quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013



ADELÍCIA E O BEZERRO DE DUAS CABEÇAS


Adelícia. Uma das oito meninas. Ela teve uma vertigem. Segurou forte na mão de Linderléia. Em direção ao que surge. Uma conta de sinas ajuntadas. Fortunas catarinas, joaninas, luzianinas, dinheiro miúdo no pote, ou o pote vazio, ou pote nenhum. De barro. Quando se está descendo à cova. Um espaço por demais conhecido. Morta. Na idéia que tinha do pátio. Adelícia não faltava em nenhuma aula. Ia à pé. Naquele dia. Depois se detém. Diante da filmagem de um sol causticante. Queimando o filme da terra árida. Nenhuma cerca. Nenhuma jaula. Nenhuma porteira. Desde a estação do trem na cidadezinha, até a casa da avó Cândida. Essa sua avó que ficara doente. Coisa grave, claro. Por isto Adelícia deu-se ao trabalho. De tomar um lugar no trem que vinha para o sertão. Nem tanto como esposa. Mãe de filhos. Mas vindo como neta de Dona Cândida. Foi naquele lugar pobre. Numa nona sinfonia improvável. Som nenhum. Desafio para um músico surdo. A natureza silente do lugar. Só os grilos. Mas estes tinham um canto certo. O cricrilar monótono das noites quentes. Nesta visita Adelícia veio para velar por sua avó doente. Quando aproveitou para rever sua irmã Linderléia. Ela, Adelícia, já com quarenta e três anos de idade. Nunca mais as vira. Fazia já trinta anos que Adelícia havia ido embora. Agora como os pés se afundando na areia avermelhada. Chegando à velha casa de fazenda. Onde tudo retorna à infância. Aquele lugar. Enquanto isto. Ouvira vozes. Papagaios a matraquear, é o que parecia. A fala de quatro velhos sem pressa. Vinham pelo caminho do sítio. Cada um montado em sua própria bicicleta. Embora pedalassem sem ânimo. Portanto. Ao vê-la. Disseram quase ao mesmo tempo de onde vinham. E também para onde iam. Falaram que Dona Cândida pedira para eles cuidarem da papelada do enterro lá dela mesma. Por isso iam. Em direção ao tabelião que cuida do cemitério da comunidade. E o sol da manhã já ia alto. E disseram outros roteiros, determinados. Principalmente disseram à Adelícia que estiveram falando em separado, cada um dos velhos, com a avó Dona Cândida. “Ela é muito esperta. Passou o mesmo recado para cada um de nós. Assim não tem chance de haver erro na tarefa”. Eles pararam quando viram Adelícia vindo à pé. Sorriram para ela. Ponderaram sobre o estado de saúde de Dona Cândida. Mas não disseram mais nada sobre a tarefa de que estavam incumbidos. No entanto davam vaza a outras prosas. “Vossa avó vai escapar dessa. Está para nascer a doença que vai matar Dona Cândida”, isto disse um dos velhos, com um toco de cigarro nos lábios, quase em risco de se queimar. Adelícia ouve esta última frase e quer correr mais rápido ainda para ver a avó. Ela tem receio de que os homens lhe escondam algo. Reflete que o caso de saúde de sua avó Cândida talvez não seja algo passageiro. As muitas cartas que trocara com ela e com sua irmã Linderléia. Todos os roteiros do sítio eram repassados em letras guardadas. Mais de uma centena de cartas que ela guardava. Nessas letras escritas à caneta Bic. São madrugadas dentro dessa outra menina que morava dentro dela. O fruto que nunca amadurece é isto que se guarda para sempre com o gosto do sumo de cantos de galos, perfume da mata, cheiro de terra revolvida, murmurar de riachos, capins repletos de orvalho, abraço de tias cheirando sabonetes, presença de homens suados no alpendre, tudo ela lembra, entre tantos, a partir disto, em fim, esses e tantos outros cheiros identificáveis. Foi sua história pregressa, antes de ir para a cidade. Detalhes em desfile. A velha moringa de barro ao lado da imagem de São Francisco de Assis. O café de coador. Foi-se o tempo de guardar saudades. Agora Adelícia iria rever seu pedacinho de terra. Quando muito longe. Ainda morando no Rio de Janeiro. Seus próprios dois filhos na escola. O marido funcionário da Light. Sentada em seu quarto em Botafogo. Lembrava ali da cartomante que visitara uma semana antes. Quando aquela mulher recolhera os búzios que foram espalhados sobre um veludo surrado. “Qual saber! Tive muita cautela”. A mulher falando coisas pequenas. Injúrias, invejas, maledicências, motes, fingimentos e traições. Disse que seu marido cumpria a cama do bem bom com outra. Disse que seu futuro estaria perto. Disse que ela se tornaria uma ave de arribação. Disse que ela iria embora de vez. Disse que um dia ela teria duas cabeças. Mas qual o que? Como acreditar em disparates assim? Ela tão certinha em seu rondó. Tão mãe de família. Nem que acreditasse naquelas cascas de caramujo sendo traduzidas num propósito tão avassalador. Adelícia estava olhando fixamente a toalha de mesa xadrez. Não podia confiar que seu marido a traísse. Ele era tão bobão. Ela duvidava disto. Mas da viagem ela tinha certeza. Isto aconteceu para firmar compromisso. Pois duas semanas se passaram e chegou até ela uma carta suja de terra. Isto a trouxe para o sertão de Dona Cândida. Que agora a mirava por trás de uns óculos de miopia avançada. Sua avó tomou suas mãos e lhe segredou algo. Depois chegou a sua irmã Linderléia, uma meio-boba, que nunca saíra do sítio. Ela e a irmã se desdobravam pela avó. Dia a dia. A Dona Cândida ora confabulava com uma, a Linderléia. Ora confabulava com outra, a Adelícia. Passada uma semana, se tanto, e Dona Cândida morreu. Os povos dos gerais souberam e vieram todos. O cavalo de um visitante ficou amarrado no vão do cercado. Um pequeno ajuntamento cresceu no portão. Um distinto homem magro chorava. Uma mulher gorda lastimava. Um moço de alpargatas novas sorria seu dente de ouro. Um menino de tez morena brincava no quintal cheio de galinhas e pintos. Mas aquela casa ficou vazia no dia seguinte. Passou-se uma semana e nada aconteceu por ali. Passam seis meses e ainda nada havia acontecido. Passado um ano, entretanto, uma vaca parideira chorou muito na madrugada. Uns peões vieram assistir ao parto. Pela manhã, a novidade. Nascera ali um bezerro de duas cabeças. Todos gritaram de surpresa. Até o jornalzinho da cidade vizinha estampou lá: “Nasce um bezerro de duas cabeças no sítio de Dona Cândida”. Adelícia e Linderléia finalmente revelaram, uma para a outra, o segredo que Dona Cândida lhes confiara naqueles seus últimos dias: “O sitio será o arrimo de vocês duas. Estejam juntas como se fossem um bezerro de duas cabeças”. E assim foi. E assim ficaram.


Beto Palaio

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