quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013




DARUNE E O CADASTRO DE ENDEREÇAMENTO POÉTICO.

I. Além disto. É um livro sobre poesia brasileira editado vinte anos antes. Além disto. Apresentava lanhos e marcas e incisões de procedências incertas. Além disto. Com laterais repletas de rasuras e cortes, acrescidas de algumas páginas amarelecidas pelo tempo. Além disto. Uma mancha horrorosa, algo escuro e informe, feita de café ou sangue ou urina, adornava assustadoramente o corpo do livro. II. Darune era o dono do livro. Por mais que se esforce, ele não lembra de ter deixado café ou sangue ou urina manchar assim, de forma alcantilada, aquele estimado livro. “Acredito que um poema deva agir como uma mancha num brim especialmente encomendado para uma festa de noivado, mas essa mancha num livro da própria poesia é contundente demais”, Darune filosofa sobre algo deveras inverossímil, à imaginar algum incauto que lhe pedisse emprestado aquele livro unicamente para manchá-lo de café ou sangue ou urina. III. Darune se digladiava, eventualmente, réu confesso, contra o fosso da ausência de poesia em seus escritos recentes. Sabedor de que um copo vazio está cheio de ar, ele se comportava, no entanto, como um otimista. Acreditava na poesia vinda das ruas—bocas de lobas gritando através de bocas de lobos—assim como era crédulo de que a novíssima poesia brasileira nasceria a partir do fervilhante bairro da Lapa. Lá, no vis-à-vis, Darune vistoriava pessoalmente o acervo lapiano que despejava epopéias no cotidiano carioca: as escadarias ladrilhadas, o esparramado aqueduto, as estreitas ruas, os grafites, o casario centenário, o ar soteropolitano da Lapa. IV. Na verdade Darune ia mais longe: imaginava a Lapa como célula máter e, no entorno, um absoluto porvir da cidade do Rio de Janeiro se transformar no centro mundial da poesia. Eis que, para ele, a Lapa era uma rainha entronada no solo palaciano do Rio, pátria das letras, centro mundial da rima, ventura de almas plácidas, palco de figuras mofinas, meladas, burguesas, comportadas, saradas, arteiras e, até, as eventualmente degradadas, fudidas, degringoladas, infames e bêbadas. V. Eis o adocicado e rude porvir da poesia imberbe, a surgir, quem sabe, das notações avulsas de um mendigo qualquer, anfitrião que fosse, meirinho do alegre juízo, na bendita Lapa. “Um novo Rimbaud pode estar, neste exato momento, ali na esquina catando latas”, isso disse Darune para um moreno sorridente que tinha por profissão ser fiscal da Prefeitura, e que aportou num dos diversos bares da Lapa para poder se espraiar no absinto da cerveja e no borogodó do samba. “É bom falar com alguém da Prefeitura”, disse o Darune para Dirceuzinho da Marília, o nome do moreno que é um fiscal da municipalidade, portador de ofício e carteirinha. “É bom falar contigo, pois eu tenho um projeto poético e porreta para esta nossa cidade”, continuou Darune, “veja bem, a intenção é a de revolucionar essa pasmaceira, ao injetar a febril poesia no cotidiano de uma cidade inteira”. VI. Eis que ele descrevia sua aspiração sem quase dar espaço para controvérsias. É um Darune determinado e contundente que continua a expor seus planos para Dirceuzinho da Marília: “com essa iniciativa pioneira, todas as ruas do Rio de Janeiro serão rebatizadas”, isto Darune concluiu, no arremate do “senão vejamos”, já dando exemplos versáteis, para o troca-troca, com pretensos e poetizados nomes: Rua da Pedra no Meio do Caminho, Rua do Sol na Banca de Revista, Praça do Losango Cáqui, Rua do Cão sem Plumas, Rua do Porquinho da Índia, Praça do Toque de Cetim, Rua do Afogado da Lagoa Rodrigo de Freitas, Avenida dos Pés Descalços, Praça dos Meninos Carvoeiros, Rua dos Degolados da Nuca Nua, Praça do Cancioneiro Martelado, Rua Nossa Senhora da Ternura, Travessa do Impossível Carinho, Avenida da Lua de Março, Rua das Lágrimas de Colombina, Travessa Silêncio do Amante, Rua do Xixi Angelical, Praça da Única Rosa...”, e assim Darune desfolhou uma quantidade enorme de nomes fantasiosos os quais sugeria serem trocados pelos atuais nomes impessoais, em gênero e grau, que povoam as placas de logradouros públicos no Rio de Janeiro. VII. Logo após, ainda atônito, mas com o fôlego do falar retomado, Dirceuzinho da Marília sugere que o projeto de Darune seja apresentado por escrito: “o Prefeito detesta projetos que não estejam grafados em papel vegetal e resguardados em envelope de fina lavratura”. Darune promete concluir e entregar o projeto. Em seguida ele propõe uma confraternização, com direito ao birinaite da saideira, ao Dirceuzinho da Marília. VIII. Na claquete do festejo, eis o marcante brinde, estilo osquindô-lê-lê, acompanhado com a abertura da “penúltima” garrafa de cerveja: “pela Lapa da poesia!”, comemorou Darune, “pela poesia da Lapa!”, festejou Dirceuzinho da Marília.

Beto Palaio

Um comentário:

Ianê Mello disse...

A Lapa como centro poético é uma boa idéia presente em seu conto. A Lapa dos contrastes, da diversidade,da pluralidade, num harmônico e pacífico convívio é um bom lugar para aportar a poesia. Adorei seu conto, mô!!! Bjs.