai ser diferente”. Claro que Violante
voltou para Vargas, nem tanto pelo motivo de que o
homem que escolhera para fugir daquele casamento era apenas um doidivanas que
cheirava cocaína e lhe dava uma surra toda vez que faziam sexo. Nem tanto por
isso. Acontece que Violante de Sá voltou para Vargas apenas para provar a si própria que era uma mulher de
fibra e de valor: “vamos sim, para o México... Estou doida para tomar tequila
diretamente da garrafa... Vi um filme com o Márlon Brando, em Acapulco, tomando
tequila diretamente da garrafa... Nós vamos para Acapulco, não é meu
amorzinho?”...
Beto Palaio
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