ADELÍCIA E O BEZERRO DE DUAS CABEÇAS
Adelícia. Uma das oito meninas.
Ela teve uma vertigem. Segurou forte na mão de Linderléia. Em direção ao que
surge. Uma conta de sinas ajuntadas. Fortunas catarinas, joaninas, luzianinas,
dinheiro miúdo no pote, ou o pote vazio, ou pote nenhum. De barro. Quando se
está descendo à cova. Um espaço por demais conhecido. Morta. Na idéia que tinha
do pátio. Adelícia não faltava em nenhuma aula. Ia à pé. Naquele dia. Depois se
detém. Diante da filmagem de um sol causticante. Queimando o filme da terra
árida. Nenhuma cerca. Nenhuma jaula. Nenhuma porteira. Desde a estação do trem
na cidadezinha, até a casa da avó Cândida. Essa sua avó que ficara doente. Coisa
grave, claro. Por isto Adelícia deu-se ao trabalho. De tomar um lugar no trem
que vinha para o sertão. Nem tanto como esposa. Mãe de filhos. Mas vindo como
neta de Dona Cândida. Foi naquele lugar pobre. Numa nona sinfonia improvável.
Som nenhum. Desafio para um músico surdo. A natureza silente do lugar. Só os
grilos. Mas estes tinham um canto certo. O cricrilar monótono das noites
quentes. Nesta visita Adelícia veio para velar por sua avó doente. Quando
aproveitou para rever sua irmã Linderléia. Ela, Adelícia, já com quarenta e
três anos de idade. Nunca mais as vira. Fazia já trinta anos que Adelícia havia
ido embora. Agora como os pés se afundando na areia avermelhada. Chegando à
velha casa de fazenda. Onde tudo retorna à infância. Aquele lugar. Enquanto
isto. Ouvira vozes. Papagaios a matraquear, é o que parecia. A fala de quatro
velhos sem pressa. Vinham pelo caminho do sítio. Cada um montado em sua própria
bicicleta. Embora pedalassem sem ânimo. Portanto. Ao vê-la. Disseram quase ao
mesmo tempo de onde vinham. E também para onde iam. Falaram que Dona Cândida
pedira para eles cuidarem da papelada do enterro lá dela mesma. Por isso iam.
Em direção ao tabelião que cuida do cemitério da comunidade. E o sol da manhã
já ia alto. E disseram outros roteiros, determinados. Principalmente disseram à
Adelícia que estiveram falando em separado, cada um dos velhos, com a avó Dona
Cândida. “Ela é muito esperta. Passou o mesmo recado para cada um de nós. Assim
não tem chance de haver erro na tarefa”. Eles pararam quando viram Adelícia
vindo à pé. Sorriram para ela. Ponderaram sobre o estado de saúde de Dona
Cândida. Mas não disseram mais nada sobre a tarefa de que estavam incumbidos.
No entanto davam vaza a outras prosas. “Vossa avó vai escapar dessa. Está para
nascer a doença que vai matar Dona Cândida”, isto disse um dos velhos, com um
toco de cigarro nos lábios, quase em risco de se queimar. Adelícia ouve esta última
frase e quer correr mais rápido ainda para ver a avó. Ela tem receio de que os
homens lhe escondam algo. Reflete que o caso de saúde de sua avó Cândida talvez
não seja algo passageiro. As muitas cartas que trocara com ela e com sua irmã
Linderléia. Todos os roteiros do sítio eram repassados em letras guardadas.
Mais de uma centena de cartas que ela guardava. Nessas letras escritas à caneta
Bic. São madrugadas dentro dessa outra menina que morava dentro dela. O fruto
que nunca amadurece é isto que se guarda para sempre com o gosto do sumo de
cantos de galos, perfume da mata, cheiro de terra revolvida, murmurar de
riachos, capins repletos de orvalho, abraço de tias cheirando sabonetes,
presença de homens suados no alpendre, tudo ela lembra, entre tantos, a partir
disto, em fim, esses e tantos outros cheiros identificáveis. Foi sua história
pregressa, antes de ir para a cidade. Detalhes em desfile. A velha moringa
de barro ao lado da imagem de São Francisco de Assis. O café de coador. Foi-se
o tempo de guardar saudades. Agora Adelícia iria rever seu pedacinho de terra.
Quando muito longe. Ainda morando no Rio de Janeiro. Seus próprios dois filhos
na escola. O marido funcionário da Light. Sentada em seu quarto em Botafogo.
Lembrava ali da cartomante que visitara uma semana antes. Quando aquela mulher
recolhera os búzios que foram espalhados sobre um veludo surrado. “Qual saber!
Tive muita cautela”. A mulher falando coisas pequenas. Injúrias, invejas,
maledicências, motes, fingimentos e traições. Disse que seu marido cumpria a
cama do bem bom com outra. Disse que seu futuro estaria perto. Disse que ela se
tornaria uma ave de arribação. Disse que ela iria embora de vez. Disse que um
dia ela teria duas cabeças. Mas qual o que? Como acreditar em disparates assim?
Ela tão certinha em seu rondó. Tão mãe de família. Nem que acreditasse naquelas
cascas de caramujo sendo traduzidas num propósito tão avassalador. Adelícia
estava olhando fixamente a toalha de mesa xadrez. Não podia confiar que seu
marido a traísse. Ele era tão bobão. Ela duvidava disto. Mas da viagem ela
tinha certeza. Isto aconteceu para firmar compromisso. Pois duas semanas se
passaram e chegou até ela uma carta suja de terra. Isto a trouxe para o sertão
de Dona Cândida. Que agora a mirava por trás de uns óculos de miopia avançada.
Sua avó tomou suas mãos e lhe segredou algo. Depois chegou a sua irmã
Linderléia, uma meio-boba, que nunca saíra do sítio. Ela e a irmã se
desdobravam pela avó. Dia a dia. A Dona Cândida ora confabulava com uma, a
Linderléia. Ora confabulava com outra, a Adelícia. Passada uma semana, se
tanto, e Dona Cândida morreu. Os povos dos gerais souberam e vieram todos. O
cavalo de um visitante ficou amarrado no vão do cercado. Um pequeno ajuntamento
cresceu no portão. Um distinto homem magro chorava. Uma mulher gorda lastimava.
Um moço de alpargatas novas sorria seu dente de ouro. Um menino de tez morena
brincava no quintal cheio de galinhas e pintos. Mas aquela casa ficou vazia no
dia seguinte. Passou-se uma semana e nada aconteceu por ali. Passam seis meses e ainda nada havia acontecido. Passado um ano, entretanto, uma vaca parideira
chorou muito na madrugada. Uns peões vieram assistir ao parto. Pela manhã, a
novidade. Nascera ali um bezerro de duas cabeças. Todos gritaram de surpresa.
Até o jornalzinho da cidade vizinha estampou lá: “Nasce um bezerro de duas
cabeças no sítio de Dona Cândida”. Adelícia e Linderléia finalmente revelaram,
uma para a outra, o segredo que Dona Cândida lhes confiara naqueles seus
últimos dias: “O sitio será o arrimo de vocês duas. Estejam juntas como se
fossem um bezerro de duas cabeças”. E assim foi. E assim ficaram.
Beto
Palaio
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