ELDIKA DECIDE VIVER.
“sei lá se fornicação é pecado”, isto
disse Eldika, uma mão no volante de seu Fiat Premium e outra no câmbio,
justamente passando da quarta para a quinta marcha. “há tantas regras para tão
pouca alegria”, ela está neste jogo desde que saiu de casa: colocava as
questões que respondia para si mesma. Eldika concordou em ir até a casa de seu
ex-marido naquele dia. apesar da separação eles continuaram amigos, inclusive é
para ela que Elluardo pede ajuda no caso de uma emergência qualquer. “ele
continua morando sozinho, mas é o rei da masturbação”, Eldika fala isso sarcasticamente,
sorrindo, imaginando Elluardo tendo de fechar os olhos e pensar nela enquanto
se entretém no velho jogo do auto-entretenimento, “bem feito, quem deu motivos
para ficar só foi ele mesmo... esse cabeça dura!”, Eldika também se culpa um
pouquinho pela separação. ela agora tem pressa. e se arrepende de ter saído tão
cedo para pegar esta estrada na montanha. onde. ela sente uma pontada de
náuseas, ao meio das muitas curvas, ali tudo lhe parece tão igual. “uma fábrica
de nuvens”, isto Eldika pensava que eram as montanhas e as serras distantes de
sua infância. em meio à neblina ela dirige com pressa. pisando fundo no
acelerador. tudo para chegar mais rápido. Elluardo não era seu inimigo, muito
pelo contrário. ele era mais amigo dela do que qualquer outra pessoa. mas quem
era ele? moravam na mesma cidade. ele era o filho do alfaiate mais famoso da
região. Eldika se lembra dele também jovem, quando ainda nem eram namorados nem
nada. Elluardo era magro e desengonçado. “um cara até, eu acho, um tanto feio”,
ela sempre achou que Elluardo fosse uma pessoa com algo de desabitado dentro
dele: “ele conversa tão pouco”. mas era um filho sensível. tanto que. quando
seu pai morreu. Elluardo fez questão de colocar um poema na vitrine da
alfaiataria: “quem era este ser? a quem todos os dias eu mantinha. um secreto
ódio, uma mal-nutrida porfia?”. sob este poema Elluardo fez questão de enlaçar
umas rosas muito negras, no entanto luzidias, as quais ficaram lá até secarem e
desmancharem aos poucos. Eldika lhe falou à poucas horas. que sentia sua voz
muito rouca e distante. “precisa de alguma ajuda, Elluardo?”, ele não respondeu
à sua oferta. o fone ficou intermitentemente mudo. Eldika retirou seu carro da
garagem e resoluta tomou a estrada. agora tudo ao redor da rodovia estava estranhamente
azul. dava medo. mas era de um azul tão lindo. tudo se passava como se ela
estivesse no fundo de um lago. onde a paisagem inteira se afogasse.
impressionada Eldika força o acelerador ao máximo. por certo a estrada fica do
lado de fora desta lagoa azul. tudo indica que sim. há um traçado que se
apresenta de soslaio. além da mata fechada. galhos intrincados unidos. grudados
em tom sobre tom de cinzas esmaecidos. imagens que correm sem parar. em ambos
os lados para onde quer que Eldika dirija o seu carro. no meio de sua jornada,
assim sem mais nem menos, Eldika passa a conhecer outras pessoas. são pessoas
cujos nomes lhe eram bastante conhecidos. naqueles labirínticos corredores
adornados por tapetes vermelhos, bastava ela bater de leve, numa porta qualquer,
e um artista famoso vinha rapidamente abrir. personalidades que ela conhecia
desde criança, um palhaço televisivo que ela julgava morto há mais de vinte
anos, um poeta que lhe sorria, uma artista de cinema que lhe oferecia o chá da
tarde. tudo isto no pano de fundo das mil e uma noites. como num passe de
mágica. as pessoas notáveis se apresentavam à cada porta que se abria naquele inverossímil
hotel. lá fora. entretanto. a paisagem tinha uma cor azulada muito estranha e,
com todos os seres fantasmagóricos agora agrupados ao longo da rodovia, Eldika pisou
no freio violentamente. para perder o controle. onde ruído de ferros retorcidos
guinchavam terrivelmente. depois silêncio. um feixe estranho de luz, um miasma
medonho, era para ela de nenhuma utilidade, apenas uma tonalidade estranha. ela
tinha visto essa tonalidade antes, e tinha medo só de pensar o que poderia
significar. momentos antes. Eldika havia visto seu próprio glóbulo ocular. uma
visão surgida no espelho do carro, tudo era desagradável e frágil, mas uma
dúzia de verões atrás ela foi feliz, tinha sido amada por Elluardo sobre o
gramado do parque, conhecera o louco do seu marido na primavera, e mantinha o
pensamento grácil sobre isto, ela tinha visto isso por um instante apenas,
antes que o carro rodopiasse na estrada escorregadia, lembrou-se de sua avó,
sua imagem quase esvaecida, como uma feiticeira vestindo negro, quando muitas
manhãs lhe eram grátis, Eldika olhando para fora, o pequeno jardim, a correição
da manhã contra a pequena janela gradeada daquele porão terrível, onde coisas
sem nome, as que tinha acontecido para sua avó, ficavam estocadas. Eldika tinha
na mão um crucifixo, detestava pensar que iria rezar, aquilo brilhou por um
segundo, uma corrente úmida finalizada por uma imagem de marfim. ela gritou. ao
redor do carro acidentado, a luz de vapor de sódio da rodovia, neblinas, passou
por ela, como um arroto de cor que desmaia, um pálido raio incidia, certamente
era a imaginação de Eldika que agia sem controle. uma fantasia mórbida e nada
mais. quando o crepúsculo chegou ela vagamente desejou que algumas nuvens
saíssem da frente do sol. tudo estava tão frio. Eldika tinha se arrastado para
tentar voltar para a estrada. nada lhe obedecia. nem os passos que ouviu
seguiam em sua direção. naquela paisagem gelada. tudo conspirava contra ela. no
entanto. Eldika decidiu viver. ela viveria sim. e está decidido, e pronto! o
fato é que. Eldika voltou. apenas por este motivo. será que a vimos de fato? no
pórtico, ontem à noite, fugazmente? há algo irrecuperável, sobretudo. nas
tintas novas. nem a velha casa é mais a mesma. mas a quem ela deveria procurar?
Eldika decide viver. apenas por esse motivo. ela voltou.
Beto Palaio
Foto: MY Immortal
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